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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.4. Mulher, sempre uma biografia?

Em 1996 Ítalo Moriconi publica Ana Cristina Cesar: O sangue de uma poeta, proposta de ensaio biográfico e crítico sobre a poeta carioca. Nas palavras do próprio Moriconi, tratam-se de “anotações para uma futura biografia”. Misturando o ensaio biográfico, crítica literária e seu testemunho, Ítalo Moriconi constrói um texto que passa pela sua posição de proximidade enquanto contemporâneo da poeta para discutir, por meio de um tom íntimo, questões relevantes não apenas para pensar a obra de Ana Cristina, como de toda uma geração. O livro de Moriconi em muitos momentos se caracteriza pelo testemunho direto, escrito em primeira pessoa, corajoso e sensível na tentativa de se aproximar da poesia e da vida da autora. Existe na obra um núcleo não muito extenso focado especificamente na análise literária propriamente dita, sempre tendo em vista as questões biográficas, porém de modo que estas não limitem a leitura mas acrescentam a ela. É nesse contexto que Moriconi se aprofunda na relação da obra de Ana Cristina com T. S. Eliot, pouco mencionada pela crítica e no entanto bastante relevante, a qual será de grande importância para algumas das propostas da presente pesquisa.

acompanhadas de uma análise do contexto no qual Ana Cristina Cesar se insere: Moriconi discute a universidade no Rio de Janeiro em relação ao contexto paulista, os grupos e posicionamentos políticos e estéticos do contexto da época e os conflitos e encontros entre academia, poesia, jornalismo e militância vividos por Ana e sua geração. Nessa busca de uma contextualização crítica (um olhar distanciado e ao mesmo tempo próximo) a questão de gênero está sempre presente. Ítalo Moriconi reconhece e dá bastante visibilidade para os problemas enfrentados por Ana Cristina Cesar enquanto poeta mulher, e interpreta por essa chave alguns dos conflitos inclusive acadêmicos da época (por exemplo o texto em que Ana Cristina confronta Luis Costa Lima na PUC, entendido por Moriconi como um enfrentamento por ela da “estrutura masculina da liderança intelectual”), além de ter sempre em mente os problemas do “machismo da malandragem carioca”, por exemplo. Dessa forma, no que tange o aspecto biográfico, a obra do autor comenta extensamente a questão da mulher vivida pela poeta. Reconhecendo os problemas do “mito Ana C.”, Moriconi afirma:

"Se Ana chegou a um impasse e, como Torquato, acabou tendo a biografia identificada à eliminação voluntária da própria vida, e não à sua revolução permanente, como o titânico Oiticica, isso não se deverá exclusivamente a fatores pessoais, mas a inibições impostas por um contexto adverso. Ela era mulher. Ela cresceu no apogeu da ditadura. Ela era Alice através do espelho, querendo exercer uma curiosidade existencial que aos poucos viu não ser possível dentro dos limites estritos em que funciona o tão decantado cosmopolitismo carioca." (MORICONI, 2016: pos 46)

O gênero entra como um dos fatores que limitam e reduzem as possibilidades da autora de ser entendida pelas gerações futuras como um marco artístico, sendo de certa forma reduzida ao marco biográfico do suicídio. A questão da mulher, bastante presente no livro de Moriconi, vem sempre ligada à questão biográfica, à situação concreta da poeta, da acadêmica, ao contexto de vida e produção artística e intelectual da autora. Até que se coloca a questão: “mas o que é uma mulher de letras?”. Através do diálogo entre biografia e produção escrita, a questão configura-se então para o crítico como impasse. Vale ressaltar que o termo impasse não está no texto de Moriconi especificamente e fomos buscá-lo nos dois ensaios de Ana Cristina Cesar a respeito de mulher e literatura, onde se lê a pergunta: como falar, e, aliás, deve-se falar a palavra mulher para falar da questão literária? Mas Moriconi esboça certa resposta:

"O que é ser mulher? A poesia de Ana quer trabalhar no espaço difícil dessa dúvida, mas não como questão abstrata, e sim como questão corporificada num outro regime de subjetividade, que seu texto encena o tempo todo. Um regime revolucionário, uma utopia em que o comportamento ou a identidade impróprios deixariam de sê-lo por não haver um próprio que lhe pudesse servir de parâmetro. Por isso soam incompletas as leituras que buscam amarrar o

texto de Ana a um projeto de identidade feminina. Assim como também não convencem as leituras tanto do texto quanto da vida de Ana que buscam prendê-la, qual borboleta de cientista, ao quadro da homossexualidade chapada.”(idem: pos. 1359)

