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A decisão do homme seul

1.1 Bariona: l’homme seul e a coletividade

1.1.2 A decisão do homme seul

A peça contém essencialmente dois sentidos100: um é circunscrito pela situação

do momento, tem um sentido mais imediato e encontra importância em realizar a união entre os prisioneiros em razão dos problemas partilhados101; o outro é filosófico, mais complexo,

carrega um número considerável de ideias existencialistas, políticas e éticas. Esses dois

98“Ma première expérience théâtrale a été particulièrement heureuse” (TS, p. 63). 99 É o que nos conta Beauvoir, 1980b, p. 17.

100Renate Peters vê Bariona em três perspectivas : “Dans une première perspective Bariona est un mystère dans

lequel Dieu, jusqu’à son incarnation, figure comme le directeur invisible du grand théâtre humain ; dans l’autre il dévoile les contradictions sociales qui déchirent une société sous le joug d’un maître-colon. Et finalement il y a une perspective philosophique. L’ensemble constitue une pièce proprement dialectique qui, au lieu d’hypnotiser le public, en réclame une attention constante et, outre le pur divertissement, un effort intellectuel pour qu’il suive la dialectique représentée”. (PETERS, 1979, pp. 134-135).

101“[…] tout en trompant la vigilance du censeur allemand au moyen de symboles simples, s’adressait à mes

compagnons de captivité. Ce drame qui n’était biblique qu’en apparence, […] s’adressait à eux en leur parlant de leurs soucis de prisonniers” (TS, p. 64).

sentidos são codificados e se realizam em dois graus velados na interpretação para além da história natalina.

A peça inicia pelo Prólogo, em um tom um pouco jocoso, um apresentador (montreur d’images) cego utiliza-se de imagens para narrar, ao som de um acordeão, o encontro do Anjo Gabriel com a Virgem Maria:

L’ange est immense […]. Il a coulé comme une inondation dans l’humble maison de Marie et il la remplit à présent de son corps fluide […]. Il se tient devant Marie et Marie le regarde à peine. […] Il n’a pas parlé car Marie a compris son message sans paroles ; elle le pressentait déjà dans sa chair. A présent l’ange se tient devant Marie et Marie est innombrable et sombre comme une forêt, la nuit, et la bonne nouvelle s’est perdue en elle comme un voyageur s’égare dans les bois. […] Et de mille pensées sans paroles s’éveillent en elle, de lourdes pensées de mères qui sentent la douleur. Et voyez, l’ange a l’air interdit devant ces pensées trop humaines : il regrette d’être ange parce que les anges ne peuvent pas naître, ni souffrir. […] l'histoire commence neuf mois plus tard […]. (Bar, p. 1115-1116). Não é difícil perceber o ar sexual da cena de Anunciação. Em entrevistas, Sartre reafirma suas intenções políticas e filosóficas ao escrever e encenar Bariona, contudo, era preciso escrever um conto de Natal que passasse pela censura sem trair a si próprio, logo, a peça é recheada de ironias e zombarias, algumas um pouco veladas, outras nada escondidas. Provavelmente mais que desrespeitar as crenças cristãs e a sacralidade da Anunciação, a intenção de Sartre foi atrair a atenção dos censores para o estilo depravado para fazê-los desviar do conteúdo político da peça102.

Sabe deixa indicações sutis de que elementos serão escondidos por detrás do primeiro plano da história: a boa nova que se perde em Maria; mil pensamentos sem palavras despertam; os pensamentos pesados, difíceis, duros; o anjo a quem os pensamentos demasiado humanos estão proibidos. Trata-se, no Prólogo, de oferecer aos companheiros de cativeiro algumas pistas sobre a sequência da peça e de chamar a atenção dos espectadores sobre as mensagens codificadas no texto. Os pensamentos muito humanos, ou seja, aqueles dos prisioneiros, estão proibidos aos anjos, isto é, aos guardas, à censura, a todo aparelho repressivo. A aparente vulgaridade da cena de Anunciação-Inseminação, poderia servir para esconder o verdadeiro sentido crítico dos pensamentos difíceis que Sartre somente

conseguiria transmitir aos seus companheiros secretamente. Para marcar ainda mais o distanciamento da cristandade do Natal, Sartre substitui a sacralidade divina pela humana, a dos alemães (anjos), pela dos judeus (prisioneiros): neste 24 de dezembro, “[…] c’est la fête des hommes car c’est au tour de l’homme d’être sacré” (Bar, p. 1116).

