• Nenhum resultado encontrado

Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre"

Copied!
340
0
0

Texto

(1)

I

NSTITUTO DE

F

ILOSOFIAE

C

IÊNCIAS

H

UMANAS

L

UIZA

H

ELENA

H

ILGERT

ONTOLOGIA E MORAL NA OBRA FICCIONAL DE

SARTRE

C

AMPINAS

(2)

ONTOLOGIA E MORAL NA OBRA FICCIONAL DE

SARTRE

Tese apresentada ao Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Estadual de Campinas

como parte dos requisitos exigidos

para obtenção do título de Doutora em

Filosofia.

Orientador: Enéias Júnior Forlin

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA POR LUIZA HELENA HILGERT E ORIENTADA POR ENÉIAS JÚNIOR FORLIN.

(3)

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1638-8225

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Ontology and moral in Sartre's fictional work Palavras-chave em inglês: Freedom Responsibility Engagement (Philosophy) History Moral (Philosophy)

Área de concentração: Filosofia Titulação: Doutora em Filosofia Banca examinadora:

Thaisa Helena Pascale Palhars Luiz Damon Santos Moutinho Silene Torres Marques

Thana Mara de Souza Vinícius dos Santos

Data de defesa: 17-11-2017

Programa de Pós-Graduação: Filosofia

Hilgert, Luiza Helena,

1983-H549o Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre / Luiza Helena Hilgert. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

Orientador: Enéias Júnior Forlin.

Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Liberdade. 2. Responsabilidade. 3. Engajamento (Filosofia). 4. História. 5. Moral (Filosofia). I. Forlin, Enéias Júnior, 1964-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

(4)

I

NSTITUTO DE

F

ILOSOFIAE

C

IÊNCIAS

H

UMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de

Doutorado, composta pelas Professoras Doutoras e pelos Professores

Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 17 de

novembro de 2017, considerou a candidata Luiza Helena Hilgert

aprovada.

Professora Doutora Thaisa Helena Pascale Palhares (Presidenta)

Professor Doutor Luiz Damon Santos Moutinho

Professor Doutora Silene Torres Marques

Professora Doutora Thana Mara de Souza

Professor Doutor Vinícius dos Santos

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

(5)

Ao Juliano Tomasel À amizade que continua pela eternidade, Maria Érbia Cássia Carnaúba (in memorian)

J'offre ce livre à ceux qui ont mis leur foi dans les rêves comme dans les seules réalités! Poe A todxs aquelxs que continuam se inquietando com a existência.

(6)

Se os agradecimentos realizados nestas folhas se referissem somente aos cinco anos de doutorado, eu já teria uma lista enorme de pessoas e instituições a quem agradecer, mas a verdade é que teve muita gente ainda antes de 2012 que contribuiu para 2017 chegar. Gente que esteve lá em 1995 e continua até hoje; gente que fez a diferença na minha escolarização e que depois nunca mais vi; gente que eu só encontrei uma vez e mesmo assim me marcou profundamente; gente que nem está mais aqui; gente que eu nem lembro o nome; gente que eu conheci semana passada e já foi importante para esta tese; gente de 30 anos atrás, de 15, de 20, de 5, de 2, gente de ontem; além de muita gente que vai sofrer a injustiça de não receber um agradecimento mesmo tendo contribuído. De 2012 até 2017 aconteceu muita coisa, conheci muitas pessoas, aprendi um bocado. E isso tudo foi possível pelo que veio antes, claro. Então, como o doutorado é o fechamento, dizem, de um ciclo, eu quero agradecer a quem esteve em todos os ciclos, a quem esteve só no começo, a quem esteve só no final, a quem esteve na tangente e àqueles que nem sabiam que estavam comigo.

À minha amada Vitória Hilgert Tomasel, pela companhia, compreensão, amor, carinho, encorajamento, exemplo, otimismo; em resumo, obrigada por existir. Ao Juliano Tomasel, por partilhar a vida comigo, por ser meu amigo e companheiro de alegrias e tristezas, por ter estado presente mesmo quando era difícil. Pelos anos de amor e dor. Por todo o nosso aprendizado juntos e pelo apoio. Aos meus pais, Marcos e Marlene Hilgert, pelo amor, carinho, compreensão e ajuda. Têm tantas coisas que vocês fizeram por mim e que me marcaram tanto que eu nunca falei. O principal, pelo menos, está aqui: Amo vocês pra sempre. À minha irmã Ana Paula Hilgert Wolfart e ao cunha Edson Arantes Hilgert Wolfart, pela amizade e carinho. Por toda a ajuda ao longo dos anos e pelo amor que vocês dedicam à Vitória. À Zenaide Tomasel, pela presença, pelo encorajamento, pelo exemplo de mulher guerreira e dedicada à família. À Maria Érbia Cássia Carnaúba, pela primeira amizade em solo campineiro, que infelizmente nos deixou cedo demais, mas não sem antes ensinar a tanta gente a generosidade, a amizade e o poder da utopia. Obrigada, minha querida amiga, pela sua presença, pela sua amizade, pela sua voz e pelas suas cores. A sua amizade vai continuar me acompanhando. À Cristianela Susin, que é e sempre será a minha amiga da vida inteira e de todas as ocasiões. A nossa distância não afasta a tua presença.

(7)

todas as conversas, festas, vacilos e tudo mais. Axs amigxs que a distância separa, mas que o coração aproxima: Alexandre Rossi, Rafael Mateus e Sandra Zênere Bugs, Ao Frédéric Kingué, pela primeira amizade em solo francês. Axs antigxs colegas de trabalho no Ceebja de Toledo, da Fasul, do NRE de Toledo, no Ceebja de Mal. Rondon e de todas as escolas onde já trabalhei, axs antigxs colegas de PIBID. Axs antigxs colegas de graduação e mestrado. E, como iniciei um ciclo novo sem ainda ter fechado o antigo, afinal a vida é um grande espiral, agradecimentos também axs amigxs, alunxs e colegas da UFES. Às amigas e aos amigos da vida inteira. A todxs xs produtorxs e comerciantes de vinho que mantêm um produto de qualidade a um preço possível de ser comprado com o valor das bolsas de estudos. Um obrigada especial aos vinhos chilenos, franceses e portugueses. Ao professor Luiz Roberto Monzani, pela orientação e conhecimento. À professora Josette Monzani, pela ajuda e amizade. Ao professor Enéias Forlin, por assumir minha orientação desde a qualificação e enfrentar junto comigo o desafio final. Ao professor Luiz Damon Santos Moutinho, pela presença e sugestões na banca de qualificação e banca de defesa. À professora Thana Mara de Souza, pelos trabalhos sobre literatura e filosofia em Sartre, pela presença e sugestões nas bancas de qualificação e defesa. Pela amizade em Vitória. À professora Silene Torres Marques, pelas contribuições na banca de defesa e pelas conversas em Paris e no Brasil. Ao professor Vinícius dos Santos, pela participação na banca de defesa. À Daniela Grigolletto, secretária do PPGFil da Unicamp, pelo auxílio. Ao Gabriel Vieira Bilhalva, pela leitura e sugestões. Ao professor François Noudelmann, da Université Paris VIII, por me acolher em Paris e pela enorme confiança depositada em mim ao deixar sob minha responsabilidade os arquivos da Professora Ingrid Galster.

(8)

Ao professor Frédéric Worms, da École Normale de Paris, pelo exemplo de professor. Ao professor Alberto Marcos Onate, pelo modelo de pesquisador, pela orientação na graduação e no mestrado, por ter sido a primeira pessoa a ler meu projeto de doutorado e ter me dado o título dessa tese. Aos professores da graduação e do mestrado da Unioeste. À Madame Valerie Beetham e ao Monsieur Claude Garnier pelas correções de textos acadêmicos em francês. Ao professor Fausto Castilho, in memorian. À Madame Ingrid Galster, in memorian. À FAPESP, por financiar esta pesquisa, inclusive o período em Paris. Processos número 2012/02542-2 e 2014/06272-5

(9)

mise en images. Albert Camus, 1938

Deito coisas sobre o papel, quando retomo forças, no desespero ou na esperança. Mas a derrota, a degradação, a decomposição não estão marcadas nestas páginas.

