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As relações com o Outro

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 143-150)

1.4 Huis clos: entre o conflito e a ajuda

1.4.3 As relações com o Outro

Segundo Sartre, no âmbito das relações concretas com o outro, há dois tipos de conduta: no primeiro tipo, transcende-se a transcendência do outro; no segundo, incorpora-se a transcendência do outro sem privá-la de seu caráter transcendente234. Isso significa que não

há dialética nas relações com o outro, mas a relação com o outro é sempre um círculo vicioso: o fracasso do primeiro grupo, leva à adoção do segundo. A atitude que não está em jogo permanece enquanto contradição, ou seja, uma está presente na outra e engendra a morte daquela, o que denota a impossibilidade da ruptura dessa sucessão.

No primeiro grupo, o para-si tenta assimilar a liberdade do outro: “[...] en tant qu’autrui comme liberté est fondement de mon être-en-soi, je puis chercher à récupérer cette liberté et à m’en emparer, sans lui ôter son caractère de liberté” (EN, p. 403). Fazem parte

deste grupo: o amor, a linguagem e o masoquismo235. No caso do fracasso das atitudes do

primeiro tipo, são adotadas as do segundo, em que a intenção é apossar-se da subjetividade do outro no sentido de possuir o ser que detém a chave da minha objetividade a fim de torná- lo um objeto para mim. Fazem parte deste grupo: a indiferença, o desejo, o ódio e o sadismo. Atitudes compatíveis com as descrições dos dois grupos são percebidas nas relações concretas estabelecidas entre os três personagens de Entre quatro paredes.

O primeiro a chegar no inferno é Garcin, Inès vem logo em seguida, eles se apresentam, Garcin procura ser cordial. Naturalmente, ao chegarem no inferno os três personagens investigam uns aos outros sobre seus crimes. A primeira relação estabelecida entre os personagens é via linguagem. A linguagem traduz uma espécie de atitude em direção ao outro que procura assimilá-lo, ou seja, visa incorporar a transcendência do outro sem desapossá-lo da sua transcendência. É bem evidente para a consciência que esse outro que ela pretende absorver não é um outro-objeto, e sim um outro-que-olha, um outro-presente, um outro-sujeito. Inès, no entanto, não se interessa pela tentativa de relacionamento do seu companheiro de inferno e não hesita em demonstrar seu aborrecimento com a presença de Garcin.

A próxima tentativa de relação parte novamente de Garcin, agora em direção à recém-chegada Estelle. Diante do primeiro fracasso, Garcin espera que não haja mais confusões e propõe um silêncio mútuo, que todos sejam polidos e permaneçam quietos. Garcin adota a atitude da indiferença e constrói sua subjetividade sobre o esvaziamento das subjetividades alheias, isolando cada um em seu lugar, inerte na sua poltrona, proibidos de se olharem:

Garcin : Je ne serai pas votre bourreau. Je ne vous veux aucun mal et je n'ai rien à faire avec vous. Rien. C'est tout à fait simple. Alors voilà : chacun dans son coin ; c'est la parade. Vous ici, vous ici, moi là. Et du silence. Pas un mot : ce n'est pas difficile, n'est-ce pas ? Chacun de nous aassez à faire avec lui-même. Je crois que je pourrais rester dix mille ans sans parler. (HC, p. 42).

235O tema do masoquismo e do sadismo já haviam sido do interesse de Sartre: “Sartre fit également l’expérience

de la communication avec un auditoire peu préparé à l’écouter, celui de la baraque 55, celle des artistes. Grâce à la clarté et à la simplicité du discours, il put traiter devant les prisonniers des sujets assez ardus, tels que le masochisme, le sadisme. Il ne condamnait rien. Il exposait, sans plus. Il aborda avec la même rigueur le thème de l’homosexualité sans choquer les invertis de la baraque” (JOSEPH, 1991, p. 78-9).

Todos devem permanecer sentados em sua poltrona, sem contato com os demais. Cada um sente que existe para os outros dois, mas sem poder saber o que é para eles. A atitude de indiferença, pertencente ao segundo grupo, tem como finalidade tornar o outro um em-si, um objeto que age à distância. A atitude da indiferença é um tipo de negação do mundo como mitsein, uma cegueira voluntária, um exercício de aniquilação do mundo236.

