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3. Da Constituição negativa feminina ao corte intertextual e criativo de uma saída

3.3. Mímese criativa: fendas na pedra de James Joyce

Em Pouvoir Du Discours (Ce Sexe Qui N'en Est Pas Un), Luce Irigaray esboça algumas possibilidades teóricas para pensar, ou melhor, repensar o discurso filosófico a respeito do próprio discurso. Por meio de uma releitura interpretativa dos discursos filosóficos, que se propõe psicanalítica, no sentido de prestar atenção às formas como o inconsciente funciona em cada filosofia (IRIGARAY, 1977: 75), Irigaray propõe a possibilidade de uma necessária reabertura do discurso filosófico, no intuito de recuperar o

38 “Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no índice onomástico os ladrões de quem roubei

versos de amor com que te cerco./ Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar a ladroagem”. (CESAR, 2013: 281)

que as figuras desse discurso devem ao feminino. O domínio masculino do logos filosófico depende, em grande parte, do seu poder de reduzir a alteridade ao que a autora denomina como “economia do Mesmo” (Lembrando a ideia ilusória de inclusão do feminino em uma linguagem do neutro — filosófico, literário, etc —, que pode apenas ser masculino). Pois bem, esse movimento de releitura analítica do pensamento filosófico, proposto por Irigaray, não é suficiente, diz ela, para solucionar o problema da articulação do sexo feminino no discurso (idem: 76). “Como podemos nos inserir numa sistematicidade tão coerente?” (idem: 74)39. O caminho proposto por ela, ao menos numa fase inicial, seria justamente aquele historicamente e tradicionalmente devotado à mulher: a mímica. Para Irigaray é preciso “assumir o papel feminino deliberadamente”, converter uma forma de subordinação em afirmação, para começar a subvertê-la.40

A proposta ousada de Luce Irigaray apresenta uma chave de leitura interessante para pensar a relação de Ana Cristina Cesar com a tradição literária e as formas como a autora cria, esteticamente, um campo de potencialidade discursiva feminina. Para Irigaray, jogar com a mímese pode ser um modo como a mulher busca recuperar o lugar de sua exploração por meio do discurso, sem se permitir ser reduzida a ele. Um dos poemas mais significativos do trecho entre os anos 1979 e 1982, onde a profusão de referências é grande, é intitulado Ulysses:

ULYSSES

E ele e os outros me vêem.

Quem escolheu este rosto para mim? Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo estilete da minha arte tanto quanto eu temo o dele.

Segredos cansados de sua tirania tiranos que desejam ser destronados Segredos, silenciosos, de pedra, sentados nos palácios escuros de nossos dois corações:

segredos cansados de sua tirania: tiranos que desejam ser destronados. o mesmo quarto e a mesma hora

39 Tradução própria. No original: “Car comment s' introduire dans une systématicité aussi cohérente?" Na tradução para o inglês, de Catherine Porter, lemos "For how can we introduce ourselves into such a tightly- woven systematicity?”

40 “Il s'agit d'assumer, délibérément, ce rôle. Ce qui est déjà retourner en affirmation une subordination, et, de

toca um tango uma formiga na pele da barriga,

rápida e ruiva,

Uma sentinela: ilha de terrível sede. Conchas humanas.

Estas areias pesadas são linguagem. Qual a palavra que

todos os homens sabem?

É importante frisar que o poema é denso em imagens e possibilidades, apesar de sua forma recortada, com estrofes esparsas de apenas um ou dois versos, parecendo isoladas em seus sentidos, “ilhas de terrível sede”. A proposta aqui será um recorte específico, esboçando uma possível travessia dentro do labirinto: uma rota para pensar, a partir da apropriação das palavras de Joyce, a saída do impasse, que foi acima longamente descrito41. O poema não parece apresentar muita esperança, não se respira muito na leitura: há imagens estanques (mesmo quarto, mesma hora, segredos de pedra, palácios escuros, sentinela, ilha de terrível sede, areias pesadas etc), duras e escuras, e de difícil comunicação. O empate outra vez, do início, poderia ser lido como mais uma, ou a primeira imagem de impasse do poema, mas é possível outra leitura.