Simone de Beauvoir, 1967

J’ai toujours pratiqué la littérature non comme un exercice intelligent mais comme une cure d’idiotie.

Je m’y livre laborieusement,

méthodiquement, quotidiennement, comme à une science d’ignorance :

descendre, faire le vide, chercher à en savoir tous les jours un peu moins que les machines. Valère Novarina, 1991

(10)

O objetivo da presente pesquisa é analisar como Jean-Paul Sartre apresenta temas de ontologia e moral nas suas obras de teatro e de literatura. Filosoficamente, três obras marcam os principais momentos teóricos de Sartre: L’être et le néant, de 1943; Cahiers pour une morale (escrito em 1947 e 1948, mas publicado postumamente, em 1983) e Critique de la raison dialectique, de 1960. Entre os quase vinte anos que separam a primeira da última, Sartre publicou treze obras de ficção: quatro romances e nove peças de teatro, além das dezenas de entrevistas para fazer-se compreender para sua época. Propondo que a compreensão sobre o que é o homem se fez também reflexão literária e dramatúrgica, este trabalho apresenta o resultado do estudo feito das obras de ficção de Jean-Paul Sartre a fim de acompanhar a evolução do seu pensamento de ontologia e moral. A hipótese levantada por esta pesquisa é a de que há um modo privilegiado de conhecer e desvendar o interesse sartriano de compreender o homem: pela aproximação entre filosofia e ficção e entre ontologia e moral.

(11)

The aim of this research is to analyze how Jean-Paul Sartre presents in his theatrical works and in philosophical works the themes of ontology and morality. Freedom is Sartre's theme par excellence, not only in his philosophical works but also in novels and plays. Philosophically, there are three works that show the essential moments of Sartre: L’être et le

néant, 1943, Cahiers pour une morale, 1983 and Critique de la raison dialectique,1960.

Sartre published thirteen works of fiction: four novels and nine plays, in addition to dozens of interviews to make himself understood in his time. We propose that the understanding of the man is done also by literary and dramatically reflection, this research presents the result of the study of Sartre's fiction. The hypothesis of this research was that there exists, then, a privileged way of dealing with the theme of freedom: through the approximation between philosophy and fiction and between ontology and morality.

Key words: Freedom, responsability, engagement, History, moral.

RÉSUMÉ

L’objectif de cette recherche est d’analyser la façon dont Jean-Paul Sartre présente dans ses œuvres théâtrales et dans les œuvres philosophiques les thèmes de l’ontologie et de la morale. La liberté est le thème par excellence chez Sartre pas seulement dans les œuvres théorique-philosophiques mais aussi dans les romans et dans les pièces de théâtre. Philosophiquement, il y a trois œuvres qui montrent les principaux moments théoriques de Sartre : L’être et le néant, de 1943, Cahiers pour une morale, de 1983 et Critique de la raison dialectique, de 1960. Parmi la vingtaine d’années qui l’éloignent, Sartre a publié treize œuvres de fiction : quatre romans et neuf pièces de théâtre, en plus de dizaines d’interviews pour se faire comprendre à son époque. En proposant que la compréhension sur l’homme est faite aussi par la réflexion littéraire et dramaturgique, cette recherche présente le résultat de l’étude fait des œuvres de fiction de Sartre afin d’accompagner l’évolution de sa pensée sur l’ontologie et la morale. L’hypothèse de cette recherche était qu’il existe, alors, une façon privilégiée de traiter le thème de la liberté : travers l’approximation entre la philosophie et la fiction et entre l’ontologie et la morale.

(12)

AR L’âge de raison

Bar Bariona

CPM Cahiers pour une

CDG Carnets de la drôle de guerre

CRD I Critique de la raison dialectique I

CRD II Critique de la raison dialectique II

DBD Le Diable et le bon Dieu

EJ Écrits de jeunesse

MS Les mains sales

SA Les séquestrés d’Altona

Tr Les troyennes

EH L’existentialisme est un humanisme

EN L’être et le néant

HC Huis clos

(13)

LC I Lettres au Castor et à quelques autres 1926-1939

LC II Lettres au Castor et à quelques autres 1940-1963

LES Les écrits de Sartre

MA La morts dans l’âme

Mo Les mots

M Les mouches

Mu Le mur

MsS Morts sans sépulture

ŒR Œuvres romanesques

QL Qu-est ce que la littérature ? SA Les séquestrés d’Altona

SG Saint Genet – comédien et martyr

Sit I – X Situations de I a IX

Th. C Théâtre Complet

(14)
(15)

INTRODUÇÃO

...

17

Filosofia e ficção...22

Ontologia e História...30

Ontologia e moral: filosofia e ficção...37

CAPÍTULO 1

...

40

A MORAL DO HOMME SEUL

...

41

1.1 Bariona: l’homme seul e a coletividade...49

1.1.1 Gênese e contexto...49

1.1.2 A decisão do homme seul...52

1.1.3 A esperança é requisito da ação...60

1.2 Cinco tentativas de fuga...69

1.2.1 Gênese, contexto e recepção...69

1.2.2 O muro: finitude e gratuidade...74

1.2.3 O quarto: subjetividade diluída...84

1.2.4 Erostrato: a falta do Outro...90

1.2.5 Intimidade: a recusa do corpo...101

1.2.6 A infância de um chefe: má-fé e antissemitismo...108

1.3 Les mouches: liber(t)ação e autenticidade...114

1.3.1. Gênese, contexto e recepção...114

1.3.2 Liberdade exilada e liberdade situada...117

1.3.3 A revolta e a violência como ato autêntico...128

1.4 Huis clos: entre o conflito e a ajuda...135

1.4.1 Gênese, contexto e recepção...135

1.4.2 Olhar, conflito e presença...140

1.4.3 As relações com o Outro...143

1.4.4 Para além do conflito...150

CAPÍTULO 2

...

156

A MORAL DO

HOMME LIBRE

...

157

2.1 Les chemins de la liberté: liberdade e circunstância...161

2.1.1 Gênese, contexto e recepção...161

2.1.2 Níveis e concepções de liberdade...164

(16)

2.2.1 Gênese, contexto e recepção...174

2.2.2 O mito do heroísmo entre os princípios e a praxis...183

2.2.3 Moral da coletividade: individualidade e História...190

2.3 Les mains sales: sobre os fins e os meios...201

2.3.1 Gênese, contexto e recepção...201

2.3.2 Purismo, praticidade e a impossibilidade de não sujar as mãos...215

2.3.3 Moral da responsabilidade do sujeito e moral da luta coletiva...224

2.4 Le Diable et le bon Dieu: há sempre escolha?...230

2.4.1 Gênese, contexto e recepção...230

2.4.2 Goetz entre o Bem e o Mal...238

2.4.3 A moral da política: engajamento na coletividade...243

C

APÍTULO

3

...

249

A MORAL DO

HOMME HISTORIQUE

...

250

3.1 Les séquestrés d’Altona e o peso da História...258

3.1.1 Gênese, contexto e recepção...258

3.1.2 Os enclausurados e a História...271

3.1.3 Passado, presente, futuro e a implosão do mundo dos valores reacionários...284

3.2 Les troyennes: da guerra e da paz...296

3.2.1 Gênese, contexto e recepção...296

3.2.2 Esperança, culpa e ação...302

3.2.3 Alerta trágico sobre o fim: é preciso agir...310

CONSIDERAÇÕES FINAIS

...

315

BIBLIOGRAFIA

...

