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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.5. Feminino como excesso

O feminino está proposto, então, como excesso (inquietante, como veremos), resistência à lógica da poupança afetiva. É artifício, imagem, aparência, mas é por meio dela (do feminino) que se encontra algo que resiste na escrita de Ana Cristina. Moriconi afirma que “são incompletas as leituras que buscam amarrar o texto de Ana a um projeto de identidade feminina”. Talvez não se trate de amarrar, mas de lançar luz sobre um aspecto relevante de uma escrita, resistente justamente às tentativas de encerrá-la a um lugar menor como o da “poeta suicida”, por exemplo, ou o da “poeta confessional”. É claro que não se trata de uma construção simples de identidade, como bem aponta Moriconi ao nos lembrar que as questões de gênero em Ana C. serão analisadas fora dos jogos rígidos e essencialistas, “fora da pauta”.Pois não será sempre fora da pauta que precisaremos nos aventurar para dizer mulher? Em suma, o que há “dentro da pauta”, se a expressão ainda serve, é a lógica patriarcal, é plain happiness (no máximo), e estamos em busca de bliss. (“Faço viagens movidas a ódio, mais resumidamente em busca de bliss.”, Luvas de Pelica. CESAR, 2013: 59)

É bastante interessante notar que a forma como essa resistência da questão da mulher na poesia de Ana Cristina Cesar (algo que não se deixa apagar apesar dos processos “desconstrutivos”, ou algo que retorna e se transforma mas resiste ao silêncio) seja apresentada por Ítalo Moriconi justamente a partir de termos como “suplemento e excesso”, pois é justamente o excesso título e tema de um dos artigos da autora que discute a questão da mulher. Vejamos, portanto, como a própria poeta coloca-se diante dessa questão, quando se propõe uma leitura de outra escritora:

Publicado originalmente em 1982 no jornal Leia Livros, o artigo de Ana Cristina Cesar intitulado Excesso Inquietante trata de uma resenha do livro As Mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. A resenha de Ana C., apesar de texto curto e direto, focado na positiva avaliação da obra de Felinto, aborda justamente a ideia de que a obra em questão está repleta do discurso feminino. É esse o viés que Ana Cristina Cesar escolhe para a leitura de Mulheres de Tijucopapo e é ele que dá nome ao texto. “Sem evitar cair no lugar-comum, é bom que se reconheça logo que este é um livro ‘de mulher’, que dá pano pra manga para a questão do feminino.” (CESAR, 1999: 249) Para Ana Cristina, Marilene Felinto conta em seu livro uma história femininamente. Explica:

muito sentimento em estado bruto. Significa também: dirigindo-se eternamente a um interlocutor, falando sempre para alguém, como numa carta imensa. Mas ao mesmo tempo esse feminino transborda um excesso inquietante." (idem)

Errante, descontínua, desnivelada, intensidade, muito sentimento bruto e falando para alguém. São essas as características que justificam, para Ana Cristina leitora, sua compreensão da escrita de Felinto como feminina. Comecemos pelo fim, “falando para alguém”: trata-se da questão do interlocutor explicitado, como numa carta. O formato da carta talvez seja comumente associado à linguagem de mulher por conta da associação entre o feminino e a intimidade, a confissão, a escrita de cunho particular.16

A associação entre “falar para alguém” e a escrita feminina reforça a ideia não necessariamente estereotípica, mas de caráter histórico, de preservar a presença do destinatário e, portanto, as ideias de intimidade e formato epistolar como o espaço possível da escrita da mulher. É possível afirmar que qualquer escritora que escreva em diálogo com tal formato, que traga à tona a questão da intimidade, da escrita para alguém próximo, estará consequentemente em diálogo com esse espaço historicamente feminino (seja este um diálogo crítico e consciente ou não).

Pensando agora nas outras características mencionadas por Ana Cristina para justificar a leitura de Felinto enquanto uma linguagem feminina (errante, descontínua etc.), vemos que todas desembocam numa ideia central, que dá título à resenha: a ideia do excesso que inquieta. Mesmo pensando na questão do interlocutor e da carta: a mulher escritora não cabe nesse espaço reduzido, deseja excedê-lo, transborda. Afinal, existe uma escrita que “fala sempre para alguém” em As Mulheres de Tijucoapo, mas no fim das contas o texto é um livro,