Comecemos do início: o título indica a chave de leitura prescrita: o diálogo com James Joyce está estabelecido, e por meio dele, com a Odisséia de Homero, e por isso, com toda a tradição (masculina) da literatura. As camadas de leitura e escrita não são apenas múltiplas: remontam, de leitura em leitura, de leitor em leitor, até Homero, lido, imagina-se, mesmo que não literalmente, por todos os escritores da tradição ocidental desde então (“Qual a palavra que todos os homens sabem?”42). O tom de relação com algo antigo, ruínas de pedra, castelos escuros, o tom de passado distante do poema se articula perfeitamente no título, já que este traz, ao trazer Ulysses, toda a bagagem pesada (a imagem cabe) da tradição literária: “essas areias pesadas”.

41 A análise aqui apresentada não esgota nem pretende esgotar as possíveis relações de intertextualidade entre

Ana Cristina Cesar e James Joyce, até porque lemos neste poema imagens que, mesmo diretamente apropriadas do autor, se apresentam como espécie de metonímia de uma relação proposta com o cânone literário, para além de uma relação específica com o próprio Joyce. Há outros exemplos de menções ao autor na obra da poeta carioca, como foi mencionado no primeiro capítulo, por exemplo no título do ensaio

Riocorrente: depois de Eva e Adão, além do próprio nome fictício da "brasilianista do Texas" Sylvia

Riverrun.

42 Vale lembrar o poema Toda Mulher, que se encontra, aliás, apenas algumas páginas em seguida de Ulysses,

O poema se constitui, quase em sua totalidade, de palavras apropriadas por Ana Cristina Cesar, diretamente do texto de Joyce. São frases, trechos e expressões que se encontram espalhados na leitura da primeira parte da obra de Joyce, entre as páginas 9 e 88, com a exceção da estrofe que se inicia com o verso “toca um tango”. O trecho em questão contém um grande número de palavras no gênero feminino, e é o único momento do poema em que há uma imagem de maleabilidade (“pele da barriga”), contraste com os palácios de pedra. A hipótese de que estes seriam os únicos versos do poema que não foram vampirizados de Joyce, seria coerente com essa sensação de que uma imagem diferente do restante passa pelo poema nessa estrofe, como que infiltrada, mas demasiadamente breve para que se possa atentar: a formiga rápida e ruiva. Não se pode afirmar, porém, ainda com toda certeza, que não se trate de trecho roubado, apenas menos evidente, já que a identificação torna-se ainda mais difícil pelo fato de serem trechos traduzidos pela própria Ana Cristina.

É interessante observar que todas são traduções da poeta, pois alguns termos e construções divergem drasticamente das escolhas de Antonio Houaiss, autor da única tradução para o português de Ulisses existente na época da escrita do poema de Ana Cristina Cesar. Mesmo numa comparação com as traduções posteriores, apenas a título de curiosidade, as escolhas de Ana Cristina Cesar são bastante divergentes em relação à tradução tanto de Bernadina Pinheiro (2005), como de Caetano Galindo (2012), o que atesta a criatividade da poeta enquanto tradutora, além de contribuir para a percepção de que as escolhas de tradução de Ana Cristina Cesar estão aqui intimamente ligadas à criação de sentido que opera na construção de seu poema, feito de trechos de Joyce, lidos, interpretados, traduzidos, recriados por ela.

Para facilitar a leitura, segue esquema onde é possível visualizar, à esquerda, as estrofes do poema de Ana Cristina Cesar, e à direita os trechos apropriados da obra de Joyce. A título de curiosidade incluí também na segunda estrofe as três traduções para o português, para que tenhamos exemplos da diferença das escolhas de Ana Cristina Cesar em relação aos tradutores da obra de Joyce.

ULYSSES (Ana C.) Original e traduções

E ele e os outros me veem.

Quem escolheu este rosto para mim?

“As he and others see me. Who chose this face for me?”

Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo estilete da minha arte tanto quanto eu temo o dele.

“Parried again. He fears the lancet of my art as I fear that of his”

(Original p. 9 - não em sequência)

“Parados de novo. Ele teme o escalpelo da minha arte como eu temo o da dele” (Antonio Houaiss, 1966)

“Aparado o golpe novamente. Ele teme o bisturi da minha arte” (Bernardina Pinheiro, 2005)

“Aparando de novo. Ele teme a lanceta de minha arte” (Caetano Galindo, 2012)

Segredos cansados de sua tirania tiranos que desejam ser destronados

(repetição e inversão da ordem do trecho abaixo)

Segredos, silenciosos, de pedra, sentados nos palácios escuros de nossos dois corações:

segredos cansados de sua tirania: tiranos que desejam ser destronados.