331

1. Bibliografia primária...331

(17)

INTRODUÇÃO

Je considère la philosophie comme l’unité de tout ce que j’ai fait. Sartre, 19741

A liberdade é o tema célebre de Sartre, seja como noção filosófica, experiência vivida, ou princípio motor da escrita ficcional2. A palavra liberdade é usada por Sartre em

sentido filosófico, ético, político e social e sofre alguma alteração ao longo dos anos de sua produção intelectual. Em L’être et le néant, o conceito de liberdade pode ser entendido como a liberdade absoluta do sujeito, que o obriga a agir com e contra os entraves da situação, mas com Critique de la raison dialectique, a liberdade também pode ser entendida como a condição necessária da libertação individual e coletiva. A filosofia de Sartre não comporta uma definição tradicional em que se separaram de maneira ortodoxa os campos de Ontologia, Moral e Política, o que o filósofo faz é construir um grande sistema3 em que as

várias áreas do saber se misturam, se confundem. A ontologia da liberdade de Sartre se liga intrinsecamente com a moral e com a política4 de modo a configurar os temas fundamentais

no horizonte de preocupações teórica e prática de Sartre. Enquanto preocupação teórica, a moral e a política estão assentadas em uma ontologia da liberdade; enquanto preocupação prática, estão circunscritas no domínio da necessidade e da impossibilidade5.

Há, na literatura interpretativa sobre a filosofia sartriana, aqueles que defendem que a preocupação política do francês somente se manifesta nos anos ‘60 com Questions de méthode e com Critique de la raison dialectique. Esses comentadores se equivocam ao desconsiderar duas obras com grande apelo político, escritas mesmo antes de L’être et le

1Entrevista concedida à Simone de Beauvoir, entre agosto e setembro de 1974. Cf. Beauvoir, 1981. 2Cf. Noudelmann e Philippe, 2004, p. 280; ŒR, p. XI.

3 Sobre a ideia de sistema em Sartre, recomendo a leitura de Système de Sartre, de Claude-Edmonde Magny, de

1945. Cf. Referências.

4“C'est pourquoi, ce que j’écrirai un jour, c'est un testament politique. […] Ce que je voudrais montrer c'est

comment un homme en vient à la politique, comment il est saisi par elle, comment il est fait autre par elle. Parce qu'il faut vous souvenir que je n'étais pas fait pour la politique et que, pourtant, la politique m'a si bien changé que, finalement, j'ai été obligé d'en faire. C'est cela qui est surprenant. Je raconterai ce que j'ai fait dans ce domaine, quelles erreurs j'ai commises et ce qui en est résulté. En faisant cela, j'essaierai de définir ce qui constitue la politique aujourd’hui, dans la phase historique que nous vivons” (Sit IX, pp. 133-134).

5“Ainsi, toute morale qui ne se donne pas explicitement comme impossible aujourd’hui contribue à la

mystification et à l’aliénation des hommes. Le ‘problème‘ moral naît de ce que la Morale est pour nous tout en même temps inévitable et impossible” (SG, p. 177).

(18)

néant e sua teoria sobre a má-fé e a autenticidade: Bariona e L’enfance d’un chef, apenas para citar dois exemplos6. No conto L’enfance d’un chef, de 1939, Sartre identifica o

antissemitismo e o fascismo do personagem Lucien a um projeto de má-fé7. Bariona é a

primeira de Sartre, escrita e encenada no campo de prisioneiros em 1940, o drama narra a atitude de resistência política do protagonista de mesmo nome que parte de uma atitude de má-fé em direção à postura de generosidade autêntica8. Nos dois casos, Sartre demonstra não

apenas preocupações políticas, mas também morais. E, se objetarem, afirmando que Bariona e L’enfance d’un chef resultam de uma preocupação prática e não de uma preocupação teórica, porque a escrita ficcional, pela sua própria natureza, não contemplaria preocupações teóricas e, insistindo que as preocupações teóricas de Sartre só se apresentam nos anos ‘60 com as referidas obras teórico-filosóficas, reforço que caberia, com efeito, primeiramente a investigação sobre as relações entre filosofia e ficção e, além disso, das relações entre teoria e prática ou, se preferir, entre ontologia e moral9 no conjunto do pensamento sartriano10. É

importante observar que a moral pode ser entendida como teórica e prática, uma vez que o que chamamos em sentido lato de teoria e prática são, na verdade, duas dimensões de uma mesma realidade explicada fenomenologicamente. Ao mesmo tempo em que a moral de Sartre exige uma ontologia, sua ontologia desemboca numa moral.

Minha intenção, com este trabalho, é a de apresentar um estudo que revise os principais temas da ontologia e da moral sartrianas com o intuito de revelar o caráter original ocupado pelas obras literárias e teatrais. O método utilizado visa a leitura de conjunto da obra que procura, antes de tudo, demonstrar as articulações originárias de um pensamento em movimento que se encarna em múltiplas formas de expressividade e que não se consolida

6Ainda poderíamos incluir o conto Le mur e mesmo todo o Les écrits de jeunesse. 7A peça e o conto serão calmamente estudados no Capítulo Primeiro.

8A peça teatral Bariona será analisada no Primeiro Capítulo. 9Sobre teoria e prática fenomenológica, conferir: Depraz (2004).

(19)

na linearidade, mas nos desenvolvimentos espiralados, como um tobogã11, e no movimento

constante, como um pião12.

No curso deste estudo veremos que os escritos de Jean-Paul Sartre são o testemunho, ao mesmo tempo, do tournant e da unité intellectuelle13 do seu pensamento. As

transformações mais importantes ocorreram nos campos da moral, da política e da história: gradualmente, esses temas se tornaram mais presentes na reflexão teórica e na assunção de posição e engajamento vivido. É certo que a guerra representou um momento irremediável: “Ce que je vois de plus net dans ma vie, c'est une coupure qui fait qu'il y a deux moments presque complètement séparés, au point que, étant dans le second, je ne me reconnais plus très bien dans le premier, c'est-à-dire avant la guerre et après” (Sit X, p. 175, grifo meu), porém, esse episódio talvez não tenha sido o responsável por realizar uma ruptura teórica suficientemente drástica a ponto de dividir a filosofia de Sartre entre antes e depois da guerra, mas o causador – como o próprio filósofo confessa – da passagem da perspectiva do individual para a do coletivo e, nesse sentido, o ponto de vista da coletividade é alargado em relação ao pensamento que privilegia o indivíduo, mas sem perder de vista que a coletividade é feita de indivíduos. A hipótese que procuro apresentar é que as obras de filosofia e de ficção tratam da liberdade sem perder a ligação fundamental com a ontologia e a moral. Todos os campos de interesse de Sartre têm como centro gravitacional a liberdade tomada de uma forma particular sem que elimine a interconexão entre as áreas. À ontologia cabe, por exemplo, descrever as estruturas existenciais constitutivas do para-si livre em situação, enquanto que à moral cabe a efetivação das condutas existenciais concretas do agir livre14.

11“[...] nous souhaitions que nos livres se tinssent tout seuls en l’air et que les mots, au lieu de pointer en arrière

celui qui les a tracés, oubliés, solitaires, inaperçus, fussent des toboggans déversant les lecteurs au milieu d’un univers sans témoins, bref que nos livres existassent à la façon des choses, des plantes, des événements et non d'abord comme des produits de l'homme ; nous voulions chasser la Providence de nos ouvrages comme nous l'avions chassée de notre monde. Nous ne définirions plus, je crois, la beauté par la forme ni même par la matière, mais par la densité d'être” (QL, p. 228, grifo meu).

12“L’objet littéraire est une étrange toupie qui n’existe qu’en mouvement” (QL, p. 91, grifo meu). 13Conferir a Epígrafe do Capítulo 1.

(20)

Dentre os campos discursivos utilizados por Sartre15 para expressar o conjunto do

seu pensamento, decidi privilegiar o da ficção e, dentre as variadas áreas de interesse16

manifestadas nos diferentes campos discursivos que compõem o conjunto do seu pensamento, a ontologia e a moral parecem comungar da exigência da liberdade. O conjunto da escrita ficcional sartriana é ainda pouco explorado pelos estudiosos e pesquisadores de Sartre e se mostra um campo privilegiado para acompanhar a realização do exercício da liberdade dos personagens em que o autor coloca seus conceitos à prova17.