16 Essa associação não existe apenas em um âmbito simbólico, deslocada do universo que a rodeia, como alguns estereótipos podem fazer parecer; nem, tampouco se relaciona a qualquer tipo de natureza do feminino. A relação histórica da mulher com a escrita de cartas é significativa, talvez por motivos mais práticos e diretos do que estéticos ou estilísticos. Como vemos em obras importantes que tratam da trajetória histórica da mulher escritora e suas inúmeras dificuldades (A Room of One's Own de Virginia Woolf sendo um importante exemplo, além de estudos mais longos e recentes como Women Writers and Poetic Identity de Margaret Homms e The

Madwoman in the Attic de Sandra Gilbert e Susan Gubar), os empecilhos tanto simbólicos como práticos para a

mulher dos séculos XVII, XVIII e mesmo em alguns casos XIX se legitimar e ser legitimada enquanto escritora eram muitos, inclusive uma autoimagem redutora (como manda o meio em que viviam) e excessiva modéstia introjetadas. Uma das formas de manifestação dessa "modéstia excessiva" pode ser observada no verso de Anne Finch: "still with contracted wing, / To some few friends, and to thy sorrows sing." (GILBERT & GUBAR, 1979: 11) As asas da poeta devem se manter contraídas e seu canto fica restrito a “alguns poucos amigos”. Mesmo quando a mulher, escritora dessas gerações, é capaz de se identificar como tal, sua literatura é ainda “apequenada” diante de seus contemporâneos masculinos, mantendo-se no âmbito do íntimo, doméstico, para ser lida apenas por “alguns amigos”. Em outros casos, o caráter íntimo da escrita feita por mulher é ainda mais evidente, quando, desencorajadas do ofício de escritoras por tantos fatores, muitas acabavam por manifestar o desejo de escrita por meio das cartas. A carta foi por muitos anos um espaço íntimo e distante dos olhares do público que acolheu a escrita de mulheres, onde elas encontraram, quando não totalmente silenciadas, meios alternativos de exercer a escrita literária.

com diversos leitores, e não uma carta. Excede o leitor único, transborda da carta ao livro. Os adjetivos usados por Ana C. para descrever a linguagem da autora na obra em questão, e argumentar o uso do qualificativo “feminino” descrevem uma linguagem que não se encaixa em modelos tradicionalmente associados à racionalidade, à linguagem objetiva, direta, equilibrada etc.

Observe-se que o termo excesso é utilizado pela poeta na resenha como um conceito claro, embora ela não o explique. Talvez porque ele a preceda. Coincidência ou não, existe um artigo da francesa Luce Irirgaray (Pouvoir du discours, subordination du féminin do livro Ce Sexe Qui N'en Est Pas Un, de 1977), no qual ela discute justamente a ideia de certa “linguagem feminina”. No artigo, Irigaray propõe a ideia de que à mulher seja possível questionar e mesmo “atravancar”17 o discurso do logos masculino tradicional (esse mesmo no qual não se encaixa, segundo Ana Cristina, a escrita de Felinto). Essa quebra na lógica da linguagem masculina se observaria na linguagem da mulher a partir de um excès derangeant, traduzido para o inglês como disruptive excess. Excesso perturbador, disruptivo ou inquietante: a ideia parece bastante similar à proposta que dá nome e tom à resenha de Ana Cristina.

Para compreender melhor o conceito de Luce Irigaray recuaremos alguns parágrafos em seu artigo e tentaremos ler a linha de raciocínio que produz o conceito do excès derangeant, podendo assim verificar até que ponto as propostas de Ana Cristina Cesar em Excesso Inquietante se alinham a esse pensamento: segundo Luce Irigaray, ao emitir qualquer discurso sobre a questão da mulher, nós nos deparamos não apenas com o problema da identidade pela negativa e pelo impasse entre marcar ou não marcar a diferença (mulher é sempre menos etc.), como também corremos outro risco. Ao tentar discutir a questão da mulher a partir dos instrumentos de discurso que temos, corremos, de acordo com Irigaray, o risco de acabarmos por nos engendrar nas formas de interpretar e compreender que pertencem ao logos masculino, e que mantêm a mulher num lugar de “repressão, censura e irreconhecimento”. (IRIGARAY, 1977: 75) Para a autora não interessa, portanto, criar outra teoria, da qual a mulher seja sujeito ou objeto, mas sim travar as máquinas teóricas, “suspender sua pretensão a qualquer verdade excessivamente unívoca”. (idem) A mulher não se propõe, na lógica da filósofa, competir ou se igualar aos homens pela construção de uma lógica do feminino que ainda tenha como modelo o onto-teo-lógico. O que nos interessa

17 O termo é de difícil tradução, no original francês lemos enrayer la machinerie theorique elle-même, enquanto a tradução inglesa escolhe jamming the machine.

buscar é a tentativa feminina de desprender tal questão da economia do logos.

