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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.2. Dizer mulher seria definir a mulher?

Em 1981 Heloisa Buarque de Holanda publica no Jornal do Brasil o artigo intitulado A Imaginação Feminina no Poder9, discutindo uma aparente nova cena de mulheres poetas brasileiras e tendo Ana Cristina Cesar como porta de entrada e centro da discussão. Heloisa abre seu artigo pela seguinte descrição:

"Trajando knickers amarelo, sandálias chinesas, cabelo punk, com diploma M. A em tradução literária from Essex, e um livro editado em Londres, acaba de retornar ao Brasil Ana Cristina Cesar. Pelo desempenho e visual não deixa margem à dúvida: trata-se do que se convencionou chamar de uma mulher moderna, independente e bem-sucedida."10

A descrição da imagem, de uma persona da mulher moderna, independente, bem- sucedida, introduz a aparente contradição discutida pela autora no texto. A imagem daquilo que seria uma convenção de mulher moderna bem-sucedida é contraposta ao título (“que desconcerta essa imagem”) do livro publicado recentemente por Ana, Luvas de Pelica, e pela descrição da capa “que traz um manequim em primeiro plano, oferecendo pó de arroz e perfumes numa vitrina de moda em semitons rosa shocking. Um diário de alcova? Rabiscos e sonhos de uma moça bem-comportada?” Essa discussão dá o tom do artigo de Heloisa Buarque de Holanda: a imagem da autora mulher bem-sucedida e independente deveria

9 Originalmente publicado em Jornal do Brasil, 11/04/1981.

10 HOLANDA, H. A imaginação feminina no poder. Disponível em:

corresponder aos estereótipos da época de uma poesia da recusa às imagens tradicionais de feminilidade, mas o título de seu livro, as imagens da capa, as escolhas de seus temas parecem contradizer tais estereótipos.

Das escritoras da década anterior ao universo institucional em transformação e à televisão, Heloisa faz então um breve apanhado do cenário contemporâneo a seu texto no que diz respeito à voz feminina no Brasil. Comenta a linguagem de uma poesia feminina da década de 1970 que denomina como "fala feminina liberada", que se permite tomar espaços do discurso resguardados ao homem, e recebe reconhecimento tardio, mas que representa, para Heloisa, o início de uma maior abertura para as reivindicações feministas dos anos de 1970. Paralelamente, diante de tal cenário, Heloisa vê surgir uma nova geração de mulheres na poesia, que parecem trazer de volta os temas do cotidiano íntimo e especificamente doméstico. Depois de uma comparação entre as gerações através da escolha de seus títulos, Heloisa se atém ao pequeno livro de Ana C.: Luvas de Pelica seria um diário de viagem, mas esse formato apresenta contradição. Em vez de relatar idas, descobertas, etc., o diário de viagem de Ana C. surpreende o leitor que busca as expectativas tradicionais do gênero:

"O que parece interessar aqui é precisamente o não ir, o ficar, o voltar e o exercício obsessivo de escrever inúmeras cartas para o ponto de partida, a empenhadíssima construção de um pequeno espaço de silêncios, em vez da conquista e da exploração do mundo." (idem)

Para Heloisa, a proposta do livro é justamente uma retomada do tom íntimo, de imagens do universo doméstico, de sensibilidade e confinamento. O livro estaria construído em torno dos “estigmas femininos”, segundo ela, “tabus para o feminismo”, para a linguagem esperada da “mulher moderna”, da geração de 1970. Fazendo uma crítica bastante direta e dura, porém coerente em sua argumentação, Heloisa Buarque de Holanda parte de sua análise da obra de Ana C. para falar mais diretamente ao discurso feminista:

"Sem que se possa duvidar dos objetivos de sua luta, o discurso feminista supõe algumas simplificações e uma certa incapacidade, enquanto linguagem, para enfrentar seus fantasmas mais delicados. Na busca da igualdade, o discurso que informa as lutas feministas de certa maneira legitima os mitos que sustentam o modo de produção capitalista."