O estudo sobre a ontologia e a moral nas obras ficcionais se Sartre se originou, especialmente, em razão dos meus estudos precedentes18. Ao me dedicar à pesquisa da

ontologia e da moral de Sartre exclusivamente pela via das obras teórico-filosóficas, não encontrei elementos suficientes que me fizessem identificar satisfatoriamente o progresso teórico e certa mudança de foco que sofreu o pensamento sartriano desde L’être et le néant até a Critique de la raison dialectique. Antes de abordar as questões determinantes dessa tese, é relevante indicar o ponto de partida e a forma como a filosofia sartriana será aqui entendida. Longe de fazer um resumo do pensamento sartriano, parto do pressuposto de que os leitores deste texto conhecem a filosofia sartriana suficientemente para me permitirem ultrapassarmos a etapa das apresentações e nos adiantarmos para aquela em que discuto seu pensamento sob a minha assinatura. Assim, desde o início aponto as suas questões, que são, em alguma medida, também as minhas e como as suas concepções teóricas são fundamentais para pensar o homem num horizonte muito amplo sem que isso acarrete em perder sua dimensão concreta.

A leitura dos romances e das peças de teatro, porém, parecia auxiliar, caso a tarefa fosse realizada segundo o interesse atento de um pesquisador procurando por respostas

15Filosofia, contos, romances, ensaios, teatro, cenários, cinema, textos jornalísticos, crítica biográfica, inclusive

uma canção.

16Psicologia, política, arte, história da arte, e outros mais.

17“Les romans et les nouvelles de Sartre sont en effet des exercices de la liberté : des textes où la liberté

s’essaie, […] se met à l’épreuve”. (ŒR, p. XI).

18Refiro-me à minha dissertação de mestrado que, apesar de entrever a relevância da inclusão das obras

ficcionais na discussão sobre a moral em Sartre, eu não dispunha, à época, de elementos suficientes para realizá-la, postergando o projeto para uma pesquisa futura, que se concretiza agora com esta tese de doutoramento. Os resultados da pesquisa de mestrado podem ser conferidos em: HILGERT, Luiza Helena.

Liberdade, autenticidade, engajamento: Pressupostos de ontologia moral em Sartre. Dissertação (Mestrado em

Filosofia) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, 2011. Disponível em: <http://tede.unioeste.br/tede//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=809>

(21)

em lugar de um mero leitor interessado em romances filosóficos19. Gradativamente, as obras

ficcionais se mostraram um lugar incontornável no conjunto do pensamento sartriano porque apresentavam a mesma grandeza conceitual que os textos filosóficos. À investigação teórica empreendida por Sartre na filosofia, encontrei o correlato singular em romances, contos e peças de teatro, com a diferença de que, de três colunas teóricas, a saber, as três principais obras teóricas: L’être et le néant, Cahiers pour une morale e Critique de la raison dialectique, se desdobravam textos curtos, entrevistas e quase duas dezenas de textos ficcionais. Se, por um lado, poderíamos supor que o estudo filosófico das obras ficcionais perde porque o material de trabalho é escrito com uma linguagem inabitual ao pesquisador de filosofia, por outro lado, ganha pela ampliação do material de trabalho em quantidade e, por que não?, em qualidade. Quer dizer, minha hipótese é a de que Sartre expressa suas teorias filosóficas não apenas com a linguagem filosófica tradicional, mas com a linguagem ficcional também: “assim como a física submete aos matemáticos novos problemas, que os obrigam a produzir uma simbologia nova, também as exigências sempre novas do social ou da metafísica obrigam o artista a descobrir uma nova língua e novas técnicas” (QL, p. 23, tradução minha)20. Com a simbologia nova da literatura e do teatro, Sartre oferece aos seus

estudiosos uma nova língua e novas técnicas de pesquisa, em outras palavras, às vezes, quem perde, ganha.

Ainda assim, as razões para incluir, numa pesquisa de Filosofia, obras cujo estatuto é difícil de estabelecer – uma vez que a literatura pertence ao campo do imaginário21, da liberdade criadora, da não-obrigatoriedade de rigor conceitual e

lógico-racional – devem ser apresentadas desde o início, a fim de reduzir possíveis equívocos e eventuais desconfortos. Por isso, antes mesmo de iniciarmos os estudos a que nos propusemos sobre os problemas propriamente designados para esta tese, nasce já a exigência de abordarmos uma primeira questão, a saber, da relação entre filosofia e ficção. O tema da relação entre Filosofia e Ficção será desenvolvido como pano de fundo ao longo de toda a

19É claro que um não exclui o outro, quer dizer, é possível ser ao mesmo tempo um pesquisador e um leitor

apaixonado; a intensão em mencionar as figuras do pesquisador e a do leitor apaixonado é apenas apontar a mudança de olhar pessoalmente realizada e os ganhos que obtive na minha tarefa de procurar respostas ao mudar o enfoque e a metodologia de tratamento da obra.

20Em geral, salvo exceção, as citações serão feitas preservando o texto na sua língua original.

21Sobre a literatura como obra imaginária, recomendo o livro de Thana Mara de Souza, Sartre e a literatura

(22)

tese. Apresento na sequência, como ponto de partida, um levantamento bibliográfico acerca do tema e os principais fundamentos que norteiam a minha compreensão da problemática.

Filosofia e ficção

A tradição tratou de estabelecer duas principais leituras sobre a relação entre Filosofia e Ficção: i.) uma que considera o romance, o conto e o teatro como metáforas e exemplos ilustrativos às teorias filosóficas de Sartre; ii.) e outra, contrária à primeira, que toma cada obra como um fim em si mesmo sem que haja, portanto, hierarquia quer da filosofia sobre a literatura, quer da literatura sobre a filosofia. De antemão, esclareço que me filio à segunda.

i.) Da interpretação que subordina literatura à filosofia, lê-se que Sartre escrevia literatura como um recurso metafórico dos seus conceitos, com o objetivo de levar a filosofia existencialista até o grande público e consagrá-lo entre as massas; essa concepção existiu mesmo entre intérpretes do círculo e do convívio de Sartre, como Francis Jeanson: “C'est sans doute par ses pièces de théâtre que Sartre est devenu véritablement public. [...] Au surplus, elle a le mérite d'illustrer, de mettre en scène, la quasi-totalité des thèmes sartriens” (JEANSON, 1955, p. 7, grifo meu). Ana Boschetti (1985, pp. 75-82) vai mais longe e aponta a criação da revista Les Temps Modernes e a produção teatral em geral de Sartre, como golpe de marketing para realizar o que ela chamou de projeto de tornar-se um grande filósofo. Segundo Boschetti, o teatro sartriano serviu como uma espécie de vulgarização, ilustração e representação dos difíceis conceitos filosóficos presentes nas obras L’être et le néant e La transcendance de l’ego. Apesar de Anna Boschetti ter se tornado famosa com essa polêmica teoria, o crédito pela ideia de que Sartre se tornou um “fenômeno” graças à expansão na forma de apresentar as teorias do existencialismo não pertence, originariamente, a ela. Em 1948, quase quarenta anos antes de Boschetti, Marcel Hervieu fala de um “phénomène Sartre”, cuja origem credita, ao menos em parte, à evolução dos modos de expressão e de técnica usados por Sartre para alcançar o grande público. Segundo Hervieu, Sartre se aproveitou de maneira oportuna da audiência do público crescente nos teatros, para

(23)

“vulgariser” seu pensamento filosófico22. Nessa mesma linha, há também outros que

encontram no teatro de Sartre propósitos didáticos para facilitar a compreensão das teorias filosóficas por meio de exemplificações. Segundo Deise Quintiliano, Huis clos “apresenta-se como um modelo que opera a transposição do mundo conceptual para o universo metafórico, à medida que recupera a concepção de ‘pièce à thèse’23, vislumbrando o drama como veículo

para a difusão de suas ideias filosóficas com um propósito didático” (PEREIRA, 2001, p. 29, grifo meu).

ii.) Considero a interpretação que subjuga a ficção à filosofia facilmente refutável pelos argumentos do segundo grupo. Por isso, analiso de forma um pouco mais detida a interpretação daqueles que consideram a relação entre filosofia e ficção não sob o jugo hierárquico que privilegia uma sobre a outra, mas que outorgam à ficção o estatuto de obra como fim em si mesma e compreendem certa correspondência entre ambas. Ainda que eu tenha englobado as leituras que seguem sob o mesmo grupo, por mera organização didática, as interpretações sobre a relação entre filosofia e ficção examinadas na sequência não são todas equivalentes, elas possuem nuances e percepções singulares e diversas, às quais procuro me deter um pouco mais, ainda que de forma apenas introdutória.

