• Nenhum resultado encontrado

Mana vol.6 número2

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Mana vol.6 número2"

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

O b oxe ofe re ce u m p rism a sin g u la r p or in te rm é d io d o q u a l é p ossíve l ch e -g ar a u m a com p re e ns ão d as p ossib ilida d e s estru tu ra d a s, pe rcep çõe s cultu ra is e tra je tória s in d ivid u a is n o in te rior d os b a irros p ob re s e d e ca d e n -te s d os Estad os Un id os. A su a n a tu re za com o a tivida d e e m q ue o corp o é ra d ica lm e n te in stru m e n ta liza d o, a s su a s lig a çõe s com a e con om ia in for -m a l d a s r ua s, o re c ru ta -m e n to socia l e e tn orr a cia l d e s e u s p ra tica n te s, a s m otiva çõe s e d isp os içõe s q u e re q u e r, fa ze m d o b oxe a p rototíp ica in sti-tuiçã o m asculin a d o g u e to. De fa to, a h istória m od e rn a d o p u g ilism o n os Esta d os Un id os é in sep a rá ve l d a q u e la d a s re la çõe s ra cia is e ta m b é m da s p e riód ica s re con fig ura çõe s d a fron te ira d e cor n a á re a u rb a n a d e sse p a ís (Sa m m on s 1988). O b oxe é tam bé m u m te rre n o p a rt i c u l a rm e n te p ro p í c i o p a ra d isse ca r a e xp e riê n cia vivid a e a con stru çã o sim b ólica d a e xp lora -çã o n a p a rte m a is b a ixa d a e stru tu ra d e cla sse e d e ca sta .

O p re se n te a rtig o b a se ia -se e m 35 m e se s d e tra b a lh o d e ca m p o e tn o-g rá fico e a p re n d iza o-g e m e m u m a a ca d e m ia d e b oxe situ a d a n o o-g u e to n e g ro d e C h ica g o, b u sca n d o e xp lica r com o os lu ta d ore s p rofission a is p e ce be m e e xp re ssa m o fa to b ru tal d e se re m m e rca d orias vivas fe ita s de ca r-n e e sa r-n g u e , e com o e le s s e re cor-n cilia m p ra t ica m e r-n te com a fe ro c i d a d e d a exp lora çã o d e u m a m a n e ira q u e lh e s p e rm ite p re s e rva r u m se n so d e in t e gr id a d e p e ssoa l e fin a lid a d e m or al. De sse m od o, p r ocu ra con t rib u ir sim u lta n e a m e n te p a ra a a n trop olog ia d as cu ltu ra s d a s cla sse s tra b a lh a -dora s e p a ra a e tn ossociolog ia d o corp o, d a econ om ia e da m ora lid a d e1.

Um a n oçã o q u e cost u m a se r u sa da p or críticos d o b oxe p ro f i s s i o n a l p ara exp lica r a p e rsistê ncia d e sse e sporte é a d e q ue os lu ta d ore s sã o in g ê -n u os, créd u los, e qu ivocad os ou m a l-i-n form a d os a re spe ito da ve rd a d e i r a n a t u re za d e su a ocu p a çã o — e m su m a , sim p le s m a rion e te s (ou b ob os*)

P U TAS, ESCRAV OS E GA RA N H ÕES:

LI N GUAGEN S DE EX PLO RA ÇÃO

E DE ACOM ODAÇÃO EN TRE

BOX EAD ORES PROFI SSI ON AI S*

Loïc Wa c q u a n t M a n a 6 (2):12 7 -1 4 6, 2 00 0

(2)