A problemática da diferença constitutiva que se coloca em qualquer discussão que se preze sobre mulher, dentro ou fora da literatura, pressupõe justamente esse lugar problemático apontado por Moriconi, que não nos parece necessariamente particular a Ana Cristina enquanto poeta, se bem que presente e importante para a sua poesia. Dizendo de outra forma: para discutir a questão feminina em qualquer âmbito social e artístico será necessário confrontar-se com essa preocupação levantada por Ítalo Moriconi, tomando cuidado para não "colar" a obra de forma simplista a um projeto de identidade, que simplesmente não pode ser constituído dessa forma ao tratar a questão filosófica da mulher. Arriscamos ainda: por trás do diagnóstico de impasse, não se trata de não reduzir Ana Cristina Cesar apenas, e sim de não reduzir a complexa discussão a respeito da mulher.

Observemos que, talvez, essa questão levantada por Moriconi, a respeito especificamente da obra de Ana C., seja justamente a mesma que perpassa a discussão mais geral da questão feminina, tal como a podemos entender a partir, por exemplo, de Beauvoir e Irigaray: como não reduzir a mulher, por um lado, ao diferente/inferior, e como, por outro lado, não torná-la invisível diante da máscara de pseudo-igualdade de uma neutralidade no fim das contas masculina?

É, porém, quando o crítico entra mais intensamente na leitura dos poemas propriamente ditos que a questão do feminino na escrita de Ana Cristina toma corpo no trabalho de Moriconi. Na análise do verso “Posso ouvir minha voz feminina: estou cansada de ser homem”, ele centra a seguinte ideia:

“(...) a questão de gênero na poesia de Ana C não funciona se analisada na pauta dos jogos rígidos de identidades fixas e essencializadas, mas ‘fora da pauta’, para usar uma expressão dela. Na clave errante do travestismo como modo de vida imaginário associado à máscara irônica e desconstrutora”. (idem) A ideia de “travestismo como modo de vida imaginário” em Ana Cristina Cesar está ligada, para o autor, a uma constante desconstrução e reconstrução de identidades que não se fixa, manifestando-se num processo de “negociação e conflito entre masculino e feminino”. O verso discutido por Moriconi está no poema 16 de Junho, de Cenas de Abril (CESAR, 1998: 102). A leitura proposta pelo crítico entende esse verso como presença de um ciclo de desconstruções e reconstruções da identidade, que não se fixa ou se resolve em masculino ou feminino, sempre “fora da pauta” da identidade de gênero. Talvez haja, porém, algumas outras possibilidades de leitura para esse verso, pensando a questão da mulher: Há, por um

lado, uma afirmação de masculinidade de um sujeito feminino (gênero feminino do adjetivo: cansada), mas do qual a voz da enunciação está, justamente, cansada, com o qual está insatisfeita. Encontramos aqui a mise em abyme já conhecida da autora, seu labirinto de perguntas com poucas respostas.

É possível ler o verso de outra forma? Poderíamos entender que se trate justamente do cansaço da mulher de ser homem no sentido de ser incluída (inclusive por si mesma) no neutro-masculino, que a reduz, pretendendo universalizar? Para existir enquanto mulher num universo resguardado para homens (a literatura sendo apenas um exemplo desses espaços, como o próprio Moriconi aponta tantas vezes em seu livro), é preciso ser entendida como homem. Mas essa posição traz cansaço, desgaste. O verso é crítico da dualidade, e também do lugar do neutro, de onde se quer sair. Em Mulher: Uma Essência Vazia Mas Resistente? Cristina Henrique da Costa afirma: “Assim como o pensamento neutro é homem — é preciso aceitar as consequências lógicas dessa premissa —, o pensamento crítico do neutro é mulher.” (COSTA, 2014: 13)

A ideia apresentada aqui não contradiz a análise de Moriconi: trata-se de fato de uma “negociação e conflito entre masculino e feminino”, e a proposta de leitura apresentada não pretende tampouco buscar uma “identidade feminina” rígida (no sentido que critica Moriconi, entendendo o conceito como essencialista e redutor). O que propomos é, inversamente, uma segunda camada de significado, uma camada na qual existe algo de resistência na constante desconstrução: em algum sentido, o feminino “retorna” (como a própria Ana C. afirma em um de seus artigos sobre a questão15), e resiste ao neutro invisibilizador. Não se trata, portanto, de reduzir a poesia de Ana C. à questão da mulher, mas de abrir a porta a uma série de significados resistentes à invisibilidade, que dizem respeito à questão da mulher em sua escrita.