Ingrid Galster (2005), pesquisadora que estuda a recepção do teatro sartriano, demonstrou, por meio das críticas da mídia especializada e do público em geral, que nem a peça Les mouches, nem a peça Huis clos, tiveram satisfatoriamente suas ideias filosóficas e políticas bem compreendidas, nem na estreia e nem depois de várias apresentações: “La dimension philosophique et politique des Mouches n’était apparemment accessible qu’à certains intellectuels qui connaissaient la philosophie de Sartre et qui disposaient du texte paru chez Gallimard avant la création” (GALTER, 2005, p. 18)24.

22Cf. L’Allience Nouvelle, 17 de abril de 1948.

23O conceito de pièce à thèse ficou famoso pelo escritor Maurice Blanchot: “É que, na realidade, as obras de

ficção estão cada vez mais pressionadas por pretensões teóricas e as obras teóricas são cada vez mais um apelo a problemas que exigem uma expressão concreta. Existencialistas ou não, poetas, romancistas e filósofos prosseguem suas experiências e pesquisas análogas, estão engajados de igual modo no mesmo drama do qual devem dar uma imagem ou buscar o seu sentido. Se eles se mostram, é por caminhos tão parecidos que todos ficam tentados a percorrê-los ao mesmo tempo” (Blanchot, 1997, pp. 189-190).

24Louette (2005, p. 213) discorda da interpretação de Ingrid Galster. Sobre a peça Les mouches, ele afirma : “Ce

double niveau de signification, politique et métaphysique, a été clairement perçu à l’époque, même si les comptes rendus de presse ne pouvaient indiquer trop nettement la charge politique sans du même coup s’exposer à la censure (et appeler à l’arrestation de l’auteur)”. Para reforçar o argumento de que os compte

rendus não representam verdadeiramente a forma como o público e a crítica compreenderam a peça,

(24)

Benoît Denis (2005) não discorda que o teatro possa ter aproximado Sartre do grande público, mas duvida que o teatro tenha facilitado a compreensão das ideias filosóficas existencialistas, além disso se posiciona contrário à ideia de que as obras de ficção funcionam como ilustração da filosofia sartriana:

[…] on peut douter que le théâtre de Sartre constitue véritablement une "illustration" de sa philosophie, au sens où, de L'Être et le Néant à Huis

Clos, nous nous trouverions en face d'un continuum où la même pensée se

donnerait à connaître sous des formes différentes. Pour le dire nettement, il n'est pas sûr que le lecteur de l'essai d'ontologie phénoménologique et le spectateur de théâtre accèdent à la même version de l'existentialisme sartrien […]. Ce qui revient à dire que pour comprendre vraiment le théâtre de Sartre, il serait nécessaire de connaître aussi sa pensée philosophique, en sorte que le spectateur idéal de ce théâtre serait précisément ce qui n’en pas besoin pour accéder à la connaissance de l’existentialisme sartrien. Il y aurait aussi dans l’entreprise théâtrale de l’auteur un paradoxe qui, pris au pied de la lettre, en ruinerait par avance l’ambition et les objectifs : divulguer auprès d’un public profane une pensée philosophique ardue, alors même que sa mise en scène en gauchirait nécessairement le sens auprès du non-initié. (DENIS, 2005, pp. 148-149).

Corroborando com a conclusão que se pode extrair a partir das descobertas de Galster, para Denis o público ideal do teatro sartriano seria aquele que conhece de antemão a filosofia existencialista, isto é, justamente aquele que não teria necessidade de receber didaticamente as teorias filosóficas por meio de ilustrações e metáforas, o que invalidaria a concepção de que Sartre escreve obras ficcionais com a intenção de angariar seguidores para o existencialismo. Ora, se para a verdadeira compreensão das obras de ficção é necessário o conhecimento do pensamento filosófico, como afirmou Denis, podemos propor a inversão dessa afirmação e investigar sua veracidade, a saber, se para a verdadeira compreensão filosófica é necessário o conhecimento das obras ficcionais25.

François Noudelmann defende que a literatura jamais foi, na concepção e na prática de Sartre, um meio para vulgarizar suas ideias filosóficas, mas que a literatura é, ao françaises, em 1943.

25Essa inversão poderia conduzir o leitor a supor que não proponho nada além da simples inversão da fórmula

que subordina ficção à filosofia, ou seja, que sugiro uma inversão que subordine a filosofia à ficção. No entanto, mais que uma proposição, a sugestão é somente uma ironia às interpretações do primeiro grupo tratado há pouco. O que defendo é, com efeito, a inter-relação entre filosofia e ficção, isto é, que nem ficção se subordina à filosofia nem o contrário, mas que ambas são conectadas de uma certa forma. De que maneira filosofia e ficção se relacionam no conjunto do pensamento sartriano é o que me proponho a estudar ao longo deste trabalho.

(25)

contrário, um fim na medida em que ela contém as questões da sua época e nela – ou seja, na literatura – o sentido do mundo, à sua própria época, se realiza plenamente (NOUDELMANN, 1993, p. 39). Noudelmann destaca que os personagens da literatura e da dramaturgia de Sartre não são a representação tipificada de uma essência ou natureza humana, ao contrário: as vivências individuais são narradas formando uma construção do caráter universal próprio da condição humana. Nesse sentido, a ficção sartriana renuncia, essencialmente, a manifestação traduzida dos conceitos filosóficos na medida em que apresenta vivências singulares possíveis diante de situações possíveis, isto é, literatura e teatro não devem ser interpretados como exemplificações práticas para conceitos teóricos e abstratos da filosofia sartriana.

Franklin Leopoldo e Silva se refere à relação entre filosofia e literatura cunhando a expressão vizinhança comunicante26. Essa concepção indica a “diferença e [a] adequação

recíproca dos dois modos da dualidade expressiva” (LEOPOLDO E SILVA, 2004, p. 12). A dimensão de vizinhança comunicante é dada pela “compreensão das vivências individuais pela via da ficção [que] só atinge o plano da existência concreta porque insere o drama existencial particular na estrutura universal do ser da consciência […]” (Idem, p. 13). Leopoldo e Silva também entende que a literatura não é exemplificação das teorias filosóficas de Sartre, mas que tanto a filosofia quanto a literatura devem ser encaradas como formas de expressão necessárias para a realização concreta do projeto sartriano, que é justamente o projeto de pensar a ordem humana.

Rhiannon Goldthorpe (1984) interpreta a relação entre ficção e filosofia como um processo em movimento, caracterizado pela ausência de linearidade, em que as obras dramáticas e literárias podem ora antecipar, ora confirmar e ora, ainda, questionar discursos teóricos, sem ilustrar ou exemplificar. Para esta autora, filosofia e literatura são implicadas mutuamente no pensamento sartriano, o que não significa que uma necessariamente valide a outra. A autora aponta, inclusive, que há momentos de tensão, ambiguidade, questionamento e subversão entre ambas. Para Goldthorpe, por vezes a literatura concentra em uma obra temas que estão dispersos em obras filosóficas, como por exemplo La nausée, que dramatiza

(26)

a relação entre consciências e mundo, tema este que será analisado teoricamente somente mais tarde, em L’être et le néant27.

