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2. Uma Discussão com a Fortuna Crítica: mulher e/ou intertextualidade

2.8. A leitura das vampiragens

Primeira tese acadêmica a respeito de Ana Cristina Cesar, defendida em 1990, posteriormente publicada como livro, Atrás dos Olhos Pardos, de Maria Lucia de Barros Camargo, é ainda hoje uma das obras mais completas e importantes a respeito da poeta. Apesar de sua introdução apontar o interesse pela questão feminina na literatura de Ana Cristina (“Atração por essa instigante palavra de mulher e alguma perplexidade com essa poesia que eu ainda não sabia definir (…)"), este não é especificamente o viés principal da leitura de Maria Lucia. Segundo a própria autora seu texto seria um “ensaio que foi sendo

30 Em “abomino Baudelaire querido”, por exemplo, verso do poema 21 de Fevereiro, percebe-se também aquilo que Siscar entende como uma “relação de dissonância e não de equivalência, de desencontro e não de afinidade, com o leitor” (35), num sentido amplo, enquanto “interlocutor poeta da tradição”, e ainda, enquanto interlocutor que definiu primeiro a relação de interlocução, justamente com a qual se mantém por sua vez uma relação de dissonância.

construído, em grande parte, à imagem do seu objeto: em fragmentos, em outros pequenos ensaios, abordagens variadas de múltiplas facetas. Construiu-se como um olhar que vagueia pela paisagem heterogênea, buscando fixar-se”. (CAMARGO, 2003: 16)

Em meio a esse “olhar que vagueia” a questão da mulher ganha espaço de destaque no capítulo que se refere especificamente aos ensaios escritos pela poeta carioca: “Ana faz o ensaio”, do qual o item “Leitura do feminino” é parte central. A questão da intertextualidade, por sua vez, é discutida mais a fundo de modo separado, no capítulo Vampiragens. Nele, a questão feminina também está presente, embora o foco principal não seja o desenvolvimento dessa questão. Vale a pena nos aproximarmos de ambos os capítulos com mais cuidado, para compreender de que forma esses dois temas (a questão do feminino e a questão da intertextualidade) são discutidos pela autora e verificar se há um esboço de pontos de contato possíveis por meio dos quais se possa aproximar a discussão dos dois temas. Comecemos pelo segmento que discute a questão do feminino mais diretamente.

No capítulo Ana Faz o Ensaio, Maria Lucia segue uma proposta de ler, nos comentários de Ana Cristina a respeito de outros autores, pistas para a leitura e compreensão da obra da própria poeta.31 Camargo propõe a Leitura do feminino, na qual discute dois textos da poeta carioca centrados na questão da mulher na literatura: Literatura e Mulher: Essa palavra de luxo (1979), e Riocorrente, depois de Eva e Adão (1982), que estão em explícito diálogo. "Embora seja uma questão forte na poesia de Ana Cristina Cesar, a literatura feminina só foi tratada no ensaio em dois únicos textos.” (idem: 64) É interessante notar que Maria Lucia deixa de fora o já mencionado Excesso Inquietante, talvez justamente por se tratar de uma resenha, e por isso não se enquadrar na sua discussão sobre a escrita ensaística da autora. Por um motivo ou outro os tais excessos inquietantes estão de fora da discussão de Maria Lucia, excedentes por excelência.

No “primeiro texto” (ensaio de 1979) trata-se de uma discussão a respeito das “damas da poesia brasileira”: Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles, partindo delas para trazer à tona alguns estereótipos a respeito das imagens “elevadas”, da “dição nobre” etc., associados à poesia, de um lado, e à própria imagem da mulher, de outro. Essa é a porta de entrada: deve- se ou não afirmar que tal ou tal obra foi escrita por mulher? Existe de fato essa diferença? Ela é preciosa ou nociva? São perguntas que o texto de Ana Cristina levanta.32

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“De que e de quem Ana Cristina estará realmente falando senão de si mesma?” (idem: 60), pergunta Maria Lucia referindo-se ao excerto do ensaio Nove bocas da nova musa, no qual Ana discute características da “nova poesia”.

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O impasse da questão feminina fica bastante explícito nesse ensaio, como podemos entender pelas observações de Maria Lucia a respeito das múltiplas vozes de um texto, no qual vê um “duplo movimento: de um lado, a acusação feita de ironias ao aspecto íntimo, ao velado, (ao temário erudito e fino e à forma ortodoxa e antiga (...)). De outro lado, a cobrança da possível poesia de ‘mulher moderna’ e de uma nova leitura." No fundo, segundo Maria Lucia, o que se processa aí é “a procura de sua própria poesia, com outras faces de mulher.” Ana também está, por meio desse ensaio, buscando saídas possíveis para o impasse. Por sua vez, no “segundo texto” (ensaio de 1982), Ana afirma que ali “estava travada uma disputa (ou uma armadilha)”. Essa ideia da armadilha aponta de certa forma para a consciência desse impasse, do fato que essa batalha talvez seja mais que tudo uma armadilha da qual é preciso se desvencilhar, ao invés de encontrar saída em um dos lados da moeda.