Para tanto, Iragaray propõe que seja preciso repetir/interpretar a forma como a mulher é compreendida enquanto falta/negativo do sujeito dentro do discurso, entendendo que é possível, em relação a tal estrutura discursiva, um excesso da parte da mulher. “Travar” a maquinaria teórica que sustenta a representação da mulher enquanto falta/negativo consistiria portanto em exceder essa lógica. Para Irigaray é possível, dentro dessa repetição e interpretação da lógica e do funcionamento discursivo, encontrar essa qualidade do discurso feminino que ela entende como um excesso perturbador18. Trata-se, portanto, de um excesso no discurso, que vem como resistência ao silêncio, ao silenciamento. Tal excesso (que justamente excede a lógica redutora das definições do feminino) torna-se possível se a mulher não abrir mão daquilo que Irigaray chama de seu estilo ou sua escritura. Um estilo que, se ficássemos na lógica falogocêntrica, não poderia sequer existir.

Descrevendo o estilo ou escrita feminina, Irigaray afirma: “Son 'style' résiste à, et fait exploser, toute forme, figure, idée, concept, solidement établis.” (idem: 76)19 Não parece exagero afirmar que Ana Cristina esteja, nessa resenha, falando em alguma medida da mesma coisa. A linguagem errante é justamente aquela que não segue caminhos fixos e pré- determinados, “inaudível para aqueles que a escutam com tabelas pré-estabelecidas, com um código já elaborado em mãos”. (idem: 28, tradução própria) Uma das características desse estilo ou escrita, portanto, seria o excesso. É um estilo que excede a lógica estabelecida pelo logos, não se deixa encaixar em “palavras fetichizadas, formas bem construídas” ou “termos apropriados”, não se deixa reduzir à forma. (idem p. 76)20

Não temos como saber se o conceito do excesso inquietante, ou perturbador, utilizado por Ana Cristina Cesar na sua resenha foi diretamente inspirado pela proposta de Irigaray, ou mesmo se a autora tinha conhecimento dessa proposta. O fato é que, sendo ou não uma referência direta, existe uma forma semelhante de falar do discurso especificamente feminino, partilhando de conceitos muito semelhantes. Inclusive, o que Ana mais valoriza no texto de

18 “(...) répetant-interprétant la façon dont, à l'interieur du discours, e féminin se trouve déterminé: comme

manque, défaut, ou comme mime et reproduction inversée du sujet, elles signifient qu'a cette logique un excès, dérangeant, est possible du côté du feminin.” (p.76)

19 “Seu ‘estilo’ resiste a, e faz explodir toda forma, figura, ideia, ou conceito solidamente estabelecido.”

20 Pode ser interessante observar o que Irigaray afirma também em outro artigo do mesmo livro, a respeito da questão do discurso, da linguagem feminina: “(...) not to mention her language, in which 'she' sets off in all

directions leaving 'him' unable to discern the coherence of any meaning. Hers are contradictory words, somewhat mad from the standpoint of reason, inaudible for whoever listens to them with ready-made grids, with a fully elaborated code in hand. (...) One would have to listen with another ear. as if hearing an 'other meaning' always on the process of weaving itself, of embracing (…)" (Da versão This Sex Which is Not One traduzida para

Felinto parece ser justamente esse excesso: “O mais interessante — e promissor — do texto está antes na sua superfície, no seu falar errante, solto, desarticulado, desnivelado”. (CESAR, 1999: 250) Os adjetivos utilizados por Ana Cristina para caracterizar a escrita de Marilene Felinto são negativas (novamente vemos a definição da mulher pelo negativo): descontínua, desnivelada, mas culminam, curiosamente, não na ideia de falta, mas de excesso. Pois bem, é esse mesmo excesso que aparece para Luce Irigaray em Pouvoir du discours, subordination du féminin, como característica do discurso feminino que abre a possibilidade de resistência ao silenciamento, ao lugar feminino enquanto falta. Para Ana Cristina Cesar o excesso presente na linguagem é justamente aquilo que mantém o interesse da leitura: não é cansativo ou tedioso, mas inquietante, causa interesse, instiga.