Bertrand Saint-Sernin (1990) também se opõe à interpretação de que a filosofia subjuga a ficção: “La fiction sartrienne ne forge pas des représentations imaginaires, au moyen desquelles les choses seraient tenues à distance ; elle abaisse les défenses, endort la mécanique de la vision, favorise l’irruption en soi de l’existence” (1990, p. 167). Para o autor, a relação entre filosofia e ficção é de inerência e atribui como função da literatura liberar toda a potencialidade do pensamento que a filosofia entrava: “Entre philosophie et fiction, la relation n’est ni extérieure ni accidentelle ; c’est un rapport d’inhérence. La fiction n’a pas pour fonction de fabriquer des copies ou des doubles, mais de libérer puissances enfouies ou entravées” (Ibidem, p. 165).

Thana Mara de Souza (2008) também se opõe à ideia de ficção como subordinada à filosofia e defende que ambas são interdependentes e complementares28. No

capítulo dedicado a pensar a relação entre fenomenologia e prosa, a autora defende que a prosa tem um papel ambíguo, porque não é totalmente arte, já que usa a palavra como signo e não como objeto29, mas também não é totalmente filosofia, porque está no plano do irreal,

do imaginário30. Para a autora, a prosa ocupa um lugar muito especial no pensamento de

Sartre porque seu caráter se dá justamente na tensão entre o irreal e o real, entre o ser e o nada. Souza associa a beleza31 ao sentido e o engajamento à significação: “É essa passagem

do plano irrefletido para o plano refletido que a prosa, engajada, opera” […] (SOUZA, 2008, p. 59), em outras palavras, a prosa opera a significação.

Se é assim, se a prosa é o campo da significação, a prosa está ainda mais perto da filosofia, entendida aqui como fenomenologia, que suporíamos em princípio, pois o ato originário da consciência é designar, anunciar, visar, significar em direção a um sentido que ela já porta em si: “todo cogito, toda vivência de consciência (Bewustßtseinerlebnis)32, assim

27Conferir, principalmente, a Introduction de Goldthorpe.

28“Portanto, a relação entre a fenomenologia e a literatura é de interdependência [….]. A filosofia (no sentido

fenomenológico) e a literatura (entendida como romance metafísico) se apresentam como dois momentos necessários da compreensão da realidade humana, e por isso se complementam” (SOUZA, 2008, p. 73)

29Como faz a poesia. 30Cf. Souza, 2008, p. 74

31Cf. Souza, 2008, pp. 57-59. Interessa, aqui, mais a noção de engajamento como significação que a ideia de

sentido e beleza.

(27)

podemos dizer também, significa (meint) alguma coisa e, porta em si mesmo, enquanto significado33 (Gemeinten), seu respectivo cogitatum” (HUSSERL, 1950, p.71, grifo meu).

Paul Ricœur, discorrendo sobre a fenomenologia da significação34 de Husserl, defende que a

questão fundamental da fenomenologia é, justamente, a significação35: O que significa, significar? A pergunta ricœuriana pelo sentido de significar remete à intencionalidade, enquanto ato vazio da consciência a ser preenchido por uma presença; o perguntado da questão não é o que é o sentido, mas como se significa o sentido36.

Alain Flajoliet (2007), por sua vez, vai mais longe ainda e defende que é tarefa da literatura resolver a questão da origem do para-si, pois somente a literatura poderia fazer face aos problemas metafísicos e solucionar esse problema interno à filosofia de Sartre. A saída não seria apresentada, porém, por meio de argumentos e conceitos teórico-filosóficos, mas a partir das metáforas, intrigas e de enredos próprios da literatura37.

Na famosa entrevista concedida a Simone de Beauvoir, em 1974, publicada em La cérémonie des adieux, Sartre explica, mais uma vez, como a literatura aconteceu antes que a filosofia: “À l’époque, je ne voulais pas écrire de livres de philosophie. Je ne voulais

versão em francês adota a expressão état de conscience, estado de consciência. Em geral, as traduções brasileiras seguem a francesa fazendo uso da mesma tradução por estado de consciência. O termo erlebnis é, no entanto, traduzido frequentemente como vivência ou experiência tanto em francês, quanto em inglês e em português. Erlebnis significa o estado de consciência pessoalmente vivido, ou experenciado, de maneira individual, como um tipo de atividade, evento, processo mental na forma de ato; diferente do termo Erfahrung que significa experiência no sentido comum. Considero uma tradução mais próxima da literal, isto é, vivência, a melhor escolha, neste caso.

33No sentido de objeto visado, objeto intencionado. Cf. na citação número 36, o uso do verbo Meinen por Paul Ricœur.

34Cf. Phénoménologie de la signification, pp. 9-12, da obra À l’école de la phénoménologie. Referência completa da obra ao final da tese.

35“Il est important de remarquer que la première question de la phénoménologie est : que signifie, signifier ?

Quelle que soit l'importance prise ultérieurement par la description de la perception, la phénoménologie part, non de ce qu'il y a de plus muet dans l'opération de conscience, mais de sa relation aux choses par les signes, tels que les élabore une culture parlée. L'acte premier de la conscience est de vouloir dire, de désigner (Meinen) ; distinguer la signification, parmi les autres signes, la dissocier du mot, de l'image, élucider les diverses manières dont une signification vide vient à être remplie par une présence intuitive (quelle qu'elle soit), c'est cela décrire, phénoménologiquement la signification. Cet acte vide de signifier n'est pas autre chose que

l'intentionnalité. Si l'intentionnalité est cette propriété remarquable, de la conscience d'être conscience de, de

s'échapper à soi-même vers un autre, l'acte de signifier contient l'essentiel de l'intentionnalité” (RICŒUR, 2004, pp. 9-10, grifos meus).

36Um estudo mais aprofundado sobre a fenomenologia e a linguagem deve ser realizado para atestar as relações

entre significação, consciência, vivência e linguagem.

37“In fact, only literature can face the metaphysical problem of the origin of the for-itself, not with the help of

concepts and arguments, but by means of metaphors and plots”. (FLAJOLIET, 2007, p. 11). Apesar da força dessa proposição, Flajoliet não desenvolve como a literatura faria isso.

(28)

pas écrire l’équivalent de la Critique de la raison dialectique ou de L’être et le néant. Non, je voulais que la philosophie à laquelle je croyais, les vérités que j’atteindrais, s’expriment dans mon roman” (1981, p. 203). Sartre foi, portanto, primeiro um romancista e depois um filósofo, o que significa que seu projeto de escrita, se não precedeu suas concepções filosóficas, ao menos se descobriu no movimento da escrita ficcional, ou seja, as ideias filosóficas de Sartre possivelmente se realizaram em ato pela via da literatura e do romance antes mesmo de se concretizarem em obras teórico-filosóficas38. Certo é, portanto, que a

literatura – em especial La náusee e os contos escritos na juventude, posteriormente chamados de Les écrits de jeunesse – não poderia ser considerada, com efeito, exemplificação a priori de produções filosóficas que seriam escritas somente mais tarde, o que enfraqueceria ainda mais a concepção de ilustração e exemplificação do primeiro grupo. O próprio Sartre também argumenta contra a ideia de tomar a escrita ficcional símbolo da sua filosofia e explica o mote sob o qual os dois modos de expressividade se vinculam, usando como exemplo a correspondência entre Huis clos39 e L’être et le néant:

Quand j'ai écrit Huis clos - par exemple -, une petite pièce où l'on ne parle pas de philosophie, L'Être et le Néant était paru, en tout cas sous presse. Mon histoire de damnés n'était pas un symbole, je n'avais pas envie de “redire” L'Etre et le Néant : pour quoi faire ? Simplement, j'inventais des histoires avec une imagination, une sensibilité et une pensée que la conception puis l'écriture de L'Être et le Néant avaient unies, intégrées, structurées d'une certaine façon. Si vous voulez, mon gros livre philosophique se racontait de petites histoires sans philosophie. (Sit IX, p. 10, grifo meu).