Os três prometem seguir com a atitude de indiferença e não se olharem, contudo, só é possível certificar-se do cumprimento do pacto quebrando-o, ou seja, olhando para os companheiros. Atormentados, os personagens precisam ver os olhos daqueles que sabem o que eles são; por outro lado, ao mesmo tempo em que desejam olhar, o olhar se esvai, a imagem transmitida pelos olhos dos outros é uma imagem assustadora, pois ela carrega a imagem do crime e do pecado que eles querem esconder. Esse isolamento voluntário, essa cegueira espontânea da indiferença encontra fim na insistente conversa entre Inès e Estelle, da qual Garcin não consegue jazer alheio. A atitude da indiferença falha: é impossível viver um triângulo negando duas partes.

Inès sugere, então, que contem suas verdadeiras histórias. Garcin e Estelle mentem, os dois simulam desconhecer o motivo real de sua condenação. Estelle afirma que os motivos não lhe foram revelados, que ninguém a reprimiu ou a julgou, ela lamenta sua situação e reafirma que está lá por engano, que não fez outra coisa além de sacrificar sua juventude em troca da sobrevivência, o que certamente não deveria levá-la a uma pena tão severa quanto o inferno. Garcin admite que torturava a esposa levando amantes para casa; ele continua a intitular-se um herói e um homem das letras, um escritor pacifista que recusou participar da guerra por razões ideológicas, e que seu único crime fora maltratar a esposa. Estelle e Garcin firmam um acordo tácito em que aceitam passivamente a mentira um do outro, criando desculpas mútuas para suas permanências equivocadas no inferno. Esse acordo permitiria que repousassem tranquilamente no solo da má-fé e funcionaria muito bem se Inès não varresse com ironia e sarcasmo a farsa dos dois.

É importante observar que Inès é a única a não sentir falta de espelhos e ser bem consciente de seu crime. Para Inès, ela já nasceu condenada, crê que é má por essência, que nasceu má. Inès é sádica, confessa ter necessidade do sofrimento alheio para viver; da

236Cf. EN, p. 420. Cf. também a indiferença do personagem Bariona, peça homônima, e do personagem Lucien,

mesma forma, ela se revela masoquista quando diz que sofreria para agradar Estelle237. Inès

percebe a fraqueza de Garcin e saboreia seu sofrimento. O sadismo pertence ao segundo grupo das atitudes para com o outro, junto com a indiferença, o desejo e o ódio; o masoquismo, por sua vez, está no primeiro grupo, com o amor e a linguagem. A violência sádica procura apoderar-se da liberdade do outro, não para obliterá-la, mas para obrigar o outro a identificar-se livremente com a situação de tortura e desconforto. O masoquismo é bastante diferente: não procura apossar-se da liberdade alheia, mas entregar-se ao outro desfazendo-se da própria liberdade. Inès estabelece relações sádicas com Garcin e masoquistas com Estelle. Ambas fracassam quando Garcin e Estelle se negam a exercer o papel designado por Inès.

Estelle procura o amor em Garcin, mas não é correspondida. Sem sucesso, ela tenta provocar o desejo de Garcin e, igualmente, se frustra. Inès tenta o mesmo com Estelle e tem similar desfecho. O amor é um tipo de atitude que não exige a abolição da vontade do outro, mas a sua servidão escolhida livremente. O ódio também aparece como pano de fundo da relação entre Inès, Estelle e Garcin. Estelle repele as investidas de Inès e tenta seduzir Garcin; Inès, enciumada, se revolta e lança seu sarcasmo contra o pedantismo de Estelle e a pose de herói de Garcin. Estelle se enfurece e pega o corta-papel para matar Inès. O ódio é a tentativa absoluta de negar o outro, aquele que odeia não quer mais ser objeto, assim, ele não procura suprimir uma ou outra característica do outro, mas projeta um mundo onde o outro não exista. Para Sartre, o ódio representa a última forma de relação concreta com o outro, a tentativa do desespero (EN, p. 453). Estelle é, no momento em que tenta ferir Inès com o corta-papel, a encarnação do desespero e do ódio. No desenrolar da trama, os personagens se servem das atitudes de relação concreta com o outro e, como descrito em L’être et le néant, todas falham de modo notável. Invariavelmente, uma a uma, malogram, e a harmonia nunca é atingida.

