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A revolta e a violência como ato autêntico

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 128-135)

1.3 Les mouches: liber(t)ação e autenticidade

1.3.3 A revolta e a violência como ato autêntico

Electra e Orestes ouvem, escondidos, toda a conversa entre Júpiter e Egisto. Quando o deus sai, os irmãos entram. Orestes está pronto para cometer o seu ato, assumi-lo e viver com ele. Egisto não se opõe, não luta, não oferece resistência à morte, mas tem uma última dúvida, quer saber se será mesmo possível que Orestes não se arrependerá. Como fiel súdito, Egisto crê que justo é aquilo que deseja Júpiter, portanto, como será possível Orestes não seguir a vontade e a ordem do deus e mesmo assim não sentir remorsos? Com a espada

cravada em Egisto, Orestes satisfaz o último desejo de um moribundo reafirmando a clareza e a consciência dos motivos do seu ato: “Que m'importe Jupiter? La justice est une affaire d'hommes, et je n'ai pas besoin d'un Dieu pour me l'enseigner. Il est juste de t'écraser, immonde coquin, et de ruiner ton empire sur les gens d'Argos, il est juste de leur rendre le sentiment de leur dignité” (M, p. 205).

De posse da sua liberdade, do seu projeto de encontrar-se a si mesmo, de estabelecer laços de pertencimento e identidade com um povo, libertando esse povo da dominação e da opressão, Orestes completa seu ato: mata a mãe e assassina de seu pai, Climnestra, junto com seu amante e também assassino de seu pai, Egisto. O crime de Orestes fora seu primeiro ato comprometido e engajado. O primeiro ato que lhe veio por si, que tem história e trajetória. O primeiro ato cometido por uma liberdade engajada em uma situação concreta. O ato de Orestes é o ato autêntico de Orestes; seu autor não tem remorso, culpa ou comiseração por tê-lo feito, não se arrepende e está pronto para assumir as consequências.

A morte de Egisto e Climnestra é o renascimento de Argos, de Orestes e de Electra, é também a conversão de Orestes que passou de um projeto de liberdade abstrata, metafísica, desengajada para um projeto de liberdade situada: “Nous sommes libres, Electre. Il me semble que je t'ai fait naître et que je viens de naître avec toi; je t'aime et tu m'appartiens. Hier encore j'étais seul et aujourd’hui tu m'appartiens. Le sang nous unit doublement, car nous sommes de même sang et nous avons versé le sang” (M, p. 209). Orestes está satisfeito com seu ato e se sente completamente livre:

Oreste : Je suis libre, Électre ; la liberté a fondu sur moi comme la foudre. Electre : Libre ? Moi, je ne me sens pas libre. Peux-tu faire que tout ceci n'ait pas été ? Quelque chose est arrivée que nous ne sommes plus libres de défaire. Peux-tu empêcher que nous soyons pour toujours les assassins de notre mère?

Oreste : Crois-tu que je voudrais l'empêcher ? J'ai fait mon acte, Electre, et cet acte était bon. Je le porterai sur mes épaules comme un passeur d'eau porte les voyageurs, je le ferai passer sur l'autre rive et j'en rendrai compte. Et plus il sera lourd à porter, plus je me réjouirai, car ma liberté, c’est lui. Hier encore, je marchais au hasard sur la terre, et des milliers de chemins fuyaient sous mes pas, car ils appartenaient à d'autres. Je les ai tous empruntés, […] mais aucun n'était à moi. (M, p. 210).

Electra havia sonhado a vida toda com a vingança de seu pai, com o dia em que seu irmão Orestes responderia ao apelo do destino e retornasse a Argos para matar os assassinos de Agamenon, libertando, assim, Argos do suplício do arrependimento e luto que acometeu a cidade. Agora que esse dia havia chegado, o crime já havia sido cometido e não havia mais volta, Electra descobre que não era por justiça ou liberdade que ela ansiava a vinda do irmão, mas por vingança e ódio. Electra está arrependida, seus motivos a envergonham, a assustam e, acovardada, refugia-se na má-fé. Electra renega Orestes e o crime. Desesperada e arrependida, Electra é um convite às Erínias, que se aproximam lentamente; Electra se prostra diante de Júpiter, lhe jura lealdade e pede que a defenda de si própria:

Au secours ! Jupiter, roi des Dieux et des hommes, mon roi, prends-moi dans tes bras, emporte-moi, protège-moi. Je suivrai ta loi, je serai ton esclave et ta chose, j'embrasserai tes pieds et tes genoux. Défends-moi contre les mouches, contre mon frère, contre moi-même, ne me laisse pas seule, je consacrerai la vie entière à l'expiation. Je me repens, Jupiter, je me repens. (LM, p. 241).