"Na sociedade patriarcal, a identidade da mulher, enquanto projeto supostamente separável da função de presa sexual, provedora do homem, máquina reprodutora, é mascarada cosmética, desperdício da beleza, e ameaça a lógica da poupança afetiva que chamamos de felicidade ("plain happiness", atacará Ana no prefácio à sua tradução de Bliss). O feminino vem como suplemento e excesso, artifício e aparência. O feminino é imagem projetada." (MORICONI, 2016. pos.1370)

O que entendemos então de sua proposta de leitura é que ao mesmo tempo que Ítalo

15

Em ensaio de 1982 Excesso Inquietante, a respeito do livro de Marilene Felinto, Mulheres de Tijucopapo, Ana Cristina afirma em suas conclusões: “Nesse sentido, é possível retornar, desenredada, para o pouco-a-mais de loucura das mulheres: no retorno o feminino começará a falar loucamente ‘em inglês’, isto é, mais

Moriconi acusa uma crítica superficial que amarre a escrita de Ana Cristina a um projeto de feminino, de mulher, entende também que nesse jogo das propostas poéticas de embate entre identidade masculina e feminina (como no exemplo do verso citado), e na forma de construir sua escrita de maneira geral, existe também um aspecto de resistência ao vazio, ao silêncio. Esse “desperdício da beleza”, não atrelada ao feminino-produto, ameaça justamente a lógica da “poupança afetiva”, a lógica da norma. Aqui a oposição é entre “projeto de identidade”, falso segundo Moriconi, e “imagem projetada”, suplemento, excesso. Esse excesso, porém, não é o que se deve jogar fora, mas justamente a resistência ao apagamento: a resistência não está na ideia de “essência feminina”, “identidade feminina”, mas justamente no excesso, que não cabe nas normas, no acabamento. É desse modo que faz sentido acrescentar à análise do verso de Cenas de Abril por Moriconi essa segunda camada: além da ideia de “travestismo imaginário” do qual nos fala o crítico, a ideia de um feminino que retorna (“mais literariamente”, como afirma Ana C. em um de seus ensaios), a partir justamente desse excesso que desafia as normas de gênero e por isso desafia o silêncio, a invisibilização. A afirmação “Estou cansada de ser homem” não propõe uma identidade, muito menos um retrocesso a algum tipo de estágio de existência feminino anterior: é um caminho que transcende, aponta para algo no horizonte, que está para além da ideia de ser socialmente, enquanto mulher, um homem.

Podemos desenvolver um pouco mais essa ideia de feminino que retorna, ou que aponta para um terceiro lugar da mulher, a partir do mesmo artigo de Cristina Henrique da Costa citado anteriormente: Costa levanta a possibilidade de ler Ana Cristina Cesar como possível Tirésias-mulher. Procuremos entender tal proposta a partir do exemplo poético acima: tendo passado a ser homem (já que, em princípio, é aceitando a condição de apagamento feminino dentro do neutro que a mulher encontra parcos espaços na sociedade), parece haver nesse sujeito singular o desejo de voltar a ser mulher. Mas não é a mesma mulher primeira, há algo de diferente aí: a voz feminina ouvida por ela aparece como um anúncio, manifestação do feminino que retorna. O lugar de tal voz no poema da autora é ambíguo: é algo inevitável que se anuncia, algo negativo que se desejaria evitar? Ou, pelo contrário, a voz feminina se anuncia como resgate, saída? O verso de Ana Cristina parece apontar mais na direção da segunda opção, apesar de manter-se a ambiguidade, já que o eu feminino do texto está cansada de ser homem. De qualquer forma a ideia da resistência desse feminino está presente em ambas as leituras.