P U TA S, ESCRAV OS E G A RA N H Õ ES 1 2 8

n e sse “ sh ow b u sin e ss s a n g re n to” a o q u a l d e d ica m b on s pe d a ços d e sua s vid a s e d e se us corp os. N a ve rd a d e , p oré m , lon g e d e a ca le n ta r q u a isq u e r ilu sõe s, os b oxe a d ores p rofission a is sã o e xtre m a m e nte con scie n te s q ua n -t o a o fa -t o d e -te re m e n -tra d o e m u m u n ive rso d e e xp lora çã o d e se n fre a d a e m q u e a m e n tira , a ma n ip u la çã o, o ocu lta m e n to d os fa tos e os ma u stra -t os sã o a re g ra , e e m qu e os d a n os a o corp o e o d e sm a n-t e lo d a vid a p e s-soal sã o con se q ü ê n cias n orm a is d o ofício. Um d os m e m bros d a a ca d em ia d e b oxe n o Sou th Sid e d e C h ica g o o n d e fu i a p re n d iz d u ra n te ce r ca d e trê s an os d e scre ve d a se g uin te form a as re la çõe s e n tre os q u e fa ze m p a r-te d o m un d o d os rin g u e s: “ Tod o m u n d o r-te n ta p isa r e m tod o m u nd o, tod o m u n d o te n ta m ach u ca r todo m u n d o, e n in g u é m con fia e m n in g u é m ” . As p rova s ta n g íve is d os e stra g os cor p ora is e d a a fliçã o p e ssoa l q u e d e cor-re m d a p r ofis sã o sã o m u ito v isíve is p a ra os b oxe a d ocor-re s, com o d iz u m p e so-m é d io n e g ro d o We st Sid e d e C h ica g o: “ Só o q u e você te m q u e fa ze r é d a r u m p ulo n a s a ca d e m ia s e d ar u m a olh a d a: tem u m m on te d e ca ra s, su a s p e rn a s e stão a ca b a d a s, sa cou, e le s só fica m p or a li se m faze r n a da . Você p e n sa n a ca rre ira d e le s, q u a nd o e le s e sta vam su b in d o e le s e sta va m a té b e m , m a s d e p ois, t c h u ff (triste ), e le s nã o t ê m n a d a p a ra lh e s d a r u m a p oio, é m a u ” .

(3)

P U TAS, ESC RAV O S E G A RA N H ÕES 1 2 9

Idiomas de exploração corporal

A con sciê n cia q u e o b oxe a d or t e m d a e xp lor a çã o é e xp r e ssa a tr a vé s d e trê s id iom a s a p a re n ta d os: o d a p rostitu içã o, o d a e scra vid ã o e o d a cria -çã o a n im a l. O p rim e iro a p roxim a a d u p la lu ta d or-e m p re sá rio d a q u e la for-m a d a p e la p rostitu ta e p e lo ca fe tã o; o se g u n d o re tra ta o rin g u e cofor-m o u for-m a p l a n t a t i o n e o s e m p re sá rios com o se n h or e s d e e scra vos e fe ito re s con -te m p orâ n e os; o -te rc e i r o su g e re q u e os b ox e a d or e s sã o t ra ta d os co m o ca ch orros, p orcos, g a ra n h õe s e ou tros a n im a is d om é sticos d e va lor com e r-cia l. Tod o s o s t rê s t rop os, sim u lta n e a m e n te , e n u n r-cia m e d e n u n r-cia m a com e rcia liza çã o im ora l, ou a n te s d e su m a n a , d e corp os vivos e a tivos.

De a cord o co m a p rim e ira lin g u a g e m , o ca fe tã o e o e m p re s á r i o te ria m e m com u m o fa to de q u e , com o p re te xto d e p rom ove r o in te re s s e f i n a n c e i ro e p rote ge r a in te g rid a d e física (ou e m ocion al) d os se u s re s p e c-tivos p a rce iros, n a ve rd a d e u sa m e a b u sa m d e le s e m u m a im p ie d osa b u s-ca d e lu cro. Do m e sm o m od o q u e a p rostitu ta ofe re ce n a s ru a s, p or d in h e i-ro, a ca p a cida d e d e p e rf o rm a n c e se xu a l d e se u corp o fe m in in o, o lu ta dor ve n d e a va re jo a ca p a cid a d e , re su lta n te d e tre in a m e n to, q u e te m o se u corp o m a s cu lin o d e ca u sa r e su p ort a r a b u sos físicos e n t re a s cor d a s d o rin g u e . O s e m p re sá rios e p a tro c i n a d o re s, p or s u a ve z, fica m d o la d o d e fora e colh e m o g r osso d o d in h e iro g e ra d o p or e s se com é rcio d e ca r n e m a s c u l i n a3. U m ve t e r a n o d os rin g u e s, já m a is ve lh o, q u e a t ra ve s sou a E u rop a co n tin e n ta l vá r ia s ve ze s a tu a n d o com o “ op on e n te ” d ia n te d o s lu ta d ore s loca is4, form u la isso d e u m a m a n e ira a g u d a :