Sartre coloca Bariona, o personagem central, em uma situação-limite: Roma ordena ao pequeno e já pobre vilarejo de Béthsur um aumento de impostos. Bariona, chefe da vila, reúne o Conselho dos Anciãos para discutir o que deve ser feito:

Premier Ancien : Nos bras sont trop faibles, nos bêtes crèvent, le mauvais sort est sur notre village. Il ne faut pas obéir à Rome.

[…]

Deuxième Ancien : Je ne suis pas vendu, mais je suis moins bête que toi et je sais voir les choses : quand l’ennemi est le plus fort, je sais qu’il faut courber la tête.

[…]

Premier Ancien : Jusqu’ici nous avons cédé à la force, mais c’est assez à présent : ce que nous ne pouvons pas faire, nous ne le ferons pas. […]. Deuxième Ancien : Tu veux te révolter, toi qui n’as même plus la force d’un enfant. Ton épée tomberait de ton bras sénile […]. (Bar, p. 1129). A discussão do Conselho dos Anciãos observa apenas duas possibilidades de resolver o problema, mas ambas ameaçadas de fracasso desde o início: não obedecer a Roma e morrer sob a cólera da vingança, ou pagar os impostos e morrer de fome e penúria. Nos dois casos, serão os poucos jovens e crianças que ainda restam na vila que pagarão mais caro, pois os velhos não têm mais forças nem para lutar, nem para trabalhar. Aparentemente a situação é de inevitável derrota, seja pela submissão ou pela revolta, o sofrimento e a miséria serão os resultados de qualquer que seja a decisão de Bariona. Não parece haver, contudo, verdadeiramente a possibilidade de realizar uma escolha, de encontrar uma saída para o problema, uma vez que a consequência é a mesma nos dois casos, ou seja, a morte. Béthsur já era um povo fatigado e humilhado por Roma e suas altas taxas; há muito tempo os jovens deixaram o vilarejo para tentar ganhar a vida longe dali, àqueles que restaram – por orgulho, como Bariona – não havia mais muito a fazer.

Completamente sem esperanças, Bariona discursa ao Conselho e apresenta uma concepção bastante pessimista, do homem como solitário, que pensa a partir da perspectiva de indivíduo isolado dos outros, desenraizado: “chacun de nous est seul, dans le noir, et le silence est autour de nous, comme un mur. […] ceux d’entre nous qui ont encore la jeunesse

du corps ont vieilli par en dessous et leur cœur est dur comme une pierre car ils n’ont plus rien à espérer […] sauf la mort” (Bar, p. 1130). A fala de Bariona é preenchida de uma imagem pessimista e desencorajada do homem. Para Bariona, o homem é um indivíduo solitário, abandonado, isolado, que não deve esperar nada da vida ou dos outros. A concepção de mundo e de vida de Bariona é igualmente pessimista: “le monde n’était qu’une chute interminable et molle, le monde n’est qu’une motte de terre qui n’en finit pas de tomber. […] la vie est une défaite, personne n’est victorieux et tout le monde est vaincu […], la plus grande folie de la terre, c’est l’espoir” (Bar, p. 1130, grifo meu). Bariona vê o mundo como um lugar de onde ninguém sai vitorioso, um lugar de fracasso constante e insuperável falha.

Como saída para o aumento de impostos, o chefe não prega a submissão à Roma tampouco a resistência contra Roma, pois sabe que tanto a aceitação quanto a luta seriam igualmente fatais para o povo. Diante da situação tão complexa que se encontra o povo de Béthsur, Bariona abandona a dicotomia do aceitar x combater, pagar ou não pagar, revoltar- se ou não se revoltar e cria uma saída dialética, uma terceira via que é ao mesmo tempo pagar e revoltar-se, não pagar e não se revoltar: “Nous paierons l’impôt pour que nos femmes ne souffrent point. […] Nous ne ferons plus d’enfant. […] Nous ne voulons plus perpétuer la vie ni prolonger les souffrances de notre race” (Bar, p. 1131). Bariona não conclama o povo à luta, tampouco à submissão ao mais forte. Para evitar de pagar os impostos já muito altos à Roma, o chefe decide que seu vilarejo não dará mais nenhum filho para servir de soldado, escravo, trabalhador ou pagador de impostos. A decisão de Bariona é muito singular, pois ela está fora do clássico binômio ser ou não ser; além disso, ela não resolve o problema em sentido ordinário, pois Roma continuará usurpando o povo judeu, ou outro povo mais fraco, porque a decisão de Bariona não evitará que os romanos continuem a ser os usurpadores, os ricos, os cruéis e os injustos que sempre foram. Bariona resolve o problema de uma maneira totalmente diferente e não usual fazendo com que os romanos não tenham mais Béthsur para abusar, pois Bariona decretara o fim da população de Béthsur, o que não impede que usurpem outras vilas, mas aniquila a existência futura do seu povo. Bariona sugere uma punição à Roma em lugar de uma salvação a Béthsur:

