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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.3. Mulher, ou como escapar da redução?

Heloisa Buarque de Holanda associava a imagem do tapa à escrita da geração anterior à de Ana Cristina, entendendo as luvas de pelica como retomada das imagens tradicionais de feminilidade, e, portanto, como oposição a essa agressividade anterior. Com a frase em questão, porém, Sérgio Alcides, talvez possibilitado por uma maior distância histórica, parece

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ALCIDES, S. Armadilha para Ana Cristina. Artigo publicado no blog do Instituto Moreira Sales, em 6/01/2014. <http://blogdoims.com.br/armadilha-para-ana-cristina-por-sergio-alcides/> Consultado em 05/10/2016

devolver a Ana Cristina, em parte, esse tom mais agressivo. Aqui as luvas de pelica não excluem o tapa, muito pelo contrário, são usadas como instrumento dele. O tapa poético e metafórico, “na cara do sexismo literário”, pode não ser o mesmo da linguagem talvez mais combativa da década de 1970, mas ainda assim é tapa e se utiliza das tais luvas, artigo feminino tradicional, para enfrentar o sexismo literário. Em todo caso, para Sérgio Alcides, esse tapa provém especificamente do fato de a poética de Ana Cristina contrastar drasticamente com um ideal que se busca até hoje associar a ela, o ideal de proveniência Romântica e masculina do “mito trágico do poeta (...) que sacrifica a própria vida em benefício da literatura” (ALCIDES, 2014). É na medida em que a poesia de Ana C. não se deixa encaixar nesse ideal Romântico a ela atribuído que Sérgio Alcides reconhece nela o tapa na cara do sexismo literário. Apesar disso, curiosamente, quando aborda a possibilidade de leitura do feminino na obra da autora não será por um viés positivo.

De fato, o crítico desenvolve nesse artigo uma análise meticulosa do que seriam algumas armadilhas das quais o leitor precisaria desenredar-se na leitura da poeta. Na esteira daquilo que já discutia o livro de Luciana di Leone (2008), um dos pontos importantes ressaltados é a questão do ícone, ou mito, que, segundo Alcides “facilita muito que ela seja adorada (e consumida), mas dificulta um pouco que ela seja lida.” (idem). Sérgio Alcides busca destrinchar e analisar com atenção em que consistem as armadilhas nas quais acabamos por enclausurar a poeta e, por conseguinte, sua poesia.

Para o crítico, “diferentes formas de reducionismo ameaçam a efetiva leitura de sua poesia”. Ele aponta três: a primeira delas provém do “fascínio despertado pelo suicídio”, reduzindo, portanto, a poesia da autora ao confessionalismo. A segunda seria a redução ao pop, a percepção das escolhas de uma linguagem coloquial e o uso superficial de referências à cultura de massa como se isso fosse a totalidade da experiência poética de Ana Cristina, enquanto linguagem perigosamente próxima à publicitária.

A terceira forma citada pelo autor do artigo é aquela à qual ele se refere como “redução ao feminino”. É significativo que a ideia de feminino esteja colocada no artigo no mesmo patamar do pop e do confessionalismo, isto é, como característica específica de uma escrita, o que pressupõe que o feminino poderia ser considerado como uma região específica da atividade literária. Mas devemos fazer a pergunta: feminino em Ana Cristina Cesar faz sentido enquanto característica à qual sua poesia poderia ser reduzida? Em outras palavras, afirmar essa possibilidade não poderia ser compreendido por si só como um gesto que reduz, justamente, a própria ideia de feminino? A questão feminina não pode ser um simples aspecto que podemos ler na poesia de determinada autora, na medida em que é uma complexa questão

filosófica pela qual passa nossa vivência em sociedade, qualquer que seja a manifestação artística a ser discutida. É justo afirmar que não se pode encerrar quaisquer discussões a respeito da poesia de Ana Cristina Cesar numa proposta de leitura excludente de outras leituras, ou seja: numa leitura que não admita a existência de outras aproximações. Mas todo o problema é fazer dessa afirmação genérica uma aplicação crítica ela mesma concretamente excludente. Sérgio Alcides explica: “uma terceira forma de reducionismo, muito promissora na universidade, onde a poeta é frequentemente encaixada nos chamados ‘estudos de gênero’. Vem aí a redução ao feminino, com a tentativa de dar à condição de mulher um caráter explicativo.”