Huis clos foi, por exemplo, o resultado de uma imaginação, de uma sensibilidade e de um pensamento que estavam de alguma maneira unidos e estruturados à concepção e à escrita de L’être et le néant, o que não torna o primeiro uma metáfora, uma ilustração ou uma exemplificação do segundo, mas significa que L’être et le néant e Huis clos estão d’une certaine façon integrados, vinculados, unidos, o que os torna partes de um projeto maior, de um sistema, de um conjunto de pensamento. Não seria incorreto assumir que esse é o legítimo modus operandis sartriano e pressupor que o mesmo se passa com as outras obras de filosofia e de ficção; cabendo, portanto, aos estudiosos do pensamento sartriano

38Um estudo sobre Les écrits de jeunesse confirmaria essa hipótese.

(29)

dedicarem-se a pesquisar e desvendar a qual certa maneira o filósofo se refere, que une, vincula e estrutura as obras de filosofia e de ficção40.

Se filosofia e ficção são, no conjunto do pensamento sartriano, interdependentes, explorar uma das expressividades abandonando a outra, significa desconsiderar um importante veículo de pensamento confirmado pelo próprio autor. A ficção exprime, segundo Sartre, uma filosofia e o faz de uma maneira muito original, desvelando uma visão total do mundo:

Il me semble que le théâtre ne doit pas dépendre de la philosophie qu’il exprime. Il doit exprimer une philosophie, mais il ne faut pas qu’on puisse à l’intérieur de la pièce poser le problème de la valeur de la philosphie qui s’y exprime. Il faut que la pièce donne une vision totale d’un moment ou d’une autre chose, mais il faut en meme temps que ce qui s’y révèle, se révèle d’une manière entièrement théâtrale. (Th. C, p. 1026).

Ao defender a concepção que não subordina a literatura à filosofia, é importante observar duas outras coisas: a primeira, que isso não implica em subordinar a filosofia à ficção41; a segunda, que estudar a ficção tendo como justificativa a importância da

abordagem do corpus, implica também em não limitar cronologicamente o estudo, uma vez que o próprio autor considerou – sem hierarquias de estilo – seu pensamento presente tanto na Náusea quanto na Critique de la raison dialectique. Não haveria, portanto, razões para empreender um estudo filosófico privilegiando o teatro e a literatura se ambos fossem subjugados à filosofia; nesse caso, seria melhor que se se estudasse teatro e literatura segundo a hierarquia cabível em lugar de dar destaque a um gênero que não possui legitimidade teórica no conjunto da obra de Sartre, o que, espero ter tido sucesso em mostrar, não é o caso.

Como dito, as razões para abarcar nesta pesquisa filosófica todos os períodos ou fases do pensamento sartriano, sem privilegiar um dos momentos, seja o da Ontologia ou o da História, se sustentam na perspectiva de conjunto, de corpus, que adoto como metodologia de pesquisa da presente tese. Pretendo mostrar que para ampliar o estudo do pensamento de Sartre e aprofundar na análise dos conceitos fundamentais da ontologia e da moral, há uma abordagem por um viés seguidamente negligenciado por aqueles que

40É também o que desejo fazer neste trabalho.

(30)

preferem taxativamente ordenar o pensamento de Sartre em dois ou três, por aqueles que privilegiam apenas uma forma de expressão, essa abordagem é a de conjunto da obra. A metodologia escolhida traz consigo, no entanto, um segundo problema: compreender a relação entre os primeiros e os últimos temas do autor, problemática mais conhecida, sobretudo, em relação à L’être et le néant, e a Critique de la raison dialectique42, mas que se

mostra também nas obras ficcionais.

Ontologia e História

É comum encontrar na literatura crítica sobre Sartre aqueles que separam o pensamento do filósofo e suas obras em fases ou momentos, mais ou menos relacionados. Há leituras que se consolidaram na tradição dos estudos sartrianos que sustentam a distinção da filosofia sartriana em Ontológica e Histórica, tendo como L’être et le néant e Critique de la raison dialectique, respectivamente, a principal obra de cada fase e a Segunda Guerra Mundial como o divisor de águas. Por algumas vezes, o próprio Sartre corroborou com essa ideia de fases, sejam elas duas ou três.

Em entrevista a Pierre Verstraeten, publicada em 1972, Sartre classifica sua filosofia moral em três momentos: irrealismo idealista, realismo moralista e realismo materialista moralista: “J’ai passé d’un irréalisme idéaliste (quand j’avais dix-huit ans) à un réalisme a-moraliste quand j’en avais quarante-cinq, et de là je retrouve, mais cette fois matériellement, la moralité comme fondement du réalisme, ou, si tu veux, un réalisme matérialiste et moraliste” (Citado por Jeanson, 1990, p. 900). Em outras situações, o filósofo afirmou que a unidade do seu pensamento transcendia as mudanças ocorridas no seu interior: “J’ai changé comme tout le monde: à l’intérieur d’une permanence”43.

A tradição fixou, de maneira geral, três momentos teóricos em que o sistema de Sartre passa por uma revisão. Do início da atividade filosófica de Sartre até mais ou menos a

42Assim como prevenido acima, minha intenção é a de apresentar o ponto de partido da discussão sobre a

relação entre as fases do pensamento de Sartre. Esse tema é intrínseco também à tese inteira.

(31)

publicação de L’être et le néant compreende-se o momento no qual a liberdade é absoluta e sem restrição. Sartre se declara um adepto da moral estoica, sempre livre independentemente da circunstância. Nesse primeiro momento, a liberdade é a estrutura fundamental do para-si identificada à faculdade de negação e nadificação que permite ao homem desvelar o mundo. Nesse sentido, a liberdade é entendida como a modalidade original (originária) de ser da realidade humana. Ser homem é equivalente a ser livre. Os inacabados Cahiers pour une morale marcam o contexto do pós-guerra em que Sartre aprende o peso das circunstâncias e a liberdade passa a ser, então, tomada ao mesmo tempo como valor absoluto e norma ética, o que é difícil de conciliar para uma filosofia que abdica do a priori e de valores absolutos. Uma década e meia mais tarde, Sartre publica a Critique de la raison dialectique, em que a liberdade real deverá ser conquistada quando o homem se libertar do jugo da escassez. A liberdade é, então, considerada ao mesmo tempo como conceito operacional e condição necessária para a libertação.

Sobre a relação entre esses três momentos ou fases, historicamente consolidaram-se na tradição dos estudos sartrianos, basicamente, duas correntes interpretativas mais ou menos opostas sobre a relação entre a Critique de la raison dialectique e L’être et le néant, e uma terceira via, mais recente, que procura realizar uma espécie de síntese entre a primeira e a segunda: i.) a primeira adota a postura de ruptura; ii.) a segunda de puro contiuísmo; enquanto que iii.) a terceira, defende a ideia de evolução.

i.) A primeira corrente considera, grosso modo, que houve uma ruptura drástica. Dessa corrente, alguns representantes localizam na Segunda Guerra Mundial o momento decisivo da ruptura; outros, creem que a divisão acontece mais tarde, quando Sartre se aproxima da teoria marxista, no período da Guerra Fria.

ii.) A segunda corrente, expressivamente menor em quantidade, enxerga na obra de 1960 um puro continuísmo em relação a L’être et le néant. Um dos desafios deste trabalho, portanto, é a de não assumir posições radicais sobre o tema: nem defender uma drástica ruptura e nem assumir o total continuísmo entre o período que circunda a Segunda Guerra Mundial, que produziu O ser o nada, por exemplo, e o momento de produção da Crítica da Razão Dialética.

iii.) Há, ainda, uma terceira via mais atual, cujas leituras tendem a compreender a questão sem tanto extremismo, assumindo uma visão mais “dialética” ao considerar que há

(32)

momentos de ruptura e momentos de continuísmo, como se o conjunto do pensamento satriano realizasse uma evolução. Nessa perspectiva, os principais termos para conceber o que se passa entre as primeiras e as últimas obras são: passagem, alargamento, mudança de foco e mudança de perspectiva. Apesar de sedutora, esta visão mais conciliadora não parece resolver completamente a questão e, além disso, pode dar margem para a origem de um novo problema. Se tomarmos o pensamento de Sartre sob a ótica da evolução, no seu sentido comum de melhoramento e de progresso, suplantamos justamente a riqueza da ideia de conjunto da obra que anunciei no início.