Ao longo da trama, Sartre mostra como os personagens exercem a função de espelho infernal uns para os outros: refletem a verdadeira imagem do outro, apesar da recusa em aceitar a imagem devolvida. Garcin, por exemplo, é apegado a uma imagem idealizada

237“Eh bien, j'étais ce qu'ils appellent, là-bas, une femme damnée. Déjà damnée, n'est-ce pas. Alors, il n'y a pas

eu de grosse surprise”. Também : “Moi, je suis méchante : ça veut dire que j'ai besoin de la souffrance des autres pour exister”. E ainda : “Puisqu’il faut souffrir, autant qui ce soit pour toi” (Respectivamente, HC, pp. 55 ; 57 e 45-46).

de herói que fez de si, guarda consigo o princípio do heroísmo e procura acreditar que é um herói238, ele se crê um herói pacifista e até consegue convencer as pessoas ao seu redor do

seu heroísmo, incluindo a esposa, que servia na cama café da manhã para Garcin e sua amante como prêmio a um reconhecido herói. Na verdade, Garcin é um covarde e bem no fundo ele o sabe. No inferno, ele procura preservar essa imagem diante de suas companheiras de eternidade, defendendo que seu único crime fora maltratar sua esposa. Inès, por outro lado, não permitirá que a mentira dure:

Estelle : Ah ! il faut que tu aies fait un bien mauvais coup pour me réclamer ainsi ma confiance.

Garcin : Ils m’ont fusillé.

Estelle : Je sais : tu avais refusé de partir. Et puis ?

Garcin : Je ... Je n'avais pas tout à fait refusé. […] Je... J’ai pris le train. Ils m’ont pincé à la frontière.

[…]

Estelle : Que veux-tu que je te dise ? Tu as bien fait puisque tu ne voulais pas te battre. Ah ! mon chéri, je ne peux pas deviner ce qu’il faut te répondre.

Inès : Mon trésor, il faut lui dire qu’il s’est enfui comme un lion.

Garcin : Enfui, parti : appelez-le comme vous voulez. […] Estelle, est-ce que je suis un lâche ?

Estelle : Mais je n’en sais rien, mon amour, je ne suis pas dans ta peau. […] tu devais avoir des raisons pour agir comme tu l’as fait.

[…]

Inès : Ah ! voilà la question. Est-ce que ce sont les vraies raisons ? Tu raisonnais, tu ne voulais pas t’engager à la légère. Mais la peur, la haine et toutes les saletés qu’on cache, ce sont aussi des raisons. Allons, cherche, interroge-toi.

Garcin : Tais-toi ! […] Il me semble que j’ai passé une vie entière à m’interroger, et puis quoi, l’acte était là. Je… J’ai pris le train, voilà ce qui est sûr. Mais pourquoi ? Pourquoi ? A la fin j’ai pensé : c’est ma mort qui

décidera ; si je meurs proprement, j’aurai prouvé que je ne suis pas un lâche…

Inès : Et comment est-tu mort, Garcin ? Garcin : Mal. (Inès éclate de rire). [...]

Garcin [à Estelle] : Mais si tu voulais, si tu faisais un effort, nous pourrions peut-être nous aimer pour de bon ? Vois : ils sont mille à répéter que je suis un lâche. Mais qu’est-ce que c’est mille ? S’il y avait une âme, une seule, pour affirmer de toutes ses forces que je n’ai pas fui, que je ne peux pas avoir fui, que j’ai du courage, que je suis propre, je… je suis sûr que je serais sauvé ! Veux-tu croire en moi ? Tu me serais plus chère que moi- même. (HC, pp. 77-82).

É somente no embate com Inès que os verdadeiros motivos para a condenação de Garcin aparecem e ele próprio se dá conta, por fim, da sua covardia. Como um espelho, Inès reflete quem é Garcin e o que há por trás do seu discurso pacifista e heróico. Inès devolve o reflexo indesejado de Garcin e ele vai, a contragosto, ficar frente a frente com sua covardia. Inès reflete a essência239 de Garcin que ele não quer ver, ela funciona como um espelho infernal para Garcin.

O crime de Garcin não foi, todavia, nem a covardia, nem a deserção, nem os maus tratos à esposa. O verdadeiro crime de Garcin, em um sentido muito sartriano, foi trair a si mesmo. A condenação de Garcin deveu-se ao seu projeto de má-fé: ele sempre desejou ser um herói, se portava como um grande homem e procurava convencer a todos que era um herói. De fato, Garcin realmente quis ser um herói e viver o heroísmo, mas não conseguiu, não realizou autenticamente seu projeto de heroísmo. Garcin é um covarde, por isso se contentou com o autoengano e cometeu o grave pecado de trair a si mesmo:

Garcin : Écoute, chacun a son but, n'est-ce pas ? Moi, je me foutais de l'argent, de l'amour. Je voulais être un homme. Un dur. J'ai tout misé sur le même cheval. Est-ce que c'est possible qu'on soit un lâche quand on a choisi les chemins les plus dangereux ? Peut-on juger une vie sur un seul acte ?