Reconheçamos que é louvável, para a própria questão do feminino, apontar os limites de alguns trabalhos propostos a partir dos estudos de gênero, quando estes se caracterizam como olhar sufocante sobre a obra literária, enterrando por baixo de um peso excessivo de teoria sociológica ou filosófica o que há nela justamente de literário, impondo ao texto aquilo que serve ao campo sociológico ou político. Afirmar, porém, que a escolha por uma aproximação da poeta por meio dos estudos de gênero (explicitamente desqualificados no artigo pela expressão ‘os chamados’, e as aspas) corresponderia a uma tentativa de “dar à condição da mulher um caráter explicativo” demonstra, talvez, uma redução da própria questão de gênero: tratar-se-ia de fato implicitamente de considerar como plausível explicar a literatura por meio do gênero? Mulher seria então uma categoria que simplifica, explica, resolve? Não parece ser o caso.

Trata-se, no entanto, de buscar entender questões literárias a partir de uma hermenêutica que não se conforme com silenciar a importância evidente da questão feminina na poesia da autora (como de outras), sempre tendo em vista sua relevância literária e a correlação com outros aspectos poéticos discutidos a partir do objeto em questão. Compreender a categoria, ou a “condição da mulher” como algo que poderia (embora não deva, justamente) se tornar um elemento explicativo supõe que essa categoria seja vista de uma forma por si só redutora. Vejamos como continua o argumento:

"Embora a pertinência desse enfoque não seja tão questionável quanto o fato de essa corrente já ter virado uma disciplina emancipada, uma formação ou especialização. Como pode entender Ana Cristina Cesar quem leu tudo de Adélia Prado, Sylvia Plath, Clarice Lispector e Simone de Beauvoir mas não leu nada de Walt Whitman, Manuel Bandeira, Octavio Paz e Francisco Alvim?” (idem)

Se, para Alcides a existência dos estudos de gênero enquanto “disciplina emancipada” é claramente algo questionável, fica claro que mesmo a pertinência “desse enfoque” do

feminino para a leitura da poeta é colocada por ele em questão. À primeira vista, essa afirmação parece entrar em contradição com o trecho do mesmo artigo em que Alcides menciona o “tapa na cara do sexismo literário” na poesia de Ana Cristina Cesar. Seria então a crítica dirigida a estudos de gênero específicos, ou teria apoio em uma compreensão parcial ou mesmo redutora daquilo que venha a ser o “enfoque” do feminino em questão? Nosso sentimento é que fica difícil explicar a crítica como um questionamento de abordagens específicas, já que não é feita nenhuma menção a um ou outro estudo em especial, e nenhum deles é citado. A pergunta do artigo: “Como pode entender Ana Cristina Cesar quem leu tudo de Adélia Prado, Sylvia Plath, Clarice Lispector e Simone de Beauvoir mas não leu nada de Walt Whitman, Manuel Bandeira, Octavio Paz e Francisco Alvim?” alude a certo enfoque geral, presumidamente parcial.

A lista mencionada por Alcides contém de fato, até onde podemos perceber, exemplos de autores com grande importância para a leitura de Ana Cristina Cesar (tanto as mulheres como os homens), embora possam não ser necessariamente os mais relevantes, e embora não sejam os únicos. A lista serve, portanto, não para fazer uma diferença entre aqueles ou aquelas que se deveria ler preferivelmente na busca da compreensão da poeta, mas para apontar uma divisão normativa de gênero, por obra da crítica literária, entre formas antagônicas de compreender Ana Cristina Cesar. Associar um estudo literário que tenha como foco a questão da mulher (seja ele concebido a partir de uma proposta de “estudos de gênero” ou não) à ideia de ler “tudo de” autoras mulheres e “nada de” autores homens não apenas é injusto e redutor, como também se revela praticamente impossível, quanto mais não seja por causa do tipo mesmo de formação acadêmica recebida nas universidades, nas quais a própria pesquisa na área passa necessariamente pela leitura de autores homens.

Mas a questão principal é que não se trata de inverter a invisibilização do gênero: parece difícil imaginar uma formação em literatura, ou mesmo uma pesquisa na área, que não passe pela leitura de autores homens. Inversamente, o contrário não é apenas possível, como comum. Este é o fato concreto que explica a existência dos "chamados estudos de gênero", os quais existem para contrapor a presença do feminino na literatura às práticas acadêmicas de ocultação do feminino. Neste sentido, a relevância da questão de gênero na literatura fica evidente justamente nesse argumento que a contraria: não há, como parece acreditar Alcides, estudiosas de gênero que nunca leram ou não veem relevância em ler autores homens. Porém, não encontraremos facilmente, por outro lado, alguém que aponte a relevância da leitura de alguma autora mulher para que se possa compreender a produção literária de um homem. Neste sentido, ainda, talvez seja mais produtivo entender o movimento dos estudos de gênero

como um necessário esforço de visibilização de certa produção literária a partir da consideração de questões relevantes relacionadas à condição da mulher, presentes em grande parte da literatura.