Luciano Donizetti da Silva (2006, p. 144 e ss.) trata da relação entre L’être et le néant e a Critique de la raison dialectique como um “desdobramento” da primeira na segunda, de “passagem de O ser e o nada à Crítica da razão dialética” (Ibidem, p. 151) também fala de “dois momentos de evolução no conjunto do pensamento de Sartre” (Ibidem, p. 145), em que o filósofo realiza um “lento e gradual processo evolutivo que leva de O ser e o nada à Crítica da razão dialética” (Ibidem, p. 148). Donizetti da Silva posiciona-se contra a ideia de ruptura: “de modo algum essas evoluções significaram uma simples ruptura com o pensamento anterior e a aceitação, em sua totalidade, da nova vertente escolhida” (Ibidem, p. 145), ainda assim, confessa que tomadas somente O ser e o nada e a Crítica da razão dialética “é possível concluir que cada uma dessas obras expressa um momento distinto e independente do pensamento do filósofo” (Ibidem, p. 146) e que a Crítica da razão dialética é “a devida resposta aos problemas que ficaram pendentes” (Ibidem, p. 151) em O ser e o nada. Apesar de o autor defender que não há ruptura entre esses dois momentos, afirma que cada uma das duas obras isoladamente representa um momento diferente e independente de modo que “O ser e o nada apenas pode ser compreendido à luz daquilo que Sartre desenvolveu sob influência de Husserl e daquilo que ele se apropria do pensamento heideggeriano”. Se é assim, como vincular O ser e o nada à Crítica da Razão Dialética que foi escrito, segundo o próprio Donizetti, sob influência de Marx? Como não entender esses dois livros como opostos um do outro e assumir que há ruptura? O autor não menciona, no entanto, os Cahiers pour une morale como um instrumento de conexão, como fazem outros intérpretes que inicialmente defendiam a ideia de ruptura, como por exemplo, Juliette Simont que, em 2015 reedita seu livro Jean-Paul Sartre : un demi-siècle de liberté, justificando sua antiga interpretação com o desconhecimento dos Cahiers. Um dos

(33)

problemas deixado em aberto em L’être et le néant citado por Donizetti da Silva é “o solipsismo em sua ontologia (o ser-para-o-outro)” (DONIZETTI DA SILVA, 2006, p. 152), mas o autor diz que a Crítica “é o resultado” (Ibidem, p. 146) de O ser e o nada. Essa interpretação da relação entre as duas obras teóricas pode sugerir que o Sartre da Crítica é o Sartre maduro, completo, de verdade, porque alcançou um melhor acabamento, enquanto o Sartre de O ser e o nada é o jovem que ainda achava que a ontologia conseguia responder a tudo (Idem).

Uma resposta bastante interessante sobre a relação entre L’être et le néan e Critique de la raison dialectique é dada por Gerhard Seel (2005), que não distingue três fases estanques do pensamento de Sartre, mas anuncia que a filosofia moral de Sartre se desenvolveu em três fases de uma mesma filosofia moral. E que essas três fases do pensamento moral de Sartre foram desenvolvidas em três níveis: o nível da moral interna, da moral externa e da moral histórica:

Au premier niveau, il s’agit uniquement des conditions à remplir pour que, dans la sphère de l’immanence, de la simple attitude, la vie volontaire de l’individu soit moralement bonne. Sur le plan de la morale externe, il s’agit des conditions de validité des normes extérieures, définissant la vie en société des individus. La morale historique, elle, se place dans le domaine de la validité morale du processus historique. (SEEL, 2005, p. 6).

Ao contrário do que supostamente poderíamos concluir, Seel não identifica cada uma das fases ou dos níveis a uma das obras teóricas fundamentais de Sartre, mas afirma que os três níveis estão presentes em todas as fases do desenvolvimento da filosofia moral de Sartre: “tandis que dans l’Être et le Néant l’accent est mis sur la morale interne, les Cahiers sont déjà marqués par un déplacement vers le niveau social et historique. Ce dernier se trouve finalement au centre des réflexions de Sartre dans la Critique” (Idem). Isso significa que deve existir em La nausée, por exemplo, uma moralidade que se dirige para a História ao mesmo tempo em que deve haver em Les troyennes a presença da moralidade interna. É o que este trabalho pretende descobrir. Para isso, procuro não adotar um posicionamento que encare cada momento do desenvolvimento do pensamento de Sartre simplesmente como resultado de determinações externas, mas como a interação complexa entre as determinações internas da estrutura do pensamento sartriano e seu contexto histórico. Por mais que Sartre valide, por meio de declarações calorosas e radicais, o

(34)

abandono do primeiro período em detrimento do segundo, pretendo examinar o progresso e a evolução do seu trabalho com cuidado, a fim de compreender se é assim ou se as sucessivas mudanças revelam uma dimensão de continuidade fundamental não apenas entre Ontologia e História, mas também entre Filosofia e Ficção. Para realizar essa tarefa, procuro me aproveitar do distanciamento que as condições espaço-temporais me permitem em relação à obra de Sartre e, ao mesmo tempo, analisar o sentido de cada obra de dentro. Explico melhor: examinarei cada obra, em primeiro lugar, do ponto de vista do autor, investigando o contexto histórico e a ligação da obra analisada com as outras obras (aquelas já escritas e as que estão sendo planejadas para o futuro) a fim de traçar um perfil do projeto de escrita e de escritor44; em segundo lugar, do ponto de vista da obra, com a intenção de

conhecer a gênese da escrita, os elementos que impulsionaram a produção de cada obra, e sua recepção pela imprensa e pelo público. Uma dificuldade interna a este trabalho, das maiores a meu ver, é fazer a leitura de conjunto da obra, procurando a dimensão de continuidade fundamental sem cair na tentação de enxergar as obras de um período como o abafamento das anteriores, no sentido de assumir que o período final representa “o verdadeiro” Sartre e que a primeira parte era o Sartre de antes, superado, incompleto. O ideal almejado e perseguido neste trabalho é resguardar a dimensão incompleta e aberta de cada obra, como o próprio Sartre indicou. Em resumo, isso significa que a prática deste trabalho não trata As mãos sujas, por exemplo, como uma obra mais madura que As moscas, mas também não impede observar que o heroísmo característico desta não é mais tão presente naquela.

A entrevista a Perry Anderson, Ronald Fraser e Quintin Hoare, em novembro – dezembro 1969 e publicada originalmente na revista New Left Review45, inicia com uma

pergunta muito semelhante àquela da Conferência de Araraquara, isto é, sobre a relação entre os primeiros textos filosóficos, sobretudo L’être et le néant e a Critique de la raison dialectique, cujo primeiro tomo havia sido lançado há quase uma década e aguardava-se ainda que o francês cumprisse a promessa do segundo volume. A primeira frase de reposta de

44Quando possível, me apoiando também sobre documentos biográficos, como cartas, anotações, diários,

contexto e documentos históricos, além de relatos dos próximos e da família.

45Número 58, com o título Itinerary of a Thought. Republicada em Sit IX sob o título Sartre par Sartre, pp.

99-134. Publicada em português no livro Vozes do Século: Entrevistas da New Left Review. SADER, Emir (Org.). Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

Este capítulo tem uma abordagem mais prática, serão descritos alguns pontos necessários à instalação dos componentes vistos em teoria, ou seja, neste ponto

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

A placa EXPRECIUM-II possui duas entradas de linhas telefônicas, uma entrada para uma bateria externa de 12 Volt DC e uma saída paralela para uma impressora escrava da placa, para

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,