239É possível falar em essência no caso de Garcin, Inès e Estelle porque a morte transformou suas vidas em

destino, como diz Sartre, citando Malraux, em L’être et le néant: “Ce qu'il y a de terrible dans la Mort, dit Malraux, c'est qu'elle transforme la vie en Destin” (EN, p. 147). A morte suprime a dimensão de para-si do para-si-para-outro, restando somente o para-outro: “Il faut entendre par là qu'elle réduit le pour-soi-pour-autrui à l'état de simple pour-autrui” (Idem); em outras palavras, os personagens de Huis clos são apenas para-outro e não têm mais a dimensão de para-si, quer dizer, a imagem de cada um está cristalizada no mundo dos vivos, não passam de coisas para os vivos, objetos essencializados.

Inès: Pourquoi pas ? Tu as rêvé trente ans que tu avais du cœur; et tu te passais mille petites faiblesses parce que tout est permis aux héros. Comme c'était commode ! Et puis, à l'heure du danger, on t'a mis au pied du mur et ... tu as pris le train pour Mexico.

Garcin : Je n'ai pas rêvé cet héroïsme. Je l'ai choisi. On est ce qu'on veut. Inès : Prouve-le. Prouve que ce n'était pas un rêve. Seuls les actes décident de ce qu'on a voulu. (HC, pp. 89-90).

Garcin pergunta se se pode julgar toda uma vida considerando apenas um ato. Garcin sonhou e projetou seu heroísmo, mas na hora que seu heroísmo teve que se mostrar em ato, ele se acovardou e fugiu. O projeto da vida de Garcin poderia ser muito bem o heroísmo, porém, somente os atos decidem, como respondeu Inès. Os atos de Garcin não foram heroicos, foram covardes, logo, a conclusão é que Garcin é um covarde. Ele não pôde aceitar, no entanto, a imagem de covarde derivada do ato que poderia tê-lo coroado herói, então, sua consciência assumiu um projeto de má-fé para escamotear a covardia, transformando-a em pacifismo. A má-fé de Garcin não recai sobre um ato, mas sobre toda a vida. O pacifismo de Garcin não é um projeto de heroísmo, é a efetivação do seu projeto de covarde; em outras palavras: a covardia de Garcin não se traduziu em um ato, mas em toda uma vida, o projeto de pacifista não era um projeto de herói, mas sua covardia se converteu em projeto de pacifista.

A conclusão de Garcin, l’enfer, c’est les autres (HC, p. 128) tornou-se uma máxima famosa, mas apesar do seu sucesso foi seguidamente mal compreendida240. O outro

é o espelho infernal que reflete a imagem disto que eu próprio sou, ainda que eu não queira me reconhecer nela. O outro é o inferno que aprisiona a liberdade do sujeito, pois ele conhece uma parte de mim que me é desconhecida. A constatação de que a existência do outro dispensa as grelhas, significa a consolidação da compreensão de que o outro é comprometido e engajado na minha existência. A verdadeira imagem que se pode ter de si é

240“J’ai voulu dire : l’enfer, c’est les autres. Mais ‘l’enfer, c’est les autres’ a été toujours mal compris. On a cru

que je voulais dire par là que nos rapportons avec les autres étaient toujours empoisonnés, que c’étaient toujours des rapports infernaux. Or, c’est tout autre chose que je veux dire. Je veux dire que si les rapports avec autrui sont tordus, viciés, alors l’autre ne peut être que l’enfer. Pourquoi ? Parce que les autres sont au fond ce qu’il y a de plus important en nous-même pour notre propre connaissance de nous-mêmes. […] Ce qui veut dire que, si mes rapports sont mauvais, je me mets dans la totale dépendance d’autrui. Et alors en effet je suis en enfer. Et il existe une quantité de gens dans le monde qui sont en enfer parce qu’ils dépendent trop du jugement d’autrui. Mais cela ne veut nullement dire qu’on ne puisse avoir d’autres rapports avec les autres. Ça marque simplement l’importance capitale de tous les autres pour chacun de nous” (Th. C, pp. 137-138).

conhecida pelo olhar do outro, pois o outro é o inferno que reflete quem sou, independentemente da escolha do que quero ser ou da imagem que quero que façam de mim, o outro me devolve como sou. O outro será sempre esse espelho infernal. O conflito, assinalado por Sartre como o sentido original do ser-para-outro241, seria, por outro lado,

realmente a única maneira de relação com o outro?

No documento Ontologia e moral na obra ficcional de Sartre (páginas 143-150)