Voulez-vous rafraîchir avec des hommes nouveaux l’interminable agonie du monde ? Quel destin souhaitez-vous pour enfants futurs ? Qu’ils demeurent ici, solitaires et déplumés […] ou bien qu’ils descendent là-bas dans les villes pour se faire esclaves des Romains […], mourir sur la croix. […] c’est pour lui que je ne veux pas qu’il naisse. […] C’est pour ta [à Sarah] que tu veux l’enfanter, non pour la sienne. […] Si tu l’aimes, aie pitié de lui. Laisse-le dormir du sommeil calme de ceux qui ne sont pas encore nés. Veux-tu donc lui donner pour patrie la Judée esclave ? […] On croit toujours qu’il y a une chance à courir. Chaque fois qu’on met un enfant au monde, on croit qu’il a sa chance et ce n’est pas vrai : les jeux sont faits d’avance. La misère, la mort, le désespoir, l’attendent aux carrefours. (Bar, pp. 1131-1134).

Bariona impõe uma ordem que restringe a liberdade individual dos cidadãos do vilarejo de Béthsur. Um tipo de ordem que parece direcionar-se para a não-ação. Alguns anos mais tarde, em L’être et le néant (1943) e também em L’existentialisme est un humanisme (1946), Sartre fundamentará a sua teoria da ação na qual defenderá que mesmo não agir já é um tipo de ação, não agir ainda é uma escolha e, portanto, uma ação. Pode-se dizer, no entanto, que há um princípio de discussão já em Bariona sobre o estatuto da ação e, sobretudo, em relação a um tipo de ação particular, a saber, a ação da nadificação e da negação da existência, que retornará nos personagens de Lucien Fleurier e Paul Hilbert103,

em particular, como figuras de má-fé.

A concepção pessimista sobre homem e mundo e a ideia que Bariona apresenta ao Conselho dos Anciãos de que é melhor nem nascer, é bastante semelhante aos discursos bíblicos de Jó e de Eclesiastes104:

A mon avis, la condition de l'enfant mort-né est meilleure que la sienne. (Ecclésiaste, 6,3).

Pourquoi m'as-tu tiré du ventre de ma mère ? J'aurais pu y mourir à l'abri des regards,et je serais allé tout droit jusqu'à la tombe, comme si je n'avais jamais eu d'existence. (Job, 10,18-19).

Car elle n'a rien fait pour m'empêcher de naître et de voir aujourd'hui cette dure misère. Pourquoi n'être pas mort dès avant ma naissance, n'avoir pas expiré dès que j'ai vu le jour ? (Job, 3,10-11).

103Personagens dos contos L’enfance d’un chef e L’Erostrate, respectivamente; contos publicados na coletânea

Le mur (1939) e que analiso na sequência.

104Cito a Bíblia em francês na versão corrente dos anos de 1930 para evitar as divergências de traduções para a

Ou bien tout simplement je n'existerais pas, comme l'enfant mort-né qui n'a pas vu le jour. Dans la tombe, les méchants ne s'agitent plus, et les gens épuisés se reposent enfin. Les prisonniers ont trouvé eux aussi la paix, ils ont cessé d'entendre les cris du gardien, et l'esclave est ici délivré de son maître. Grands ou petits, il n'y a plus de différence. (Job 3,16-19).

