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A infância de um chefe: má-fé e antissemitismo

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 108-114)

1.2 Cinco tentativas de fuga

1.2.6 A infância de um chefe: má-fé e antissemitismo

O conto L’enfance d’un chef179 narra a história de Lucien Fleurier e seu esforço

singular para construir sua personalidade, para ser reconhecido pelos outros conforme a imagem criada de si de maneira a se ajustar fixamente com ela. A narrativa do conto segue a via cronológica do ponto de vista de Lucien, o que permite, do ponto de vista do estilo, que o leitor identifique-se com o protagonista e o acompanhe até o grande final quando ele realiza a sua escolha de vida180.

Lucien nasce em uma família de industriais, burguesa e tradicional, recebe educação clássica e elitista. Tudo é planejado para que ele suceda seu pai como chefe de usina. A história inicia com o começo da sua vida consciente: a infância, esse momento em que o mundo e a vida têm um sentido dado pelos adultos. O mundo da criança é pré-dotado de significação: amar a mãe, servir a Deus, brincar no jardim, estudar na escola, rezar na igreja, não falar com estranhos, não sair de casa, etc. Lucien é uma criança obediente e bem- educada: ele gosta de agradar os adultos, sabe o que dizer e como agir para encantá-los. Lucien tem uma infância feliz e tranquila.

Mas, quando pela primeira vez, as convicções do pequeno Lucien são confrontadas, o mundo infantil que fazia sentido, desmorona. Interrogado por um padre se ele amava mais sua mãe ou Deus, Lucien fica confuso, pois não sabe qual a resposta correta. Nesse momento, Lucien se dá conta que não há verdade absoluta e todas as fronteiras desse mundo leve e sereno que é a infância, se rompem. O garoto perde para sempre sua inocência e cai em um estado de sonolência e torpor. A ruína desse mundo despreocupado e pleno marca o princípio da angústia diante do nada do futuro. Além da descoberta da ausência de

178Uma versão inicial desse texto foi apresentada no evento Journée interdisciplinaire: Foi, Confiance, Crédit,

na Université Paris VIII, em 2015. Na ocasião, a comunicação foi intitulada Foi, confiance et crédit comme

figures de mauvaise foi dans la littérature de Sartre. Agradeço aos participantes do evento pelo debate, em

especial ao Prof. François Noudelmann.

179L’enfance d’un chef deveria ter tido uma espécie de continuação cinematográfica. Em colaboração com

Jacques-Laurent Bost, Sartre escreveu o roteiro Les mauvais chemins, depois de ter firmado contrato com a produtora de filmes Pathé. Até onde pude pesquisar, o roteiro encontra-se perdido. Desse contrato com a Pathé Films, apenas Les jeux sont faits foi produzido. No ano de 2000, o professor de Filosofia e filho do diretor da Pathé, Daniel Accursi, encontrou uma cópia do até então inédito Résistance, publicado então pela Les temps

modernes.

180Interessante observar que o recurso de fazer o leitor identificar-se ao protagonista é usado também em Les

séquestrés d’Altona, curiosamente o outro grande antissemita, filho de um rico industrial, criado para ser o

valores e de verdades absolutos, Lucien descobre a liberdade e, com ela, o peso da responsabilidade. A questão “Que suis-je ?” passa a persegui-lo e a angustiá-lo. Lucien quer, então, tornar-se alguma coisa para interromper esse doloroso estado de angústia e a história narra, daqui por diante, a procura de Lucien por ser, por poder responder objetivamente a inquietante e perturbadora questão Que suis-je?.

Na escola, o adolescente Lucien conhece Berliac, os dois se interessam por psicologia. O complexo de Édipo é, então, a etiqueta que melhor cola na definição de quem é Lucien segundo Berliac; ainda que, no fundo, Lucien saiba que não deseja sua mãe, ele se esforça para encaixar-se na definição freudiana. Berliac apresenta Lucien a Bergère, homem mais velho, melhor conhecedor de psicologia e depois de alguns encontros e conversas, Bergère designa um novo nome ao estado de Lucien: ele está em désarroi. A qualificação parece correta, Lucien se convence. Ele sente que ninguém o compreende, o que faz com que não se sinta à vontade sobre nada, que não encontre seu lugar no mundo, portanto, Lucien acredita que está em estado de confusão, é visto por todos como tal e se esforça para corresponder ao novo título.