“ Tod os os b oxe a d ore s sã o u n s fod id os, com o se d iz. É u m je ito d e fa la r, n é ? Sa -b e com o é , os e m p re sá rios sã o u n s ca fe tõe s, sa cou ? E os b oxe a d ore s sã o ig u a is à s p u ta s, sa cou , e n tã o os ca ra s d ã o u m a d e a lcovite iro . É isso a í, com

c e rte za . Ele s n ã o e stã o n e m a í com o lu ta d or, sa cou? Ele s só q u e re m cu rt i r, e a cu rtiçã o é a g ra n a . [com trist e za , m a s se m su rp re sa ] Ele s só se im p ort a m com o d in h e iro” .

Um cole g a m a is n ovo d a a ca d e m ia n o We st S id e , q u e a b a n d on ou u m b om e m p re g o com o insta la d or d e TV a ca b o e m u m a cid a d e-sa té lite e m u d ou -se p a ra C h ica g o p a ra se g u ir ca rr e ira e m te m p o in te g ra l com o b o x e a d o r, com a p oio fin a n ce iro d o n ovo d on o d o g in á s io, ta m b é m con -cord a com e ssa visã o:

(4)

P U TA S, ESC RAV O S E G A RA N HÕ ES 1 3 0

cara s p or a í e joga m e le s prá q u a lq ue r u m , só p e la g ra n a , e ficam com q u a se tod a a g ra n a . De ixa m o lu ta d or se m u m tostã o ou com o m ín im o p rá sob re v i-ve r. Te m u m m on te d e e m p re sá rios d e sse tip o, q u e só u sa m os ca ra s, d o m e s-m o je ito q u e u s-m ca fe tã o u sa u s-m a p u ta , ig u a lzin h o. [cos-m e scá rn io] Te s-m u s-m

mon te d e e m p re sá rios q u e n ã o p a ssa m d e a lcovite iros. Ele s fica m a trá s d e q u a lq u e r lu ta d or só p rá con se g u ir g a n h a r u n s t roca d os e m cim a d e le , n ã o e stã o n e m a í com a sa ú d e d o ca ra n e m n a d a ” .

O se g u n d o id iom a e m qu e s e e xp re ssa e ssa visce ra l con sciê n cia d e e xp lora ção e su b ord in a çã o a dita m es e xte riore s va i se r b u sca d o na e xp e -riê n cia h istórica d a e scra vid ã o. Por m otivos ób vios, a s a n a log ia s com e ssa in stitu içã o d e tr a b a lh o força d o e d e “ a lie n a çã o n a t a l” (Pa t te rson 1982) p ossu e m u m a re sson â n cia sin g u la r e u m a forte ca rg a e m ocion a l p a ra os b o x e a d o re s a fro-a m e rica n os. Um a m ig o m e u d a a ca d e m ia , u m d e m e u s p a rc e i ros re g u l a re s d e tre in am e n to, ch a m a d o Ash a n t e, e ra n a é p oca u m jove m p e so m e io-m é d io e m a sce n sã o, com u m a lon g a lista d e e m pr e g o s a b a n d on a d os n a b a g a g e m . E le re la ta u m a lu ta p a rt i c u l a r m e n te b ru t a l q u e o d e sp e rtou p a ra a d e sig u a ld a d e e con ôm ica in e re n te a o b oxe :

“ Se você va i lá e e stá te n d o u m a b e la d u m a lu ta d u ra , ca ra , d ê v a lor a e sse

cara . Eu vi o H igh m ow e r lu tar com e sse g a roto, ca ra , ca ra ! [riso n e rvoso] Da í e m d ia n te e u com e ce i a od ia r a s lu ta s, a od ia r o b oxe , sé rio m e sm o. Porq u e , sa b e Lou ie [e xa sp e ra d o], H ig h m ow e r e a q u e le g a rot o q u a se se m a ta ra m . Ca ra , a torcid a ficou d oid a , e Ra lp h [o e m p re sá rio] […] e u fa la va , e u fa la va ,