Para a autora, Ana Cristina Cesar, em conjunto com uma série de outras poetas a quem vai acrescentando à discussão (Mara Lucia Alvin, Lucia Villares e Maria Rita Kehl), parece apresentar uma saída poética para essa linguagem feminista que ela deseja criticar. Algo de novo na linguagem feminina se apresenta para a autora a partir desse lugar do discurso de mulheres que retomam os temas característicos do espaço tradicionalmente feminino. É interessante, porém, nos ater ao momento em que Heloisa menciona uma conversa com Ana

Cristina, na qual a poeta fala do livro em questão a partir de uma imagem bastante instigante: “Ela, ao se referir ao livro, conta, como numa parábola, a história da passividade do óvulo: ‘Sem dar a menor atenção à verdade fisiológica, diz-se que o óvulo, imóvel, fica à espera do exercício tumultuoso e valente de espermatozoides para ser fecundado. Ninguém fala da longa e perigosa viagem solitária percorrida pelo óvulo através de túneis obscuros’. E conclui: ‘Esse livro que aborda as viagens pelo lado do confinamento é uma contribuição à biologia do segredo e à maldade desse tom’”. (ibidem) A relação que a poeta faz entre a pressuposta inatividade/passividade do óvulo e sua proposta de “viagens pelo lado do confinamento” em seu livro é bastante interessante para pensar, como o faz Heloisa, a retomada do lugar do confinamento feminino, das imagens do ambiente doméstico na linguagem da poesia feminina. Parece importante lembrar, no entanto, que a ideia do papel ilusoriamente passivo do óvulo e a crítica ao sustento machista desse pressuposto se remete justamente a Simone de Beauvoir, sustentáculo da teoria feminista. Talvez o que ocorra nessas propostas poéticas que surgem ali, das mulheres do início da década de 1980, sensivelmente observadas por Heloisa Buarque de Holanda, seja antes uma reorganização dessa linguagem crítica da mulher, e uma forma de trazer à tona a discussão dessas imagens de passividade e reclusão e suas ambivalências e contradições inerentes, mais do que uma recusa direta da tal linguagem feminista criticada por Buarque de Holanda11. O que nos parece, no entanto, é que as palavras de Heloisa Buarque de Holanda refletem um momento bastante específico da nossa história cultural: o que se havia produzido em termos de literatura informada e tocada pela questão da mulher e pelos questionamentos levantados pelo feminismo estaria até aquela época ligado quase exclusivamente a uma poesia de recusa dos temas tradicionalmente vistos como femininos. O significado do termo “feminismo” tem mudado significativamente nesses últimos trinta anos (atualmente talvez esteja mais plural do que nunca) e talvez o feminismo ao qual Heloisa se refere em 1981 estivesse calcado mais especificamente nessa estética do choque e do desrecalque. Nesse contexto, poetas como Ana C. vêm inaugurar um novo momento em que, cansadas dos brados, buscam novos significados (bastante críticos, aliás) para o universo da suposta “feminilidade”, pelo lado de dentro.

É possível mesmo, a partir das observações de Buarque de Holanda, vistas agora com

11 A autora detecta nessa nova geração de mulheres na poesia aquilo que ela chama de “sintomas de um discurso pós-feminista, um novo espaço para a reflexão sobre o poder da imaginação feminina”. Para a leitora ou o leitor que lê o artigo de Heloisa hoje, talvez o termo pós-feminista cause estranhamento, e não é à toa: num momento em que o feminismo se tornou, novamente, assunto pop, momento este em que se discute longamente nos blogs, redes sociais e tantos outros ambientes reais e virtuais a importância de um movimento que parece aos poucos ganhar de fato novas caras, que está em constante transformação, e tem se tornado mais inclusivo, soa bastante estranho falar em “pós-feminismo".

certa distância histórica, associar a própria pluralidade de feminismos — da qual se fala hoje na militância e no espaço mais massificado das redes sociais — a um fruto também dessa mudança que se evidencia com as poetas da geração de Ana Cristina: ser mulher e procurar compreender-se enquanto mulher torna-se mais plural, as imagens se misturam entre a delicadeza e o soco, há menos certo e errado. O que não quer dizer que haja menos busca, menos perguntas, pelo contrário. É possível que essas poetas das quais nos falava Heloisa em 1981, Ana C. como carro-chefe, tenham contribuído imensamente na construção, justamente, das imagens da cultura pop atual, mais plurais, da mulher.12