Lucien, Berliac e Bergère rompem a amizade e Lucien se desfaz da sua etiqueta. As questões fundamentais sobre o sentido da existência, sua razão de ser e sua identidade, voltam; e com elas a angústia. Vive, então, novamente a experiência do vazio e uma espécie de náusea e desespero o afetam. Sozinho e quase sem amigos, se refugia na tradição familiar e na preocupação com a sua sanidade mental, esses são os preceitos sob os quais o jovem se apoia por um tempo. Lucien aceita seu futuro como chefe de indústria e procura viver segundo os preceitos dos pais para se tornar um respeitoso líder. Decide não pensar em demasia nesse tipo de coisa porque planeja se suicidar no final das férias, mas não o faz.

De volta às aulas, o jovem Lucien faz novos amigos e procura se liberar do seu passado181. Ele conhece Lemordant, que parece ser duro182 como uma pedra e sempre certo

de si. É justamente esse tipo de força moral que Lucien procura para acalmar sua incompletude. No novo círculo de amigos, Lucien é chamado pelo seu sobrenome, como um homem, um adulto, uma pessoa a ser tratada seriamente. Sob influência de Lemordant, lê

181Lucien e Bergère viveram um relacionamento afetivo e sexual. Certa homossexualidade latente, mas

reprimida, também é insinuada no protagonista de Les séquestrés d’Altona, Frantz Von Gerlach.

Les déracinés, de Maurice Barrès183 e encontra lá sua nova justificativa: “C’est pourtant vrai,

se dit-il, je suis un déraciné” (Mu, p. 229). Por outro lado, ser um déraciné não convém a um chefe de indústria.

Lemordant e seus amigos são engajados em política, eles desejam um país limpo (propre), uma França para os franceses. O slogan antissemita assusta Lucien no início, mas logo se forma uma ideia geral de que Lucien é um tipo que tem horror de judeus (Mu, p. 231) e essa ideia se propaga rapidamente. Eis, então, o caráter e o destino ofertados a Lucien, um caminho para escapar das intermináveis discussões internas da sua consciência, um método para se definir e ser apreciado. A metamorfose de Lucien é completa e ele se torna alguma coisa digna de um dur e de um chefe: Lucien é um antissemita.

A etiqueta é definitivamente colada em um episódio de festa em que Lucien vira as costas a um judeu e vai embora. Inicialmente Lucien se incomoda pela possibilidade de ser mal compreendido pelos anfitriões, amigos antigos dos tempos que Lucien ainda não era antissemita. No dia seguinte, entretanto, seu amigo se desculpa por ter cometido a gafe de querer apresentá-lo a um judeu, e acrescenta que mesmo seus pais concordaram; eles “[…] ‘disent que tu as eu raison, que tu ne pouvais agir autrement du moment que tu as une conviction’. Lucien dégusta le mot de ‘conviction’ […]” (Mu, p. 239). Lucien estava novamente justificado no olhar do outro e isso concluía sua transformação. Orgulhoso de si mesmo, o jovem se sente legitimado definitivamente por suas convicções que faziam valer seus direitos : “[…] dans ce café, une heure plus tôt, un adolescent gracieux et incertain était entré ; c’était un homme qui en sortait, un chef parmi les Français” (Mu, p. 244-245).

L’enfance d’un chef é uma história que narra o processo de constituição do homem desde a descoberta da sua existência como ser-no-mundo, passando pela angústia e o vacilo da consciência. Sartre desenha a trajetória do personagem principal, Lucien Fleurier, colocando o leitor em contato direto com as situações que fazem parte da saga de uma consciência no mundo e da constituição de si em relação com o outro. No início, Lucien criança desconhece a própria liberdade, suas ações são de forma irrefletida e desengajada, pois a criança vive em um mundo cujo sentido é dado pelos adultos; ele não sabe que é livre e que suas ações têm origem nele mesmo. Quando os primeiros traços de oscilação fazem

183Maurice Barrès (1862-1923), político, escritor e figura destaque do nacionalismo francês, declaradamente

rachar as paredes da instabilidade do mundo infantil, Lucien descobre que os valores não têm sua fonte nem em Deus, nem em lugar algum e que o homem é completamente livre. Nem sua origem, nem seu passado determinam o presente ou o futuro e tudo depende do que ele mesmo fizer. Lucien aprende, nesse momento, que ele deve escolher a si mesmo e isso o angustia.