Segundo Joseph (1991, p. 84), Sartre “est méticuleux et feuillette souvent la Bible, soit pour nourrir son imagination, soit pour chercher une tournure de phrase dont l’emphase sacrée lui convient”. Bariona pronuncia a oração da sua “religion du néant” : “Devant le dieu de la Vengeance et de la Colère, devant Jéhovah, je jure de ne point engendrer. Et si je manque à mon serment, que mon enfant naisse aveugle, qu’il souffre de la lèpre, qu’il soit un objet de dérision pour les autres, et pour moi de honte et de douleur” (Bar, p. 1132). Nesse mesmo momento, Sarah, esposa de Bariona, anuncia sua gravidez. O filho que Bariona sempre quis é, hoje, não desejado pelo bem dele mesmo, é por ele que Bariona não quer que seu filho nasça. Pela primeira vez, Bariona fez uma escolha que engaja e altera o destino de todos, mas que é ele próprio o primeiro a ter de sacrificar-se105.

A discussão que segue entre Bariona e Sarah mostra duas visões diferentes: a já conhecida de Bariona, de solidão e desesperança, e a de Sarah, que entende e aceita todos os sofrimentos como parte da vida:

Sarah : Quand je serais certaine qu’il me trahira, qu’il mourra sur la croix comme les voleurs et en me maudissant, je l’enfanterais encore. […] J’accepte pour lui toutes les souffrances qu’il va souffrir […]. Il n’est pas une épine de son chemin qui se plantera dans son pied sans se planter dans mon cœur. Je saignerai à flots ses douleurs. […] Je l’aime déjà, quel qu’il puisse être. Je l’aime à l’avance, même s’il est laid, même s’il est aveugle, même si votre malédiction doit le couvrir de lèpre […]. Je veux lui donner aussi le soleil et l’air frais et les ombres violettes de la montagne et le rire des filles […], laisse encore une fois une jeune chance se courir dans le monde. (Bar, pp. 1133-1134).

105Sartre defende na obra L’existentialisme est un humanisme a ideia bastante forte de que as escolhas são feitas

de forma individual, mas que elas engajam toda a humanidade: “Ainsi, notre responsabilité est beaucoup plus grande que nous ne pourrions le supposer, car elle engage l’humanité entière. Si je suis ouvrier, et si je choisis d’adhérer à un syndicat chrétien plutôt que d’être communiste, si, par cette adhésion, je veux indiquer que la résignation est au fond la solution qui convient à l’homme, que le royaume de l’homme n’est pas sur la terre, je n’engage pas seulement mon cas : je veux être résigné pour tous, par conséquent ma démarche a engagé l’humanité tout entière” (EH, p. 32). Muito antes da Conferência, contudo, o movimento inverso, mas ainda assim coerente com o que será dito em 1946, acontece a Bariona: uma escolha que engaja toda a humanidade – aqui representada na figura do povo de Béthsur – afeta Bariona individualmente.

Um terceiro discurso se soma aos de Bariona e Sarah, o de Lélius, representante romano enviado para informar ao povo de Béthsur sobre o aumento dos impostos. Ainda que menos relevante teoricamente, Lélius situa perfeitamente Bariona em seu momento histórico em razão da carga política e pertinente ao contexto do personagem. Representando o ponto de vista de Roma, Lélius convida todos a pensarem segundo o interesse da tutora benevolente da Judeia. O romano defende que Béthsur tem para com Roma o compromisso de lhe fornecer soldados e trabalhadores, pois as vitórias de Roma não devem cessar por causa da falta de soldados; da mesma forma, para que os salários não continuem aumentando, é preciso trabalhadores em excesso, assim, a oferta de mão de obra ultrapassa a demanda e os salários finalmente poderão baixar, diminuindo os custos para o governo e para os proprietários: “Faites-nous des ouvriers et des soldats, chef, cela est votre devoir” (Bar, p. 1135).

O imediato contexto histórico que circunda Bariona é ferramenta importante para compreender melhor a gênese e o apelo histórico da peça. No ano de 1896, após a constatação do decréscimo populacional francês em relação a outros países europeus, o governo francês fundou a Association Nataliste Alliance Nationale pour l’Accroissement de la Population Française que, mais tarde, logo após a Primeira Guerra Mundial, se tornou a Alliance Nationale contre la Dépopulation. O presidente desta instituição, Fernand Boverat, foi também o vice-presidente do Conseil Supérieur de la Natalité e dedicou sua vida a pesquisar e a formular estratégias para vencer a baixa natalidade que acometeu a França, especialmente no período do imediato pré-Segunda Guerra Mundial106. Entre 1936 e 1939,