Electra prefere esconder-se na má-fé a ter que lidar consigo própria e com a consciência de seus atos. A principal diferença entre Electra e Orestes é que o jovem agiu por justiça, enquanto a irmã, por vingança. Consequentemente, Electra não consegue viver com a culpa e com o remorso, ao passo que Orestes está renascido.

Orestes é aquele que retorna a Argos não para vingar seu pai, como na história antiga, mas para encontrar seu solo, libertar a si e aos seus. Se, na Antiguidade, o mito privilegia a noção de destino, com a ideia de maldição dos Átridas, e de submissão à religião. À revelia dos deuses e dos reis, ele descobre e evoca a sua condição livre, o que o leva ao engajamento na situação em que se encontra e a assunção total da responsabilidade e das consequências dos seus atos. No final da peça, por exemplo, o Orestes de Sartre opta pela companhia das moscas diferentemente do Orestes grego que foge alucinado perseguido por elas. O Orestes de Sartre realiza uma conversão e alcança a autenticidade que não existia no começo da peça. Se compararmos seu discurso inicial, fruto de uma educação geral, abstrata, atemporal, a-histórica e hedonista, ao discurso final pode-se perceber a diferença de posicionamento. Antes, Orestes se via como um forasteiro no mundo, agora seu ser-em- situação se dirige na forma de autocompreender-se.

Segundo Noudelmann (1993, p. 26), “Le héros vengeur n’est donc pas un sauveur”. De fato, Orestes não é um salvador, mas o que ele faz dá condições para os habitantes de Argos reconstruírem suas vidas por si próprios ao eliminar aqueles que eram as correntes impeditivas da liberdade. O título de herói vingador que Noudelmann atribui a Orestes é, entretanto, duvidoso. O Orestes de Sartre não é um vingador, ele não age por vingança, como o da tradição, mas por justiça. Para Noudelmann, Sartre apresenta Orestes como o herói romântico e solitário e reconhece que, ao fazer isso, trai sua própria concepção de teatro da realidade bruta da existência202. Por outro lado, mesmo que não seja a intenção

primordial de Sartre, o personagem central de Les mouches pode ser entendido como herói em um sentido muito peculiar: o ato de Orestes é vivo de liberdade individual e parece atender a um apelo da coletividade. Orestes mata os assassinos de seu pai quando percebe a falta que fez durante toda a sua vida o sentimento de pertencimento, de engajamento em uma situação concreta, falta que poderia ser diminuída caso Orestes libertasse o povo de Argos, pois esse povo era o seu povo. Rompendo as origens da opressão religiosa e política, o ato de Orestes é um ato singular e, sobretudo, o início de uma libertação que recai sobre todos os cidadãos de Argos. Liderando e liberando-se, Orestes mostra aos habitantes de Argos que não é necessário entregarem sua liberdade a líderes, chefes ou reis. Revisitando a tragédia de Orestes e Electra, Sartre pretende recontar o mito pelo viés da tragédia da liberdade em oposição à tragédia da fatalidade, o que significa dizer que na peça sartriana, é a própria liberdade de Orestes que o conduzirá ao seu ato crucial e não o seu destino. Orestes é condenado à liberdade e não à fatalidade.

Para Noudelmann, o ato de Orestes não é um modelo de engajamento ou de conversão, pois ele deixa a cidade sem ocupar o lugar de líder político203. Isso significa que

em Les mouches falta uma problemática do indivíduo e do poder coletivo, o que levaria a heroização do personagem de Orestes204.

202“La représentation d’Oreste en héros romantique, maudit et solitaire, trahit les intentions de Sartre, car elle

est incompatible avec la présentation brute de l’existence, dépouillée de ses artifices littéraires” (NOUDELMANN, 1993, p. 47).

203“Il [Oreste] n’est pas un modèle, et il laisse la cité vide : Oreste ne remplit pas l’espace et n’installe aucun

nouveau pouvoir” (NOUDELMANN, 1993, p. 47).

204“Faute d’une problématique de l’individu et du pouvoir collectif, la présentation de l’acte encourt le risque de

Pela ocasião da estreia de Les mouches em Berlim205, Sartre é convidado a

participar de uma discussão no Hebbel-Theater206, na qual precisa o sentido originário da

peça:

Il ne s’agit pas de savoir pour quoi nous sommes libres, mais quels sont les chemins de la liberté. Et là nous sommes en plein accord avec Hegel qui affirmait : Personne, nul homme ne peut être libre, si tous les hommes ne sont pas libres. […] Notre but concret, un but très actuel, contemporain, c’est la libération de l’homme et elle a trois aspects. D’abord la libération métaphysique de l’homme. Lui rendre la conscience de sa liberté totale et qu’il doit combattre tout ce qui tend à limiter la liberté. Deuxièmement, sa libération artistique : faciliter à l’homme libre la communication avec les autres hommes grâce aux œuvres d’art et par ce moyen les plonger dans une même atmosphère de liberté. Troisièmement : libération politique et sociale, libération des opprimés et des autres hommes. (LES, p. 189-190)207.

