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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.7. Posição de historicidade e intertextualidade

Todas as características apontadas por Ana Cristina Cesar para falar de Marilene (errante, desnivelada, “para alguém” etc.) são importantes, relevantes e marcantes na escrita de Ana C.. Justifica-se investigá-las como parte de uma estrutura de escrita que se propõe não abrir mão desse “um pouco a mais”, ou desse “estilo” das mulheres que, nas palavras de Irigaray, não se pode escutar, ou ler com padrões pré-determinados. Ainda assim não é suficiente, pensamos, apenas buscar nessas características a resistência ao logos, a “crítica do neutro” acessível à mulher na literatura. Estamos querendo dizer que, justamente porque a proposta de Irigaray parte da situação da mulher enquanto ser social e de sua impossibilidade de caber na linguagem do logos, acreditamos que seja preciso pensar Ana C. mulher numa dimensão relacional de sua escrita poética, portanto na sua dimensão intertextual.

Uma leitura de Ana Cristina Cesar enquanto escritora mulher implica uma leitura de Ana Cristina Cesar enquanto leitora (e vice-versa, aliás). Implica inseri-la numa tradição, em relação com os seus “lidos” (seus “queridos” para usar os termos dela), refletindo sobre “a mulher” não apenas como questão de escrita com “afetos femininos”, mas de inserção numa tradição. Daí é possível pensar o lugar de mulher não enquanto essência, com os problemas que teríamos com afirmações como “é mulher, portanto escreve como mulher”, mas pensando a mulher “socialmente situada”, como afirmaria Beauvoir, ou seja, pensando uma condição de historicidade que inclua o trabalho de interpretação de si e de leitura do mundo de e por Ana C.. Ou seja, se pensamos a tradição literária a partir dela e para pensar ela, é preciso pensar também o lugar da mulher nessa tradição, em relação a homens e mulheres. Mais do que meramente de uma escrita feminina, trata-se, aqui, de uma leitura-para-escrever feminina,

como afirmará Maria Lucia de Barros Camargo, com quem se propõe uma discussão adiante. Apesar de a questão da posição feminina diante de uma tradição masculina não ser, de modo geral, o enfoque das leituras críticas que passam pela intertextualidade em Ana Cristina Cesar, lendo com atenção trabalhos como o de Ítalo Moriconi, novamente, percebemos que a questão feminina aparece nesses momentos de diálogo com a tradição literária, quase como um processo natural de leitura. Ainda que marginal no livro de Moriconi, a ideia se esboça nos momentos em que o autor discute brevemente alguns poemas nos quais há referências a Baudelaire, como o 21 de Fevereiro. Na leitura de Moriconi, Baudelaire é uma figura ambígua com a qual a voz da enunciação se relaciona de maneira conflituosa, em embate. Da mesma forma, ao analisar mais profundamente a relação da poesia de Ana C. com T. S. Eliot, a questão da literatura “de mulher” acaba retornando no texto do crítico24.

Aparecendo como que espontaneamente do processo de leitura intertextual, a questão da mulher é colocada com mais abertura e profundidade, livre de algumas das contradições que parecem frear a discussão quando o tema é diretamente o feminino na escrita da poeta. Nesses momentos, parece haver a busca por uma compreensão da ideia de mulher enquanto posição também literária da autora, principalmente sob forma de posição relacional: mulher diante da escrita de homens. Mas também mulher diante da escrita de mulheres (Moriconi menciona por exemplo Clarice Lispector e Emily Dickinson). Tais análises são breves, porém significativas e suscitam a impressão de que por essa via haveria mais a se discutir, mais a falar.