Boverat publica cartilhas ilustradas sobre o tema, uma delas, intitulada Comment nous vaincrons la dénatalité. Par la vérité, par le devoir, par la justice, tem como ideia diretriz o perigo que a baixa natalidade trazia para a França, além de apresentar métodos e estratégias para superá-la. Seus argumentos para chamar atenção da população para o tema se sustentavam principalmente no medo do futuro: quando a população envelhecer será preciso ter mais jovens para trabalhar e equilibrar financeiramente o Estado devido à aposentadoria

106Boverat não apenas trazia os dados populacionais dos últimos anos, como também fazia previsões para os

próximos: “1.022.000 naissances em 1876, 750.000 en 1930, 612.000 en 1938; diminution de plus de 400.000 en outre, réduction de plus en plus rapide : 138.000 de moins en 8 ans. Voilà la dénatalité d’hier. Celle de demain sera pire encore […]: 5000.000 naissances en 1945, 400.000 en 1955, 300.000 en 1963… Nouvelle réduction de moitié en 30 ans”. (BOVERAT, 1939, p. 3).

paga aos idosos; por outro lado, o perigo real do decrescimento populacional era, segundo Boverat, que se somente a França vive um desequilíbrio demográfico – como era o caso –, ela estaria enfraquecida numa situação de guerra, por conta da falta de soldados. Nesta época, casais sem filhos, esposas que trabalhavam fora de casa, pessoas solteiras e, sobretudo, mulheres que praticavam aborto, eram vistos como problemas sociais porque descumpriam seu dever para com a pátria107. Lelius incorpora e representa de maneira

suficiente o discurso governamental que todo francês experimentou no imediato pré-guerra. O apelo ético do patriotismo e o julgamento moral em nome da família se tornarão os jargões da República de Vichy durante a Ocupação alemã.

Ambos, Bariona e Sarah, veem a criança como uma esperança, porém, o sentido de esperança não é o mesmo para os dois. A esperança é, para Bariona, a maior loucura e deve ser evitada, pois viver é sofrer e fazer sofrer os próximos; não há esperança. Isso significa que no caso em que todas as escolhas serão desastrosas, não há mais esperança, não há nada a fazer, nada a esperar. Em vez de se revoltar e lutar contra Roma, Bariona prefere apagar a esperança, aniquilando a existência do seu povo porque acredita que qualquer decisão diferente já é, de antemão, destinada ao fracasso. Coorebyter (2005, p. 26) interpreta a decisão de Bariona como uma fuga do mundo: “Bariona ne propose pas d'assumer la situation mais de s'y soustraire ; il ne s'agit pas de transformer le monde mais de le quitter”. Recusar a esperança não é uma posição que se acorda à filosofia que Sartre desenvolve paralelamente à peça; afinal, como se sabe, o existencialismo é um humanismo, ou se preferirmos, um otimismo108.

A grande questão da peça se encontra, com efeito, no dilema acerca do filho de Sarah e Bariona e não do menino Jesus, pois, como vimos acima, a esperança está nas mãos dos homens e não nas de Deus. A esta altura, a peça já está bem avançada e o Cristo ainda não apareceu. Quando o anjo finalmente traz as boas-novas, já passamos da metade da trama: “Allez à Bethsur et criez partout: le Messie est né. Il est né dans une étable, à Bethléem. […] Descendez en foule dans la ville de David pour adorer le Christ, votre

107Este tema reaparecerá em Les mouches e, sobretudo, em Huis clos.

108“Vous voyez qu’il [o existencialismo] ne peut pas être considéré comme une philosophie du quiétisme,

puisqu’il définit l’homme par l’action ; ni comme une description pessimiste de l’homme : il n’y a pas de doctrine plus optimiste […]” (EH, p. 56).

Sauveur. Et vous le reconnaîtrez à ceci que vous trouverez un petit enfant emmailloté et couché dans une crèche” (Bar, p. 1144).

Bariona não crê em nenhuma palavra sobre o Cristo, a salvação, os milagres ou o messias; Sarah e os outros descem a montanha em direção a Belém enquanto Bariona continua a maldizer a esperança: “contemplez votre malheur en face, car la dignité de l’homme est dans son désespoir” (Bar, p. 1152). Vemos que, neste momento crucial da peça, mas também da situação história de Sartre e dos prisioneiros, o tema da esperança é