“Secrets, silent, stony sit in the dark palaces of both our hearts: secrets weary of their tyranny: tyrants, willing to be dethroned.” (p. 44)

o mesmo quarto e a mesma hora “The same room and hour - the same wisdom: and I the same.” (p. 53)

toca um tango uma formiga na pele da barriga,

rápida e ruiva,

Uma sentinela: ilha de terrível sede. Conchas humanas.

“A sentinel: isle of dreadful thirst” (p. 72)

“Rengsend: wigwams of broken steersmen and mas- ter mariners. Human shells.” (p.73)

Estas areias pesadas são linguagem. “These heavy sands are language tide and wind have silted here.” p.80

Qual a palavra que todos os homens sabem?

“What is that word known to all men.” (p. 88)

(“Love, yes. Word known to all men.” p. 351)

É possível perceber, por meio dos exemplos de tradução associados à segunda estrofe, em primeiro lugar, que a única tradução para o português publicada à época da escrita do poema, de Antonio Houaiss, não coincide com a tradução presente no poema de Ana Cristina Cesar. Aliás, é provavelmente a mais distante. Dessa forma, trata-se de uma informação a respeito da leitura: Ana Cristina está se referindo diretamente à leitura de Ulysses no original (confirmando a hipótese sugerida pelo título do poema). Em segundo lugar, percebe-se também que algumas escolhas feitas pela autora diferem também daquelas propostas posteriormente por outros tradutores. Tomemos a palavra estilete, por exemplo. No texto original temos o termo lancet, que se refere a um instrumento cirúrgico cortante, presente no texto de Joyce de modo figurativo, pois na cena a ideia de ameaça cortante não é literal, trata- se de um diálogo de provocações entre Stephen e Buck Mulligan. Apesar do tom figurativo, tanto a tradução de Houaiss como as outras que se seguiram buscam manter o significado do instrumento cirúrgico, mesmo que cada tradutor tenha escolhido uma palavra diferente: escalpelo, bisturi, lanceta. Apenas Ana Cristina Cesar escolhe transformar esse objeto, mantendo perfeitamente o significado cortante de ameaça da frase original de Joyce, mas transformando sutilmente esse instrumento e sua serventia: o escalpelo/bisturi/lanceta é feito para cortar a carne humana, enquanto o estilete é feito para cortar papel. A escolha deste termo é exemplar de uma escrita poética que se vale da tradução como procedimento criativo, em que significados são apropriados e transformados engenhosa e sutilmente.

Além dos processos de tradução e recorte do texto original, que abrem novas portas de leitura em palavras antigas, existe também uma escolha de inversão de ordem, repetição e, portanto, destaque entre a terceira e quarta estrofe do poema. A terceira estrofe é composta pelos últimos dois versos da estrofe seguinte, adiantados e portanto destacados. Se o poema de Ana Cristina segue em alguma medida a ordem de Ulysses de Joyce (como percebemos, entre a página 9 e 88), a terceira estrofe está solta. A frase em questão não se repete nem se adianta no texto de Joyce, aparece apenas na página 44, em "Secrets, silent, stony, sit in the dark palaces of both our hearts: secrets weary of their tyranny: tyrants, willing to be dethroned." No poema, no entanto, Ana adianta essa última frase, dando a ela destaque,

fazendo dela uma espécie de refrão, que se repetirá em seguida.

A quarta estrofe, de onde Ana recorta esse refrão, diz respeito originalmente a um trecho da narrativa de Ulysses no qual Stephen acaba de terminar de lecionar e o aluno Ciryl Sargent pede ajuda com algumas contas. Stephen observa Sargent com desprezo por sua aparência “feia e fútil” (JOYCE, 2010 :26), e o texto se desenvolve acompanhando os pensamentos de Stephen, que, apesar de desprezar o garoto, também espelha-se nele, pensa que um dia também ele, Stephen, foi assim, e imagina que a mãe de Sargent o tenha amado, amamentado, com “seu sangue fraco” e “seu leite azedo”43. Pensa em si mesmo e se identifica com Sargent, afirmando um dia ter também tido seus ombros assim curvados, e vislumbra sua infância, demasiadamente distante para falar dela, esquecida ou guardada em segredo: “Secrets, silent, stony sit in the dark palaces of both our hearts: secrets weary of their tyranny: tyrants, willing to be dethroned.” (idem.)