‘m a s q u e me rd a é e ssa ?!’ C a ra , é a e scra vid ã o d e n ovo. Q u e r d ize r, olh a só qu e m e rd a ! Esse s ca ra s estã o se m a ta n d o d e ve rda d e p or [a b a ixa n do a voz e s u s s u rra n d o in cré d u lo e e n oja d o], p or ce m d óla re s [...] [e n fa tiza n d o ca d a p a la vra p a ra d ra m a tiza r se u a rg u m e n to] H ig h m owe r d e u u m d ire to, o ou tro

ca ra d e u u m d ire to, os d ois ca íra m , trê s ou q u a tro ve ze s ca d a . Os d ois fora m p a ra r n o h osp ita l, p a ra g a n h a r o q u e , d u ze n tos d ó la re s, ce m ca d a u m ? Eu d isse [b a la n ça n d o a ca b e ça vig orosa m e n te ]: ‘N ã o, isso n ã o e stá ce rto’” .

Ao e xp re ssa r sua firm e op osiçã o à re g u la çã o d o ofício p e lo g ove rn o , o p re sid e n te d e u m a da s m a iore s a ssim ch a ma da s “ fe d e ra çõe s” q ue sa n -cion a m os ca m p e on atos mu n d iais5(tra ta -se d e um e x-lu ta d or a fro - a m e r ica n o q u e e n tre viste i e m Atlan tic C ity n o in ício da d éica d a d e 90) a rg u m e n -tou q u e isso iria “ d e stru ir o b oxe ” , p oré m re con h e ce u q u e e xiste m d e fa to

(5)

P U TAS, ESC RAV OS E G A RA N H Õ ES 1 3 1

títu lo d o ca m p e on a to] p or te re m m e d o d e u m a d e rrota d o se u lu ta d or. O u q ue q u e re m a m a rra r u m lu ta d or p a ra se m p re com con tra tos d e cin co ou se is lu ta s . A e s cra vid ã o a ca b ou com Lin coln e e le s q u e re m q u e a lg u n s d e s se s lu ta d ore s se ja m e scra vos, e isso n ã o é b om .”

A te rce ira lin g u a ge m d e e xp lora çã o e n tre os b oxe a dore s e voca m e -tá fora s d e a n im a is e da a g rop e cu á ria , reb a ixa n d o os b oxe a d ore s a b e sta s a se re m cria d a s, a lim e n ta d a s e m ostra d a s — ou m e sm o d e vora d a s com c ru e ld a d e ca n ib a l — d e a cord o com a von t a d e d a q u e le s q u e con tr o l a m a s a lava n ca s fin a n ce ir a s d o jog o. C e rta noite , e n q u a n to m e m ostra va os vá rios lu g a re s p e rto d e s e u a p a rt a m e n to q u e se rvia m p a ra a ve n d a d e d rog a s a o a r livre , Lu k e a b ru p ta m e n te in iciou u m a fa la ira d a a re s p e i t o d o em a ra nh a d o d e d isp uta s e n tre se u tre i n a d o r, se u e m p re sá rio, e Ra lp h , o e m p re sá rio b ra n co q u e e xe rce u m q u a se -m on op ólio s ob re a e con om ia d o b oxe d a cid a d e . Ele e sta va p a rt i c u l a rm e n te re sse n tid o com o fa to d e q u e se u tr e in a d or h a via se a lia d o a Ralp h q u a n d o este , tra içoeira m e n te , fe z a r ra n jos p a ra e vit a r q u e Lu k e con se g u isse lu ta r fora d a cid a d e , g a n h a n d o m a is:

“ Sa b e com o é , e le s q u e re m q u e e u lu te q u a n d o o Ra lp h q u e r q u e e u lu te . É

com o, é com o [...] é com o se e u fosse u m ca va lo n u m a coch e ira , e u m e le va n-to n-tod a m a n h ã , o m e u tre in a d or m e le v a p a ra m e e xe rc i t a r, e le s m e la va m , m e d ã o com id a . E m e coloca m d e volta , coloca m d e volta n a coch e ira , e a í o Ra lp h v e m e d iz [com u m t om e x a g e ra d a m e n te jovia l]: ‘E a í, com o é q u e

vai?’. Aí e le , sa b e com o é , no e scritório [com u m a voz m e losa , imita n d o o je i-to d e fa la r d os b ra n cos]: ‘C om o va i a q u e le g a ra n h ã o n e g ro?’ Aí, sa b e com o é : ‘Ele va i b e m ’. E a í e le s p e g a m a lg u n s d os ca ra s q u e vã o lu ta r, m e d e ixa m n a m in h a coch e ira , e e u con tin u o corre n d o e con tin u o tre in a n d o, ce rto? Aí

e le ve m e d iz [com se rie d a d e ]: ‘N ã o vou d e ixa r e le lu ta r n u n ca ’” .

