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3. Da Constituição negativa feminina ao corte intertextual e criativo de uma saída

3.2. Ensaio de saída: pensar em ser Pessoa

Na edição póstuma de Inéditos e Dispersos, em especial na subdivisão que contém textos escritos entre 1979 e 1982, é possível encontrar uma série de exemplos de referências mais ou menos explícitas a obras da tradição literária (talvez devido a fatores biográficos, como a estadia na Inglaterra e o Masters em tradução literária, datados desse período), bem como referências do universo pop. Rapidamente o leitor percebe que há diálogo com uma quantidade tamanha de textos e vozes, que o jogo enigmático não pode seguir por muito tempo sem que o leitor se perca. Das menções à leitura de Katherine Mansfield (“Me vi num trem atravessando a Escócia e lendo um conto de KM.” em Back Again) (CESAR: 2013, p.109), “ver moral instrutiva no conto de KM”, (idem, p.112), ou Jane Austen (“Leio Jane Austen”, idem, p.114), menção a “folhas da grama” lembrando Walt Whitman em O Que Vejo Daqui (idem, p.111), até trechos de Conan Doyle, ou a brincadeira de citar T. S. Eliot atribuindo a referência posteriormente a Eliot Ness, agente do tesouro americano, figura pública que se tornou personagem de série policial (“Eliot Ness quem disse, gogô bird, pássaro gogó!”, idem, p.103). A lista é infindável, e a enumeração investigativa sedutora,

porém infrutífera: moeda falsa36. Leiamos então a vampiragem como um gesto que abre para o leitor um campo contraditório e labiríntico, mas que aponta em direções de saída, ou ao menos, talha fendas na pedra.

Na mencionada subdivisão de Inéditos e Dispersos, podemos encontrar um exemplo que parece sucintamente ensaiar a transição que aqui nos interessa ler. Na página 132, o poema curtíssimo37:

a gente sempre acha que é Fernando Pessoa

Novamente o tema da subjetividade que não se afirma, ou que esquiva das afirmações de si, no plural que torna a afirmação inclusiva porém vaga, na qual o sujeito pensa ser, mas tem consciência de seu engano. A afirmação é contraditória: o sujeito a um só tempo acha que é e tem a consciência de não ser. O poema é indiscutivelmente pessoano, aliás. Existe um tom talvez de autodeboche, do sujeito que reconhece sua própria arrogância ao querer comparar-se ao consagrado poeta. A severa negação implícita desse lugar de igualdade vem reforçada pela palavra sempre e pelo plural inclusivo: a sensação é de uma condição de existência, ciclo que repete, de achar que é, e não ser. A questão do gênero está presente: é a autora, mulher, na posição de sempre achar que é e não ser o consagrado poeta. Mas o jogo é interessante justamente porque, nessa afirmação de não saber de si e pensar que é o poeta, Ana Cristina Cesar está em diálogo com os temas caros ao próprio, aquilo que interessa a Pessoa. No curto poema mimético Ana Cristina Cesar também está sendo, sem de fato ser Fernando Pessoa.

36 “a falsa bomba hidráulica que quase amassou o cliente de Holmes que acabou perdendo o polegar porque afinal se tratava de dinheiro falso.- / Atenção, o Bliss que te amassa a cabeça é / moeda falsa”. (CESAR, 1985: 112)

37 Como Inéditos e Dispersos se trata de uma edição póstuma, a partir de cadernos, rascunhos e textos acabados mas não publicados em vida, é importante apontar que o estatuto de poema é definido, para diversos desses textos, inclusive este, pelo olhar de leitor de Armando Freitas Filho, organizador da obra. Nos rascunhos da poeta podemos ler o “poema curto” aqui citado, rabiscado nas margens de outro poema, na vertical da página. Alguns argumentos, no entanto, sustentam nossa escolha por ler essa curta afirmação enquanto manifestação poética. Em primeiro lugar, as características dos rascunhos, manuscritos e datiloscritos da poeta nos permitem afirmar que em diversos casos, poemas, anotações, e rascunhos se misturam de forma a não ser possível diferenciar de forma categórica (ver Flora Sussekind em Até segunda ordem não me risque

nada, 1995). Além disso há textos que podem, mais evidentemente, ser lidos enquanto poemas, cuja

presença nos rascunhos é similar a essa posição nas margens da folha. De outro lado, é possível ler, também em poemas publicados em vida por Ana Cristina Cesar, afirmações desse tipo, que refletem de forma cotidiana e irônica a respeito de identidades poéticas, ou jogos com a discussão sobre literatura (o próprio “primeira lição”, em Cenas de Abril, CESAR, 2013: 18), de modo que a leitura desses curtos versos como escrita poética não destoa das propostas da autora. Por fim, o fato do estatuto de poema ser conferido a esses versos por Armando Freitas Filho não os desqualifica para nossa leitura, porque nos interessa justamente a importância da leitura, da posição do leitor e da leitora na obra da autora, e esse interesse não deve se reduzir à leitora Ana Cristina. Desse modo, nesse caso dialogamos, além de com a leitora-poeta Ana Cristina, com o leitor Armando Freitas Filho.

Isso possibilita um jogo que parte de uma posição de aparente inferioridade em relação ao poeta, ensaio de existência que desejaria ser como o grande Fernando Pessoa, mas desiste, denunciando o ridículo de seu pensamento. Mas é justamente ao fazer esse gesto que consegue, em tão poucas palavras, apropriar-se de uma das marcas mais conhecidas do poeta em questão, o poeta dos heterônimos.

É preciso fazer a pergunta: o poema resvala, como os outros exemplos citados, ainda no impasse sem solução? Talvez seja ainda um exemplo demasiadamente breve para um movimento de saída, mas é possível reconhecer o ensaio: Fernando Pessoa é alguém concreto, não mais apenas “homem” e, a partir da concretude de sua poesia, Ana Cristina começa a esboçar, pela apropriação do espaço de enunciação do poeta, um lugar de leitora que joga com a posição do feminino e seu limite. Além disso, existe aqui o esboço também de uma possível cumplicidade, coletividade no “a gente”, que inclui o leitor, e esse leitor, mesmo que não seja fatuamente mulher, toma uma posição de leitora, caso escolha se incluir no poema, identificar-se com a posição feminina da voz da enunciação.

O exemplo acima parece ensaiar esse processo de saída, já que mulher não se constitui como eu, mas talvez se esboce enquanto nós, que se define a partir do masculino, porém transforma as palavras dele, transformando-se nele, e ainda por cima negando que haja de fato a transformação. O gesto mimético porém crítico se esboça, mas é ainda tímido, muito breve para que se possa verificar uma criação imaginativa mais encorpada. É, no entanto, esse o sentido em que a apropriação, a ladroagem38, as vampiragens de Ana Cristina Cesar, podem apontar para uma política de leitura e (re)escrita criativa, para além e a partir do impasse feminino. Vejamos mais detalhadamente essa ideia de re-escrita e mímese crítica.