O trecho, transformado em versos por Ana C., remonta a essa cena: trata-se do universo masculino do logos, conversa entre homens, homem que julga, avalia e ensina outro homem, matemática e literatura (“He proves by algebra that Shakespeare's ghost is Hamlet's grandfather.”, idem) A única figura feminina dessa configuração toda é a mãe de Sargent, apenas imaginada por Stephen (determinada e configurada pelo homem), a figura da mulher presa à sua condição de natureza (lembrando Beauvoir), qualificada em imagens negativas nos pensamentos de Stephen. O que mais nos interessa é justamente que as frases de Joyce estão recortadas (pelo estilete de Ana Cristina Cesar) desse contexto: não deixam de remeter a ele, não se perde sua origem (tema aliás das imagens do poema). O que Ana Cristina opera com esses versos, porém, abre, mesmo que uma fenda, para uma nova leitura das palavras de Joyce, do homem, da tradição: areias pesadas, palácios escuros.

Tendo isso em mente, retornemos ao início do poema: “E ele e os outros me vêm./ Quem escolheu este rosto para mim?”. O poema já se coloca de início como acréscimo em uma sequência que o precede, no E maiúsculo inicial, inserindo-se na inevitável tradição literária. Difícil imaginar um sentido para este “ele” que fuja do próprio Joyce44: ele e os outros, como vimos anteriormente, porque a referência a Ulysses de Joyce carrega consigo os outros, desde Homero, e todos vêem a poeta. A imagem é forte: ser observada, vista, por toda

43 Traduções próprias.

44 Mesmo sabendo que no contexto original das palavras em Ulisses a referência a “ele” é Buck Mulligan, o poema de Ana Cristina Cesar reconfigura essas palavras, e os personagens originais do livro de Joyce estão afastados da leitura. O contexto se transforma e a nossa referência mais próxima para ele está no título: o personagem Ulysses, ou, mais adequadamente, o autor, Joyce, como metonímia de uma tradição masculina com a qual dialoga a poeta.

a tradição, por eles. Mais que vista, constituída (novamente lembremos Beauvoir e a noção da constituição do indivíduo feminino a partir do masculino, ela construída por eles): “Quem escolheu este rosto para mim?”. Até aqui a poeta que bebe nas fontes da tradição literária, como quereria Benedito Nunes, se referindo a autores da geração de Ana Cristina Cesar, ela em especial. Mas não há tom de liberdade45, como afirmaria o crítico, pelo menos não por enquanto: pois o rosto não foi ela quem escolheu.

A leitura parece se transformar na segunda estrofe. O empate, como vimos anteriormente, poderia ser mais uma figura de estagnação e solidez inamovível, como encontra-se ao longo do poema. Nesse momento é interessante novamente nos debruçarmos sobre a questão da tradução. Parried again, do original, pode significar o desvio de um golpe em um duelo, ou o ato de aparar o golpe com a espada, por exemplo. Como já foi apontado, trata-se de uma imagem figurativa no texto de Joyce, onde os personagens discutem. Na primeira tradução, de Antonio Houaiss, a imagem de luta de espadas não se mantém ("Parados de novo"), mas é retomada com Bernardina Pinheiro ("Aparado o golpe"), e novamente suprimida com Caetano Galindo ("Aparando de novo"), que talvez proponha simultaneamente um jogo com a ação executada por Buck Mulligan no momento anterior, em que fazia a barba enquanto ambos os personagens conversavam. Ana Cristina, novamente, faz uma escolha diversa, tanto da tradução que tinha disponível, como das outras que viriam depois dela. Sua escolha, mesmo que menos fiel à precisão do significado original, é concisa e de concentração46, bastante coerente com seu estilo de tradução em geral. Além disso, a imagem de um golpe aparado presume alguém que inicia o ataque, e outro que o defende. Na escolha de Ana Cristina Cesar torna-se impossível saber quem atacou primeiro, ou quem se defende, o que se percebe é apenas o resultado: empate.