(6)

P U TA S, ESCRAV OS E G ARA N H Õ ES 1 3 2

d é ca d a s. N o e n ta n to, q u a nd o u m d ia conve rsa m os a respe ito da me lhoria d e su a situ a çã o e con ôm ica e d e su a ca rre ira , se n ta d os n o sa lã o d os fu n -d os -d a a ca -d e m ia , tu -d o n e le , -d e s-d e su a p ostu ra , je ito -d e corp o, tom -d e voz, a té o olh a r, re ve lava -o ch e io d e am a rg ura. De pois de lon g os a n os d e “ sa crifício” , se g u in d o a s re g ra s d o a scé tico re g im e d o b oxe a d or, corre n -d o e tre in a n -d o to-d os os -d ia s, a lim e n ta n-d o-se -d e a cor-d o com -die ta s a ssa s-sin a s, e re strin g in d o su a vid a socia l e se xu a l, e le fin a lm e n te con se g u iu coloca r o cin to d e ca m p e ã o6. M a s a q u ilo q u e d e ve ria te r sid o a a p ote ose d e su a vid a p rofission a l e m otivo d e exa lta çã o p e ssoa l a ca b ou se torn a n -d o u m m om e n to va zio e se m a le g ria .

“ P h o n z o: Você a ca b a d e scob rin d o q u e a tra vé s d a s fin a n ça s e d o d in h e iro —

e o d in h e iro é p od e r a q u i n a Am é r ica — e n t ã o, já q u e d in h e iro é p od e r, o d i n h e i ro p od e tra ze r m u itos in im ig os, e ta m b é m p od e fa ze r su rg ir u m mon te d e fa lsos a m ig os. [visive lme n te tra n storn a do com a le m b ra n ça ] En tã o, h m m , e u a ch e i q u e tin h a a m ig os, a in d a h oje [...]. M a s q u a n d o a situ a çã o d e d in h e

ro come çou a fica r m a is d e ce n te [su a voz e olh a r torn a m -se frios] e sse s a m gos vira ra m u ru b us. E qu a n d o u m am ig o vira u ru b u , e le va i b ica nd o a té d e i-xa r você só n o osso. Ele s te u sa m , se a p rove ita m d e você , te a b u sa m , co mo se você fosse u m p orco ou q u a lq u e r coisa a ssim . Ele s te com e m vivo. En tã o,

q u a n d o ch e g u e i a e ssa situ a çã o, e u n ã o e sta va m a is com a s p e ssoa s q u e com e ça ra m com ig o, e u e ra u m a p e ssoa m u ito in fe liz. Qu a nd o g an h e i o ca m p e on a to, n ã o g a n h e i ju n to d a q u e la s p e ssoa s e m q u e m e u con fia va . E a q u e -le s e m q u e você con fia à s ve ze s vã o con tra você , sa b e ? En tã o, g a n h a r o ca

m-p e on a to foi u m a sa tisfa çã o, m a s n ã o foi a m e sm a coisa .

L o u i e : O fa to d e n ã o e sta r com a s p e ssoa s com q u e m você q u e ria e sta r a ca -b ou com a su a a le g ria ?

Ph on zo: Isso, a ca b ou com a m in h a a le g ria .

Lou ie : E você se a rre p e n d e d isso?