É preciso ler literatura para estudar literatura, mas é claro. Nesse sentido, o ponto de vista de Sérgio Alcides é relevante: é preciso ler Walt Whitman (por exemplo) para entender Ana Cristina Cesar. Para estudar a literatura de Ana Cristina Cesar será preciso pensar a produção literária de grandes autores da literatura e isso incluirá, inevitavelmente, grandes homens. A relevância de tais homens não será diminuída pelo fato de eles fazerem parte do grupo ao qual se atribuiu maior visibilidade na história literária, muito pelo contrário, mas os estudos de gênero não estão tentando nos convencer disso. Mesmo no caso de estudos de gênero passíveis de severa crítica, e que poderiam pecar em aspectos como a interpretação literária excessivamente colada à teoria (feminista), e subservientes a ela, não há tentativas para argumentar que se deva ignorar a tradição literária masculina, muito pelo contrário14. Mesmo que esta seja retomada apenas num viés crítico negativo, e que poderia ser considerado por alguns por vezes excessivamente combativo, o diálogo com a tradição masculina é essencial, muitas vezes inclusive é ponto de partida de tais estudos.

Foi a própria filosofia feminista de Simone de Beauvoir (ironizada pelo crítico) que apontou com pertinência que não se pode falar em mulher sem falar em homem, já que para ela, na própria configuração social e filosófica "A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro." (BEAUVOIR, 1980: 10).

Acreditamos que apesar dos tais “tapas na cara” do sexismo literário dados por Ana Cristina e tantas outras, ou ainda apesar do desenvolvimento dos estudos de gênero, não se pode dizer que em termos gerais as palavras de Beauvoir tenham deixado de ser válidas. É sempre na condição de alteridade constitutiva que se discute a questão feminina, e talvez o que incomode seja justamente o fato de ser impossível abordá-la sem passar ao mesmo tempo pela discussão do masculino, questionando com isso, por tabela, o modelo supostamente neutro da produção de ideias, e mais especificamente daquilo que nos interessa aqui, isto é, do cânone literário. Se não deixaremos tão cedo de ler Whitman, Bandeira e tantos outros,

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Um exemplo disso é o artigo Costumes Of The Mind, de Sandra Gilbert (Critical Inquiry, n.7, v.2, 1980), em que a autora critica talvez exageradamente o machismo nas formas como a ideia de travestismo aparece em autores modernos como Eliot e Joyce, para em seguida defender que a mesma ideia se apresenta de forma diversa em Orlando de Virginia Woolf. Se por um lado sua leitura é passível de crítica, por outro ela justamente reforça a necessidade da leitura desses autores masculinos para que a discussão possa se desenvolver.

esperamos também que, quem sabe, com algum tempo, os estudos que não buscam um enfoque de gênero possam passar também a ler, para acrescentar às suas reflexões literárias, Ana, Adélia, Clarice e Beauvoir.

O artigo de Sérgio Alcides nos dá a oportunidade de ressaltar aqui que nossa proposta para a presente pesquisa não é a de um estudo de gênero da poesia de Ana Cristina Cesar, e sim de uma leitura crítica com enfoque nas relações de intertextualidade da poeta com alguns autores de língua inglesa. Como a questão da mulher se coloca de forma premente nessas relações, bem como ao longo de toda a poesia de Ana Cristina Cesar, um diálogo com a teoria feminista, bem como com obras de teoria literária feminista se torna importante para a elaboração dessa discussão. Se, por um lado, o foco do presente trabalho, que se mantém literário, obriga-nos a ler de forma crítica a instrumentalização da literatura pela teoria, inclusive de gênero, evitando a armadilha apontada por Sérgio Alcides, por outro lado, é o próprio aproveitamento desse material literário que nos resguarda do olhar essencialista sobre a obra de Ana Cristina Cesar. Procuramos traçar um caminho de leitura que não rejeite a pertinência e relevância das questões de gênero nem as invisibilize, mas não deixe também de apontar seus problemas.