O bloco VII do ensaio é creditado posteriorment, no item Dramatis Personae, a “uma entrevista concedida pela brasilianista Sylvia Riverrun, da Universidade do Texas, sobre as poetisas C.M e H. L., em maio de 1977”. (CESAR, 1999: 232). Convidada especial por vários motivos, Sylvia Riverrun é “uma sutil ficção” (CAMARGO, 2003: 70), criação (inconfessada, aliás) de Ana Cristina Cesar. “Talvez uma de suas máscaras”, por onde se afirma o seu próprio questionamento, travestido por essa figura que talvez possua mais autoridade, como observa Maria Lucia: estrangeira, acadêmica, detentora da “autoridade acadêmica legitimadora do discurso crítico”. (idem). Para Maria Lucia, “A fala de Sylvia Riverrun mistura-se à de Ana Cristina, como um alter-ego”, e sua importância se dá principalmente na medida em que a presença dessa máscara, personagem fictícia, corrompe mais diretamente a forma do ensaio, o discurso crítico, acadêmico, misturando ficção e realidade, texto e vida. É interessante porém observar a escolha de Maria Lucia por afirmar que as palavras de Riverrun “se misturam” às de Ana C.. Ora, se Riverrun não existe, como podem suas palavras se misturarem às de Ana C.? Não seria mais justo afirmar que as palavras de Riverrun são as mesmas palavras de Ana Cristina?

O que leva à questão: a que serve, no texto, a criação de uma personagem? Se por um lado a fala de uma figura de autoridade externa à autora pode legitimar as afirmações denominado “errata” e outro, ao final denominado “Dramatis Personae”. É apenas nesse último item que entendemos que cada bloco do texto se refere não a ideias de Ana Cristina Cesar, mas a referências de diversos autores, teóricos e críticos (Roger Bastide, José Paulo Moreira da Fonseca etc.), de autoras como Clarice Lispector, e até de um panfleto feminista. Como essas vozes só se revelam ao final da leitura, como Dramatis Personae (interessante que todos sejam vistos como personagens nesse ensaio-ficção), o leitor sabe apenas a posteriori a que voz se refere cada fala. Aí mesmo já está uma chave para pensar a questão da mulher: sempre em diálogo com essas tantas vozes, nesse “chá das cinco”, como a própria Ana Cristina se refere posteriormente ao texto, que ela organiza (de forma propositadamente bastante caótica).

proferidas por ela, ao perceber-se a ficção questiona-se também a autoridade da legitimação. Em se tratando de uma questão complexa e cheia de armadilhas e impasses como a da mulher, pode ser mais fácil (ou mesmo mais possível) colocar certas afirmações na voz de uma personagem em vez de escolher atrelar as ideias ao ponto de vista autoral fixo. No momento em que Ana constrói seu texto como uma conversa entre diversas vozes já se esclarece a escolha pela pluralidade de pontos de vista, que podem argumentar, contrários uns aos outros, mas não se colocam de forma hierárquica. Quando ela escolhe acrescentar a essas vozes a sua própria, na forma de uma personagem, constrói para si a liberdade de afirmar e des-afirmar: Sylvia Riverrun não é ninguém, é apenas uma invenção, uma brincadeira, e por isso pode, como o bobo da corte de Poe, que Ana discute em outro interessante ensaio (CESAR, 1999: 18233), se utilizar da ficção para denunciar a farsa vivida pela corte, ou, no caso do texto em questão, se utilizar da ficção para expressar um ponto de vista, sem precisar assumir nenhuma responsabilidade naquilo que afirma.