Já para trabalhos como o de Marcos Siscar25, por exemplo, a intertextualidade parece vir como motor da reflexão crítica. O trabalho que Siscar desenvolve a partir justamente da imagem da ciranda26 está diretamente ligado à ideia de relação entre poetas e poesias, sublinhando a necessidade de aprofundar uma análise a partir da ideia de contexto histórico e entendendo a poesia da autora em questão não como objeto isolado mas como “caso Ana C.”, isto é, como poesia situada em uma tradição e um momento específico. Para o artigo de Siscar, intertextualidade é questão de ordem, ponto de onde se parte e estrutura formal que

24 Ítalo Moriconi mostra que muito do que se passa na escrita de Eliot vem da linguagem da fala, e isso parece

poder de alguma forma se realizar mais plenamente na escrita "feminina" de Ana Cristina, justamente pela ideia de que a confissão de intimidades faz parte do universo socialmente determinado da mulher. Para Moriconi é como se Ana realizasse um desejo que está na poesia de Eliot. Além da associação feita pelo crítico entre o

Cenas de Abril, de Ana Cristina Cesar, e o célebre The Wasteland, de Eliot, que se inicia com o verso “April is the cruelest month” (“Abril é o mês mais cruel”), ambas lidas como obras do desejo. As propostas de

aproximação por Moriconi entre Ana e Eliot serão discutidas mais longamente no terceiro capítulo. 25 Artigo de apresentação para a antologia de Ana Cristina Cesar em Ciranda da Poesia (2011).

26 “‘Ciranda’ com a qual uma coleção de poesia promete encadear poetas diferentes, uns escrevendo sobre outros, estendendo e solicitando a mão a um outro." (SISCAR, 2011: 10)

informa a proposta de leitura.

Siscar não fica nisso, mas a intertextualidade aparece como pano de fundo, explicitamente na relação que se propõe entre Ana Cristina e João Cabral de Melo Neto. Buscando entender e questionar a opinião comum segundo a qual Ana e sua geração fazem parte de um movimento anticabralino, o crítico aborda o foco principal de seu artigo: a questão da intimidade em poesia, especificamente na poesia de Ana Cristina, e a “invenção que ela faz da intimidade”. Se, por um lado, é comum pensar que a geração de Ana Cristina Cesar recusa a ideia de construção racional (supostamente cabralina) na poesia, por outro é fácil mostrar que a poeta está sempre desafiando a concepção de uma “poesia sincera”, indo na contra-mão de uma solução plácida e simples para essa discussão.

Siscar, como diversos outros críticos,27 abre caminho para sua leitura apontando os problemas da ideia de mito romântico, “problema de leitura”, segundo ele, que precisa ser corrigido. Siscar faz questão também de deixar claro que é importante não cair no polo oposto: “não se ater à ideia de uma poesia puramente (ou higienicamente) construída”.

Esse duplo movimento pode ser percebido em grande parte da crítica de Ana Cristina Cesar: parece que o leitor-crítico está sempre buscando estratégias para não cair nas “armadilhas”, procurando terreno sólido para pisar, sempre entre um ponto movediço ou outro, apontando os problemas de leitura possíveis. A crítica de Ana C. entra de modo geral no texto mapeando com cuidadosa determinação erros a evitar, para apenas depois, e por entre esse campo minado, traçar um caminho. Esse procedimento, para além de ser aquele pelo qual toda leitura atenta de literatura deveria passar, é, no caso particular de Ana Cristina Cesar, nas palavras do próprio Siscar, consequência evidente da abordagem de uma poeta que “não aceita o modo de leitura da decifração” (idem:13) e insiste sempre numa retórica que não permita ao leitor a escolha simples de um ponto de vista. (ou, como ela mesma diz “não sou personagem do seu livro e nem que você queira me recorta no horizonte poético da década passada” — Inverno Europeu)