Segundo Ana Cristina, no livro de Marilene “trava-se uma luta com esse feminino excessivo”, pois ele traria à tona a ideia de “uma amedrontada indefinição, à beira da impossibilidade de afirmar, afirmar-se, dar forma, acabar-se”. É com muita garra, afirma Ana C., que Marilene escreve “disto que é turvo”. Aquilo que se descreve como linguagem feminina no livro não está, portanto, em estado de tranquilidade, apresenta-se como combate. Existe, porém, na obra, segundo a leitura feita por Ana Cristina, uma possibilidade de desembaraçar-se da angústia dessa batalha com a “ameaça do feminino”, justamente por meio da ideia de “seguir Lampião”, imagem de Marilene interpretada por Ana como a androgeneização da linguagem: deixar de ser mulher. Ana C. se pergunta: “Será que a solução é o fincar-pé masculino, que afirma, dá forma, tem causa e lugar (…)?"21 Não está claro na resenha de Ana Cristina qual seria a resposta dada por Marilene Felinto a essa questão (seguir ou não seguir Lampião? Ser homem para escapar à angústia do excesso feminino?), se é que em seu texto há resposta. Seria por meio dessa adequação da linguagem do excesso, da linguagem errante do feminino à linguagem bem acabada e tida como masculina que se escapa da indefinição?

A resposta que Ana Cristina Cesar deseja, enquanto leitora (e enquanto autora, podemos extrapolar?): “Prefiro acreditar que esta não é a única solução para as tensões desse livro inaugural”. A saída para a linguagem feminina, do excesso turvo, da indefinição, que escapa à forma tradicional do discurso “tabelado” é justamente, para Ana C., a literatura: Ana

21 É interessante observar que a questão da androgeneização da mulher, do discurso da mulher dentro da produção literária aparece em outros momentos da produção crítica de Ana Cristina Cesar: em Riocorrente,

depois de Eva e Adão..., por exemplo, que veremos adiante, o texto se inicia justamente pela pergunta, sobre a

obra de Ângela Melin: “Ângela virou homem?”. A própria poesia da autora ressoa essas questões, como já vimos no caso do verso “Estou cansada de ser homem”.

“prefere acreditar” que o desejo de articulação com a linguagem masculina (androgeneização, como o chama se referindo a Virginia Woolf) seja apenas provisório, que haja uma trajetória com “direção própria: a direção do desejo por (um pouco) mais literatura”. Sem androgenizar- se, mas literaturizando-se. Ao afirmar o desejo de contar a sua própria história numa carta escrita em inglês, língua estrangeira que a afastaria da proximidade excessiva com aqueles que a leem, caracteriza-se por Ana a resposta de Marilene. Como ela diz, aí está justamente a resposta da saída pelo literário: “literatura é de um material como que estrangeiro, que nos separa dessa proximidade do sentimento bruto, nos descola de nós e da língua das nossas pessoas”. Ou seja, a solução que Ana Cristina lê no texto de Marilene para o problema da indefinição que o excesso inquietante do feminino traz é justamente a solução de escrever mais literariamente, “como que em língua estrangeira”. Essa solução não nega o um pouco mais, o excesso, pelo contrário: “Nesse sentido é possível retornar, desenredada, para o pouco-a-mais de loucura das mulheres: no retorno o feminino começará a falar ‘loucamente’ em inglês, isto é, mais literariamente.” (idem)

Da mesma forma, a proposta de Luce Irigaray é que se veja, justamente nesse excesso disruptivo da linguagem feminina, a possibilidade de uma crítica ao discurso falogocêntrico, uma possibilidade de resistência. Que não se deixe cair no senso comum a ideia de excesso do discurso feminino, para “não abrir mão desse estilo, dessa escrita”, como afirma Irigaray. Nessa perspectiva, podemos entender que o desvio desse lugar previamente estabelecido e supostamente neutro da linguagem é o terreno discursivo possível da mulher, espaço onde ela pode fazer valer seu excesso crítico, inquietante.

Por esse prisma, podemos propor que a linguagem feminina, tal como expressada por Irigaray, e tal como lida por Ana Cristina Cesar na obra de Marilene Felinto, aponta para uma saída possível para esse impasse. Saída esta que consiste em assumir a linguagem feminina em sua forma crítica ao neutro, que apresenta excesso, que não se conforma ao logos falocêntrico. A partir daí é possível entender em que medida o próprio ato de fazer literatura como mulher, enquanto mulher, femininamente, apresenta-se já como resistência a essa linguagem opressiva.