A voz dessa personagem no texto resgata a questão supostamente fechada pelas afirmações de Bastide (bloco VI do ensaio): enquanto a voz de autoridade acadêmica masculina afirma que “No fundo, a ideia de procurar uma poesia feminina é uma ideia de homens (…)", Sylvia Riverrun entra no bloco VII justamente para trazer de volta a ideia que “o fato de serem mulheres conta”. Para Maria Lucia, o bloco atribuído a Sylvia “Defende posições que podem ser reconhecidas na prática poética de Ana Cristina Cesar. É, assim, uma fala de ambas, que acabam sendo uma só e mesma coisa: uma nova fala de mulher”. (CAMARGO, 2003: 71)

Por que Ana Cristina Cesar não revelou no corpo dos textos a ficcionalidade de Sylvia? Mesmo no “segundo texto”, centrado em boa parte em “contar a história de Sylvia”, não há confissão da ficção. O que há, porém, são frases irônicas, e duas indicações bastante claras ao leitor: a primeira no título, a segunda bem no final do texto, quando Ana se pergunta: “A tempo: por onde andará Sylvia (“riverrun, past Eve and Adam”...?) Tenho saudades”. E se não for suficiente para que o leitor entenda a referência do nome da personagem, Ana Cristina revela a origem na última nota do texto: “‘Riocorrente, depois de Eva e Adão…’: primeiras palavras do Finnegans Wake, na tradução de Augusto de Campos”. (CESAR, 1999: 248) O título do ensaio retorna ao nome fictício, inspirado pelo texto de Joyce. Observamos que, como nos poemas repletos de referências de Ana Cristina, o movimento é duplo: esconder e revelar. E já que o jogo é esse, é interessante observar algo

que fica de fora do texto de Maria Lucia. A referência do sobrenome é explícita: trata-se de Joyce, especificamente o início de Finnegans Wake. Mas haveria uma referência literária para o nome da personagem? Tratar-se-ia de Sylvia Plath? O nome da personagem pode ser entendido, portanto, como essa mistura entre referências de literatura em língua inglesa, masculina e feminina? Sylvia Plath é um nome bastante marcante e significativo quando pensamos em poesia de temática especificamente feminina. Por sua vez, o sobrenome que se refere especificamente a Joyce talvez faça parte justamente desse pensamento das vozes da tradição: feminina no primeiro nome, masculina no sobrenome, o nome de autoridade.

A partir da análise do “segundo texto” Maria Lúcia atenta ao fato que, se por um lado as palavras de Sylvia Riverrun parecem se colocar como as próprias posições de Ana Cristina Cesar, por outro o fato de serem vinculadas a uma personagem tão detalhadamente descrita (existe no ensaio praticamente um currículo de Sylvia) e inventada anuncia a ironia: “a falsa atribuição corrói de algum modo a seriedade das posições e faz com que tudo o que parece ser não o seja e vice-versa. O ensaio é ficção, mas não o é completamente. A ficção é ensaística, mas não de todo. Tudo fica nas margens”. (CAMARGO, 2003:79)

Mais perto do final do capítulo de Maria Lucia retorna-se às afirmações iniciais de Ana C em "Riocorrente, depois de Eva e Adão": que em sua obra mais recente, Angela Melim teria escrito de forma mais masculina do que costumava escrever. As conclusões de Maria Lucia vão na seguinte direção: o mais importante seria então não uma questão do gênero do autor ("categoria fugidia" segundo a própria Ana), mas a existência de textos femininos e masculinos provenientes de uma mesma autora mulher, por exemplo. Novamente fazendo a ponte entre os argumentos de Ana ensaísta e aquilo que podemos extrapolar sobre sua própria poesia, Maria Lucia afirma:

“Nessas considerações, podemos ler a tentativa de auto-definição. Ou melhor, de busca da identidade de uma palavra, uma linguagem, uma poesia. Feminina. A sua própria. Uma poesia de mulher moderna que ultrapassa o discurso 'feminista'. Talvez se possa dizer que há uma busca de uma palavra ‘pós-feminista’, capaz de resgatar uma feminilidade diferente, que associa as conquistas da liberação sexual, das lutas da mulher, com a preservação da ‘porção mulher’, sem perder, contudo, sua porção-homem. Preservação das ‘coisas de mulher’. Do ponto de vista feminino. E sempre de frente para o texto.” (CAMARGO, 2003:82)

A partir dessa herança de leitura, tentaremos articular a leitura de mulher à questão da intertextualidade. No texto de Maria Lucia, a importância da intertextualidade, para pensar especificamente a escrita a partir da posição feminina na literatura, abre espaço para uma discussão que aparentemente está pouco desenvolvida:

intelectualismo. Muito ao contrário: sua linguagem, sua palavra de mulher constrói-se sobre as marcas da tradição. (…) Seu texto se faz sobre restos de poemas famosos, sobre falas geralmente masculinas transformadas pela leitura da nova mulher. Seus poemas, assim como seus ensaios, são reinvenções”, afirma a pesquisadora. (idem: 71) Associar tão diretamente a questão feminina à construção da linguagem sobre outras palavras aprofundando a questão, retomada como “outro nó na busca da palavra da mulher: a relação com o modelo masculino”, parece, de fato, fundamental.