Para Siscar existe, porém, na poesia de Ana Cristina Cesar, a afirmação de “um traço anticabralino” na forma como é tratado o cotidiano da intimidade. Segundo o autor, “o que está em jogo é o modo pelo qual o poema é colocado em relação ao outro”. (idem: 22) Ou seja, uma diferença fundamental entre os poetas está, para Siscar, na relação com a alteridade e suas expectativas: enquanto Cabral tentaria entender e confirmar o outro, Ana Cristina se colocaria como “provocante” diante desse outro. Para o crítico, é significativo que uma poeta

tão “avessa à tirania do segredo” (p. 23) inclua tão intensamente efeitos de espontaneidade em sua poesia. Siscar explica sua hipótese:

"A presença desses lances de intimidade provoca (isto é, tanto irrita quanto seduz) uma tradição poética na qual a intimidade ou o exibicionismo da intimidade são entendidos não apenas como paradigma romântico, místico ou espontâneo de poesia, mas igualmente como modo negativamente marcado da escrita, um modo ‘feminino’ (ao qual Ana C. se referia, em uma crítica ao artigo de Roger Bastide.)” (idem: 23)

É esse um dos poucos e breves momentos do artigo de Siscar em que a questão do feminino é mencionada, no caso, a partir da própria crítica da autora (em um de seus ensaios a respeito da questão da mulher na literatura) em torno da associação direta e negativa entre um modo de escrita intimista/espontânea e a definição de uma forma feminina, e portanto, menor. O crítico não entra na discussão em questão, apenas a transcreve. O mais importante para ele é justamente que as propostas poéticas (bem como a ensaística) de Ana Cristina Cesar, por meio de um uso “provocativo” desses elementos de intimidade, sugerem um questionamento dessa tradição, e daquilo que ela representa, não apenas para a poesia em geral mas para a poeta mulher.28

Próximo à conclusão do artigo, porém, há outra breve afirmação a respeito do feminino que nos poderá ser de grande valor, se nos ativermos ao que Marcos Siscar está apenas delineando para em seguida nos aprofundarmos: a partir da ideia de uma intimidade construída sim, porém sem caráter de obviedade, a abordagem de Siscar relaciona-a com a forma como a própria Ana Cristina entende, segundo ele, a questão do feminino:

“Sinteticamente, para ela, o feminino não existe como traço de adequação entre o texto e o sexo do autor: podemos encontrar elementos femininos em textos de autores homens. Mas haveria interesse, em outro nível, como sugere, em pensar num modo específico de a mulher responder a esse feminino que, sem ser exatamente uma 'ideia', nem por isso se identifica com o sexo do autor.” (SISCAR, 2011: 51) Para o crítico, é “de interesse recuperar algo dessa ideia de intimidade”, assim como compreende que Ana veja interesse em recuperar algo da questão do feminino, e da forma específica como as mulheres respondem a ele, sem associar imediatamente e essencialmente a

28 Outras três menções igualmente breves são feitas: a respeito da presença do corpo nu feminino como algo marcante na poesia da autora, desvinculado segundo Siscar das propostas da poesia feminista: "(E sabemos que Ana C. não se interessava muito pelo realismo erótico feminista)”. (p.25); a respeito da relação feita por Ana Cristina entre diário e correspondência “como produção da esfera privada, íntima e familiar, feminina de certo modo” (mas a afirmação não é aprofundada ou discutida); a respeito, enfim, das palavras de Ana Cristina Cesar sobre Whitman: “Não é por outro motivo que Ana C. evoca a figura de Whitman, dizendo que há algo nele de feminino. Isso se deve fundamentalmente à presença do interlocutor, que, na literatura, aponta para um fora” (p.47).

questão do feminino ao gênero do autor. No caso da intimidade, a proposta do crítico é de que se recupere a ideia sem deixar de apontar seus “fingimentos produtivos”, resgatando “em cada caso a crítica, a retórica e a ética da intimidade biográfica da obra poética”. (idem) Enquanto alguns autores preferem propor uma separação drástica, condenando uma leitura da obra que possa passar pelo viés do feminino, alertando de antemão um suposto perigo quase inevitável de essencialismo, Siscar deixa em aberto a ideia na sugestão de “pensar num modo específico de a mulher responder a esse feminino”, propondo uma espécie de aproveitamento possível da ideia da intimidade, e aceitando o desafio que as contradições e paradoxos da ideia nos impõem.29