Apesar disso, “Dizer ou não dizer ‘mulher’ na literatura de Ana C.?” é uma pergunta totalmente diferente de “ler ou não ler feminismo na obra de Ana C.?”. Não se pretende responder no presente trabalho à segunda pergunta, que, além de muito complexa, poderia desviar facilmente do foco poético da pesquisa. A primeira questão, porém, no texto de Heloisa está muito clara: seu artigo parte do pressuposto que essa é sim uma discussão de mulheres na literatura, que é uma questão a ser colocada quando lemos Ana Cristina e que está posta na sua escrita. Ainda que se possa considerar no texto de Heloísa um esforço no sentido de busca de uma espécie de neutralidade, por exemplo na conclusão que menciona o “Super-Homem" de Gilberto Gil, visto como um momento novo para a produção também masculina, afirmando:

"(...) talvez já tenha chegado a hora de se suspender taticamente as críticas mal-humoradas, com toda razão, sobre as representações machistas acerca da mulher e atentar para o que uma vanguarda feminina e masculina vem falando”

Não só Buarque de Holanda faz questão de incluir a “produção masculina”, como também coloca claramente sua opinião a respeito de um discurso que, para ela, está datado: o das críticas às representações machistas da mulher. Neste quase pedido para que se vire logo a página, argumenta-se que o que vem propor a geração de Ana Cristina é totalmente descolado

12 Ainda que não seja do escopo da presente pesquisa a discussão mais aprofundada no desenvolvimento histórico do feminismo enquanto cultura popular no Brasil, vale observar que seria ilusório acreditar que tenha sido superada a necessidade dos brados e afirmações severas a exigirem direito a um espaço para além do doméstico na nossa cultura, especificamente a brasileira. Mesmo nos idos de 2016 ainda se precisa publicamente lutar contra a imagem imposta por veículos de comunicação da mulher “bela, recatada e do lar”. Apenas hoje, a militância feminista, talvez mais massificada, parece querer se constituir como inclusiva, ditando menos as regras do “desrecalque”. Mais a mulher do “lugar de mulher é onde ela quiser” do que a negação completa do lar. Hoje parece haver maior investimento no protagonismo e no poder de escolha, com todas as consequências individualistas que isto supõe. Ainda assim, talvez esse “pós- feminismo” poético que Heloisa anunciava em 1981 tenha ajudado a construir as bases para a cultura feminista que se configura hoje, mais popularizada. Uma cultura feminista menos resumida, talvez, à estética do choque, e que, sem precisar abrir totalmente mão dele, reconhece o valor de manifestações artísticas, imagéticas e poéticas que passam por um diálogo com representações tradicionais do feminino.

dessa questão e precisa ser ouvido, apesar de a questão da mulher na literatura ser justamente o tema de seu artigo.

Para Heloisa, Ana Cristina está, de certa forma, na contra-mão da “poesia feminista”, numa busca pelo reencontro de uma linguagem feminina perdida, para revalorizá-la, com nova cara. Há nisso certa ambiguidade e é por isso interessante notar que esse novo tom não é pensado como acréscimo, como contribuição para a poesia de mulheres da década anterior, mas como quebra, embate, novidade. Embora ao mesmo tempo pareça tratar-se de ver o fenômeno por outro prisma, o da retomada, agora crítica, de temas e tons abandonados, contribuindo para a poesia das mulheres dos anos 1970, acrescentando uma nova camada à discussão sobre o desrecalque, na forma do retorno justamente das imagens (recalcadas?) do feminino tradicional, no intuito de trabalhá-las poeticamente num viés novo.

Por que então a escolha do tom do artigo de Heloisa? Seria de fato um embate, o que se dá na geração de Ana Cristina, uma quebra total com a “poesia liberada” das feministas dos anos 1970? Ou uma proposta de maior abertura de tom e tema, que continua e prolonga um projeto de viés político e cultural similar? Existe de fato essa quebra? Caso haja essa quebra, defende-se aqui em todo caso que ela é de caráter mais estético que político.

A propósito, ainda, dessa discussão a respeito da distância temporal que existe entre o artigo de Heloisa Buarque de Holanda e nosso olhar enquanto leitores, citemos as palavras de Sérgio Alcides, em artigo13 bastante recente, de 2014: “(...) a poesia dela entre outras coisas dá um tapa na cara do sexismo literário, ainda que com ‘luvas de pelica’.” É interessante perceber que Alcides usa palavras bastante similares às do artigo de Heloisa, quando ela se referia à poesia feminista dos anos 1970 como “poesia de linguagem livre, num certo sentido até mesmo agressiva” (o tapa, portanto?), agora suavizada pelas luvas de pelica de Ana Cristina.