Empate se assemelha mas não é, ou não precisa ser o mesmo que impasse. O impasse da mulher provem de sua condição de ser sempre menos, na qual entendemos que ela está permanentemente perdendo. Nessa perspectiva, empate indica uma mudança no jogo. Se, como lemos em Beauvoir, a alteridade não se completa na relação entre homem e mulher, pois não há, por parte do homem, percepção da mulher como sujeito, e essa exigência não lhe é feita, aqui algo de diferente se cria.

Nesse momento será interessante retomar Beauvoir em sua crítica da dialética entre

45 “(...) a conversão de cânones, esvaziados de sua função normativa, em fontes livremente disponíveis com as quais incessantemente dialogam os poetas.” (NUNES, 1991: 179)

46 A escolha pela concentração em oposição à inflação na tradução é tema de seu ensaio Traduzindo o Poema

senhor e escravo, elaborada por Hegel. Para Beauvoir não é possível entender a posição da mulher como análoga à do escravo, já que, no diálogo com a dialética de Hegel, conclui que a “reciprocidade das liberdades”, na qual tal dialética se baseia, não se constitui na relação homem-mulher47. Na dialética entre senhor e escravo, Hegel demonstra a insustentabilidade da escravidão como relação humana permanente, já que a liberdade do indivíduo só tem sentido para ele na medida em que é reconhecida pelo outro, em sua própria liberdade (a liberdade do sujeito precisa ser reconhecida por outra liberdade). Essa necessidade explicaria, em Hegel, o esgotamento histórico da escravidão enquanto sentido para o ser humano, já que “Desde que o sujeito busque afirmar-se, o Outro, que o limita e nega, é-lhe entretanto necessário: ele só se atinge através dessa realidade que ele não é” (BEAUVOIR, 1970: 179). Esta relação, no entanto, pode se configurar, em Hegel, para o senhor e o escravo (entre homens), mas não se dá com a mulher. O homem, segundo Beauvoir, não deseja a liberdade da mulher, pois não significa sua liberdade na liberdade dela, não entendendo esta como uma consciência idêntica à dele: “(...) a verdadeira alteridade é a de uma consciência separada da minha, idêntica a ela”. (idem) Fica faltando o desejo, na liberdade do homem, da liberdade da mulher, bem como a exigência que ela faça, ao se colocar como um na relação de alteridade, desse desejo.

Alguma esperança da superação disso não nos é dada por Beauvoir enquanto narrativa histórica, mas estamos aqui apostando na esperança menos concreta, mais poética, de saída criativa, retomando o poema de Ana Cristina Cesar, nos versos "Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo/ estilete da minha arte tanto quanto/ eu temo o dele”. Reflitamos sobre tal construção: “ele teme (...) tanto quanto eu temo”. Trata-se de afirmar que o temor do estilete da arte dele (autor homem, parte da tradição) sentido pelo eu (autora mulher) é um pressuposto da frase, ou seja, que ela teme o estilete da arte dele é um fato, é óbvio, informação que o leitor já tem de início (que ele tem poder sobre ela nós já sabíamos). A novidade da frase vem quando a poeta nos anuncia que ele também teme, que ele, autor masculino, tirano, teme tanto quanto ela. Poderia o estilete da arte de Ana Cristina Cesar servir, aqui, justamente como a “dura exigência de um reconhecimento recíproco” que, para Beauvoir, a mulher não impõe ao homem?

Em seguida temos o verso destacado como mote: “Segredos cansados de sua tirania /

47 “Ela não lhe opõe nem o silêncio inimigo da natureza, nem a dura exigência de um reconhecimento recíproco: por um privilégio único, ela é uma consciência e no entanto parece possível possuí-la em sua carne. Graças a ela, há um meio de escapar à implacável dialética do senhor e do escravo, que tem sua base na reciprocidade das liberdades.” (BEAUVOIR, 1970: 180)

tiranos que desejam ser destronados”. No trecho original de Ulysses, tiranos são esses segredos de pedra que Stephen guarda em seu coração, ligados à memória, à infância. Mas aqui, em Ana Cristina Cesar, estão deslocados, e lidos depois dos primeiros versos ganham,