Segundo L’être et le néant, é na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade. Neste momento privilegiado em que Lucien torna-se questão para si mesmo e aprende que é o único responsável do que é e do que será, a angústia diante do nada que é o futuro, o aterroriza184. A angústia assombra Lucien durante toda sua vida. Quando Lucien é

afetado pela angústia, descobre duas maneiras de escapar. A primeira trata-se de anular sua existência, seja pela sonolência e inércia, seja pela ideia que o mundo não existe, seja pela vontade de se matar. Lucien sai deste estado de anéantissement e negação da realidade quando passa à segunda tentativa de escapar: tornar-se coisa, conformar-se e corresponder à imagem que os outros fazem de si, identificar-se às etiquetas que recebe dos pais, da religião, dos amigos, das instituições, de ideologias.

A inquietude que Lucien não quer reconhecer e olhar em face é a sua própria liberdade. É preciso notar que a liberdade é encarregada de renovar perpetuamente as escolhas que suportam o Moi manifestado para os outros185. Isso significa que para justificar-

se não é suficiente aceitar ser um déraciné ou um chefe, é preciso, sobretudo, sustentar esses projetos renovando-os constantemente. No projeto de má-fé a angústia, que não pode ser nem evitada, nem mascarada, pode ser compreendida de forma diferente: “[…] mais je puis me décentrer par rapport à ce que je suis […]. Il s’agit donc que je puis me rendre de mauvaise foi dans l’appréhension de l’angoisse que je suis et cette mauvaise foi, destinée à combler le néant que je suis dans mon rapport à moi-même, implique précisément ce néant qu’elle supprime” (EN, 79). No fundo, Lucien entra em contato com o nada da sua existência por via da angústia, mas para escapar da angústia, a consciência consegue preencher este

184Mais uma vez os dontos de Le mur antecipam as reflexões de L’être et le néant: “C'est précisément la

conscience d'être son propre avenir sur le mode du n'être-pas que nous nommerons l'angoisse” (EN, p. 66).

185É o que também Sartre descreverá, poucos anos mais tarde, em L’être et le néant: “Ce qu'il convient de noter

ici, c'est que la liberté qui se manifeste par l'angoisse se caractérise par une obligation perpétuellement renouvelée de refaire le Moi qui désigne l'être libre. Lorsqu'en effet nous montrions, tout à l'heure, que mes possibles étaient angoissants parce qu'il dépendait de moi seul de les soutenir dans leur existence, cela ne voulait pas dire qu'ils dérivaient d'un moi qui, lui au moins, serait donné d'abord et passerait, dans le flux temporel, d'une conscience à une autre conscience”. (EN, pp. 69-70).

nada persuadindo a si mesma que ela é o que ela crê ser: é o que Sartre nomeiará como má- fé, em L’être et le néant.

É o que se vê quando, enfim, consciência e mundo se sintonizam em direção à resolução do caráter de Lucien. Sua metamorfose é completa quando o jovem encontra a justificativa de sua existência em um atributo ao qual ele pode identificar-se e que é reconhecido pelos outros: o líder de um grupo antissemita. Na verdade, Lucien renunciou à sua liberdade para fazer coincidir seu ser com o seu papel social, ele desejou e terminou por conseguir chegar ao lugar pré-determinado à sua classe social. Quer dizer que, no limite, Lucien Fleurier recusou sua liberdade para assumir seu ser de classe, seu direito divino, conceito que Sartre desenvolverá, alguns anos mais tarde, em Materialisme et révolution:

Tout membre de la classe dominante est homme de droit divin. Né dans un milieu de chefs, il est persuadé dès son enfance qu'il est né pour commander et, en un certain sens, cela est vrai puisque ses parents, - qui commandent ; l'ont engendré pour qu'il prenne leur suite. Il y a une certaine fonction sociale qui l’attend dans l'avenir, dans laquelle il se coulera dès qu'il en aura l'âge et qui est comme la réalité métaphysique de son individu. (Sit III, p. 184, grifo meu).