P h o n z o: Eu n ã o m e a rre p e n d o d e n a d a n a vid a . S ó De u s sa b e tu d o o q u e a con te ce n a vid a , e p or q u e a con te ce [...]. O q u e a con te ce é q u e q u a n d o a s p e sso a s p a ssa m a te olh a r com o se você fosse u m sa b on e t e e n ã o u m se r

h u m a n o, e la s p e rd e m o re sp e ito p or você . E q u a n d o e la s p e rd e m o re s p e i t o p or você , você p e rd e o re sp e ito p or e la s. E q u a n d o tê m d u a s p e ssoa s tra b a -lh a n d o ju n ta s se m te r re sp e ito u m a p e la ou tra , o e sq u e m a d e tra b a -lh o n ã o va i se r b om . O u [...] a situ a çã o d e tra b a lh o nã o é le g a l [m uito te n so e rá p id o,

(7)

P U TAS, ESC RAV O S E G A RA N H Õ ES 1 3 3

g e n te lid a r com e le s. En tã o foi isso [...] e u n ã o re cla m o: fico fe liz p orq u e sa í d o jog o, p orq u e sa í se m fica r com ore lh a s d e cou ve flor, te n h o tod os os d e n -te s a in d a n a m in h a b o ca , n ã o q u e b re i a s cos-te la s — a ú n ica coisa q u e e u q u e b re i vá ria s ve ze s fora m m in h a s m ã os, d e tã o forte q u e e u b a tia ” .

Essa s trê s ling u a g e ns d e e xp lora çã o n ã o sã o de m od o a lg u m incom -p a tíve is e n tre si, e n a ve rd a d e os b oxe a dore s costu m a m com b in á -la s de vá ria s m a n e ira s. Da ve “ TN T” Tib e ri, u m p e so-m é d io d e De la w a re , e m se u d e p oim e n to n o In q u é rito sob re a C orru p çã o n o Boxe Profission a l p ro-m ovid o p e lo Se n a d o a ro-m erica n o n o ve rã o de 1992, d e pois do g ra nd e de s-ta q u e d a d o p e la m íd ia a u m a d e cisã o e sca n d a losa m e n te p a rcia l q u e o p rivou d o títu lo n a cion a l e m u m a lu ta te le vision a d a p a ra o p a ís in te ir o , d e se n volve u u m p ou co m a is a m e tá fora d a a n trop ofa g ia a o d e cla ra r, p a ra a su rp re sa d os se n a d ore s, q u e “ a m a ioria d os lu ta d ore s, d e p e n d e n d o d o se u ta le n to, é vista pe los e m pr e sá rios com o filé , ou tros com o coste linh a s d e p orco, e os m e n os ta le n tosos com o ca rn e m oíd a *, m a s é ra ro q u e se ja m re con h e cid os com o se re s h u m a n os” . Ao e xp lica r q u e a In t e r n a t i o n a l Boxin g Fe d e ra tion h a via p e rm itid o q u e e le con corre ss e a o títu lo com o ca m p e ã o J a m e s Ton e y só d e p ois q u e ele re n u n ciou a o se u p róp rio títu lo jun to à org a n iza çã o riva l In te rn a tion a l Boxin g C ou ncil e a ssin ou u m con -tra to d e trê s lu ta s com o e m p re sá rio d e To n e y, Tib e ri m u d a d e r e g i s t ro : “ Le m b r a n d o d a q u e la s circu n stâ n cia s, e ra com o e sta r se n d o com p r a d o e m u m le ilã o d e e scra vos [...] à s ve zes e u a ch o d ifícil con sid e ra r o b oxe u m e sp orte . Pa ra m u itos e m pre sários, virou u m trá fico d e e scra vos p riva -do e le g a liza -do” (U.S. Se n a te 1992:10, 11). A su b se q ü e n te d e p osiçã o de J a m e s Pritch a rd , o ca m p e ão inte rcon tin e n ta l d a ca te g oria p e so-cru z a d o r da IBF, a cre sce n ta u m toq u e va m p ire sco à im a g e m a te rroriza n te d e q u e o sa n g u e vita l d os lu ta d ore s e stá se n d o su g a d o p a ra s e r con su m id o p or pa ra sitas e m bu sca de lu cro. Pritch a rd tra b a lh ou p a ra trê s e m p re sá rios, e os trê s fora m p or ele ca r a ct e riza d os com o “ sa n g u e ssu g a s” : “ Do m e sm o je ito q u e u m m osq u ito , e le te p ica e s u g a o te u sa n g u e . É isso q u e e le s faze m . Q ua n d o e le s se g ru da m e m você , e les su g a m tud o o q ue p od e m ” (U.S. Se na te 1992:30). Sa n g u e su g a do, ca rn e b ica da , ossos d es car n a d o s , vita lid a de e sg ot a d a e rou b a d a : e ssa s e xp re ssõe s re fle te m vivid a m e n te a p e rce p çã o viscer a l d os b oxe a d ore s d e q u e sã o u m a m e r ca d oria corp ora l d e sva loriza d a e e m p e rig o7.