Neste sentido, por um lado, Siscar enxerga o problema, delicado e de difícil resolução, do feminino, mas nem por isso procura resolvê-lo ou afirmar que seria preciso fazê-lo. Vale a pena, contudo, aproveitar a ideia de “modo específico de a mulher responder a esse feminino”, que está intrinsecamente ligado, na poesia de Ana C., à questão da interlocução, e pensamos que pode ser proveitoso definir por nossa parte de que interlocução está se falando. Trata de interlocução com leitor por um lado, e com uma tradição literária sempre mencionada pela poeta, por outro lado.

Nesta perspectiva, nosso atual trabalho defende que o feminino, enquanto marca na literatura, não está (só) nesses detalhes, aspectos ou simulacros de “feminilidade” (isto é, em temas supostamente femininos, na questão da intimidade vista negativamente — como escrita feminina, na presença importante do corpo como elemento que interrompe a escrita e vice- versa etc.). A questão do feminino se percebe na poesia de Ana Cristina Cesar também, e talvez mais importantemente, na proposta de um modo de ler: algo mais estrutural, constitutivo em sua poesia. Em outras palavras, o feminino estará na forma como ela lê e se propõe ser lida. Esta relação, por sua vez, pode ser tomada por dois lados: a partir do poema ao seu leitor, ou a partir do poema em direção aos seus lidos, por assim dizer, em movimento que retorna. Em outras palavras: o diálogo não se dá apenas com o outro enquanto leitor, como quer Siscar, mas também na forma de interlocutores anteriores ao poema, ou seja, na intertextualidade.

Além do interlocutor posterior, possível, imaginado, a proposta do presente trabalho se centrará em aprofundar o olhar sobre essa relação com interlocutores da tradição literária, os lidos, a partir de um viés que leva em conta a questão da mulher como constitutiva dessa

29 Talvez o risco de invisibilização da intimidade, tal como no feminino, tenha guiado Siscar em sua busca por discutir uma questão, quase transformada em tabu na poesia “pós-cabralina”: a intimidade é jogada para escanteio para evitar suas contradições.

relação complexa e profícua de alteridade, sem deixar de fazer parte da “política da alteridade” ressaltada por Siscar. Para ele, “A intimidade é provocativa, ou provocante, porque solicita a relação”. (idem: 31) Para nós, não há motivos para não estender o estudo da prática de intimidade da poeta a autores da tradição literária, como Whitman, Baudelaire, Mansfield. Muitas vezes poderíamos entender a intimidade como essa expressão de afeto, posta em Baudelaire querido30, mas em outros casos a intimidade se dá num sentido mais formal: no sentido da proximidade que Ana se permite em seus poemas com o texto desses autores, a proximidade da pouca cerimônia com a qual se apropria de versos e trechos dessa tradição, colocando-se muitas vezes figurativamente dentro das aspas desses autores, invadindo, por assim dizer, seu espaço e deixando que eles invadam também o espaço dela, o poema, repleto de misturas entre relatos de intimidade cotidiana e menções a obras da tradição.

Nosso esforço específico consistirá em fazer da prática interlocutora relativa à tradição uma atitude feminina de Ana Cristina Cesar, e neste sentido podemos dizer que não há nada de “essencialmente feminino” em sua escrita, pois o feminino não está na essência, e sim justamente na relação que se estabelece partindo de uma situação que podemos qualificar de leitura enquanto mulher, ou ainda “modo particular das mulheres” de lidar com aquele elemento supostamente feminino.

O gesto que pretendemos fazer nosso já se esboça, porém, nas propostas de Maria Lucia de Barros Camargo em Atrás dos Olhos Pardos.