L’enfance d’un chef é um texto carregado de crítica às ideologias e pensamentos em voga no momento da criação: como a psicanálise freudiana, a moral burguesa, o nacionalismo, o fanatismo religioso e o antissemitismo. Apesar de sua origem e formação burguesas, Lucien passa toda a vida procurando o que ele é, quem ele é, pois nada do que havia ouvido sobre si até então, parecia suficiente para justificar a própria existência. Lucien procurou por respostas em variados campos: na religião, na psicanálise, na filosofia, na literatura, na sua classe social, mas nunca verdadeiramente em si mesmo.

O conto é o primeiro texto em que Sartre identifica o antissemitismo à má-fé. É um exemplo interessante de estilo de escrita, especialmente da ironia186: Lucien parece muito

próximo de alcançar a autenticidade, mas desvia. Ele dá os primeiros passos nessa direção desde o início: na infância, se deu conta da impossibilidade de um projeto definido e imutável e da ausência de valores absolutos; na juventude, reconheceu a fragilidade e o desamparo, descobriu que nada garantia a existência de Deus, compreendeu que a relação

186Le mur e Erostrato também são contos brilhantes em termos do uso estilístico da ironia. Sobre o tema da

com o outro é conflito e que o olhar do outro é massacrante porque é pelo olhar que o outro forma uma imagem que pode não corresponder àquela que ele tem de si mesmo e, além disso, que essa imagem é impossível de ser conhecida plenamente. A angústia que invade Lucien ao perguntar, pela primeira vez, Qui suis-je?, é aliviada pelo refúgio na má-fé com aquilo que Sartre nomeará em L’être et le néant, o espírito de seriedade:

L'angoisse est donc la saisie réflexive de la liberté par elle-même, en ce sens elle est médiation car, quoique conscience immédiate d'elle-même, elle surgit de la négation des appels du monde, elle apparaît dès que je me dégage du monde où je m'étais engagé, pour m'appréhender moi-même […]; elle s'oppose à l'esprit de sérieux qui saisit les valeurs à partir du monde et qui réside dans la substantification rassurante et chosiste des valeurs. Dans le sérieux je me définis à partir de l'objet, en laissant de côté

a priori comme impossibles toutes les entreprises que je ne suis pas en train

d'entreprendre et en saisissant comme venant du monde et constitutif de mes obligations et de mon être le sens que ma liberté a donné au monde. (EN, pp. 73-74).

O que é extremamente decepcionante para os leitores do conto, é que a angústia de não encontrar uma resposta definitiva à questão Quem sou eu? conduz Lucien à má-fé e ao antissemitismo e não à autenticidade. Lucien se tornou uma réplica de si, uma caricatura forjada de si mesmo ao assumir a função de líder de um grupo fascista, em resumo um chefe, à qual estava destinado desde o início do livro: Lucien retornou ao seu ponto de partida. Em vez de percorrer seu próprio caminho de descoberta e de inventar a si mesmo, Lucien preferiu abraçar uma vida já prevista e traçada por outros. Antes da escolha derradeira, Lucien viveu toda sua vida, ao mesmo tempo, imerso na angustiante dúvida sobre o que fazer de si e entregue aos impulsos de confiança esperando a imagem retornada que os outros tinham de si.

A cada etapa da vida de Lucien, esses Outros eram atualizados e com eles a imagem devolvida de si a Lucien, o que fazia o protagonista cada vez esforçar-se e desdobrar-se para corresponder à etiqueta, à imagem que faziam de si: os adultos, a religião, os amigos, a psicologia e, por fim, a ideia de superioridade antissemita. Neste conto, fé, crédito e confiança são as figuras da má-fé e da inautenticidade às quais Lucien se abandona nas crenças em tudo e em todos, salvo em si mesmo.

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 108-114)