A carga de salvação da peça é forçosamente presente no personagem e no ato de Orestes, mas ainda assim, enquanto Sartre dirige-se gradativamente às ideias de grupo em fusão da Critique de la raison dialectique, Orestes descobre a importância da vivência em grupo por meio da noção de pertencimento. Nesse momento, a descoberta e a vivência da liberdade-em-situação é fundamental para o pensamento sartriano e para o momento histórico em que a peça é escrita e encenada. A principal máxima provavelmente seja ir em direção à liberdade, justamente porque a liberdade é aquilo a que se quer retornar, reconquistar, seja na peça, seja na vida fora da peça.

Orestes crê libertar seu povo com seu crime, pensa que se são seus homens, é sua obrigação libertá-los. A primeira forma de libertação será abrir seus olhos: “Oreste: Les hommes d’Argos sont mes hommes. Il faut que je leur ouvre les yeux” (M, p. 65), exatamente a mesma expressão usada por Sartre na entrevista a Bernard Dort, em 1979, em que o filósofo diz que a função do teatro é a de abrir os olhos:

Plus profondément, ces conseils sont, aussi, autant d’incitations : quand une pièce a un sens politique ou moral, elle ne fait pas agir, mais elle réveille

205Em 1 de fevereiro de 1948, cf. LES, p. 189.

206Participaram do debate M. Lusset, G. Weisenborn, M. Theunissen, E. Roditi, W. Karsch, W. D. Zimmermann,

P. Steinhoff e o diretor de As moscas Jürgen Fehling. Segundo Contat e Rybakla, além das intenções originais de Sartre ao escrever a peça, Sartre discute se As moscas se aplica tão bem à Alemanha de 1948 quanto à França de 1943, aborda também temas gerais como ateísmo, liberdade e libertação do homem. Cf. LES, p. 189.

les gens qui n’ont que trop tendance à dormir. Elle leur met sous les yeux quelque chose d’insupportable. (DORT, 1990, p. 887).

Com Les mouches, Sartre subverte os valores religiosos da figura de Júpiter, os dogmas políticos com a figura de Egisto e Climnestra e, em especial, dinamita os fundamentos da moral no sentido de que sua crítica denuncia os interesses escusos que a sustentam. Ainda segundo Noudelmann, Sartre subverte as noções de Bem e Mal absolutos, colocando-os como valores relativos aos interesses de quem está no poder: “Le Bien n’est plus le bien commun, une loi au-dessus des individus, à laquelle chacun doit se soumettre, mais un bien particulier, une valeur relative au service d’un pouvoir” (1993, p. 24). A constatação de Orestes não é metafísica no sentido de que põe em dúvida o fundamento do conceito de Bem absoluto, é uma descoberta empírica: ele descobre que a ideia de bem praticada em Argos é derivada do interesse daqueles que ocupam o poder, por isso o bem é o bem deles e não o bem em si mesmo. Como resultado, Orestes não reconhece mais nenhuma autoridade ou obrigação, o sinal que ele pede a Zeus não tem validade nenhuma. Para Noudelmann, o ato de Oreste não se encontra nem no lado do Bem nem do Mal, mas além do bem e do mal208. A autenticidade alcançada por Orestes consiste em fundar sua escolha

sobre a afirmação da liberdade. A trajetória de Orestes remonta à mesma dinâmica dos mitos trágicos, a diferença é que Sartre transforma a descoberta do destino em revelação da liberdade. Tudo fica claro para Orestes quando ele atravessa o véu da ignorância e descobre a verdade de uma existência absurda, gratuita e contingente.

Na Contemporaneidade Sartre tem a ambição de que sua peça desvele a condição humana e favoreça a tomada de consciência e a assunção da liberdade contra a ideia de determinismo e má-fé, mas especialmente, que abra os olhos da população francesa sobre a Ocupação alemã e a propaganda alienadora de Marechal Pétain. O filósofo associa liberdade à justiça. O ato de Orestes foi um ato justo de acordo com a justiça dos homens, um ato que visava ao mesmo tempo a liberdade individual e a libertação do povo de Argos. Assim como aqueles que se organizavam em grupos e cometiam atos extremos contra os alemães e os colaboracionistas, resistiam à dominação e à ideologia do medo e do arrependimento

208“L’acte d’Oreste sera au-delà du bien et du mal, sans excuse ni légitimité a priori” (NOUDELMANN, 1993,

promulgados pelo governo de Vichy e lutando contra a Ocupação em Paris pelo regime nazista, faziam da violência um ato de liberdade e libertação.

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 128-135)