(8)

P U TA S, ESC RAV O S E GA RAN H ÕES 1 3 4

Int egridade at ravés da acomodação

A g ra n d e ma ioria d os luta d ore s p rofission ais — 88% d os pra tica n te s d e sse ofício e m Illin ois e m 1991 — con sid e ra q u e os s eu s sse rviços sã o e xtre m a m e n te m a lre m u n e ra d os e a firm a com b a sta n te vig or q u e re ce b e a p e -n a s “ u -n s troca d os” ou “u m a s mig a lh a s” . 86% d e le s co-n sid e ra m q ue um a “ re m u n e ra çã o ju sta ” te ria q ue se r ig u a l ou m a ior d o q u e 100 d óla re s p or ro u n d , q u e é o d ob ro d a re m u n e ra çã o n orm a l e m C h ica g o na é p oca (ve r Ta b e la 1). Q u a n d o p e rg un te i a u m p e so m eiom é d io n e g ro d e se m p re g a -d o q u e e stava há q ua tro a n os n o ofício se e le ach a va q u e os pu g ilista s -d a cid a d e re ce b ia m u m a “ re m u ne raçã o ju sta” p or se u tra ba lh o, ele re s p o n -d e u , m a l con te n -d o a su a ra iva :

“ Re ce b e m n a d a ! N a d a d isso, e le s e stã o se n d o e n g a n a d os, e stã o se n d o ro u -b a d os, e lu ta r -b oxe e m C h ica g o, p rá m im , e ssa é m in h a op in iã o p e ssoa l, os b o x e a d o re s e m C h ica g o [m u ito a lto] e stã o se n d o a b u sa d os e u sa d os, e n u n

-ca te ve ju stiça p a ra e le s e m C h i-ca g o, sa cou ? Porq u e os -ca ra s g a n h a m m a l, t re in a m d e ma is e n u n ca con se g u e m fa ze r o q u e p re cisa m fa ze r no b oxe p or-q u e n in g u é m e stá n e m a í com e le s” .

Ta b e la 1 — O q u e o s b ox e a d o re s c o n s id e r a m u m a “ r e m u n e r a ç ã o ju st a ” p a r a u m a lu ta d e se is ro u n d s (os va lore s e fe tiva m e n te p a g os e stã o e n tr e 200 e 300 d óla re s )

Node boxeadores %

< 500 d óla re s 5 11

500 d óla re s 6 13

600-800 d óla re s 20 45

> 1.000 d óla re s 14 31

Total 45 100

Fon te : Le va n ta m e n to fe ito p e lo a u t or ju n to a os lu ta d ore s p rofis sion a is d e

I l l in ois, 1991.

(9)

P U TAS, ESC RAV O S E G A RA N H Õ ES 1 3 5

q u e lh e s p e rm it e m re a liza r e ssa a com od a çã o e con stru ir u m se n s o d e in te g rid a d e p e ssoal e p rofission al, n o se n tid o d e “ se r e s p o n s a b i l i z a re m pe lo se u p róp rio p r oje to d e vid a , d e nt ro d os lim ite s e p re ssõe s im p ostos p e la s r e striçõe s e stru t u ra is , e d e a cord o com con ce p çõe s con siste n te s a re sp e ito d a m a n e ira corre ta d e se vive r, e m p a rce ria com os ou tros”8.

O p rim e iro voca b u lá rio a firm a sim p le s m e n te q u e a e xp lor a çã o fa z n e ce ssa ria m e n te p a rte d a vid a, é u m d a tu m b ru tu m d a e xistê n cia com u m d a s p e ssoa s com u ns, com o q u a l te m os qu e lid a r d a m e lh or m a n e ira p os-síve l. A força d e p e rsu a sã o d e sse voca b u lá rio te m u m a orig e m ób via: a e xp lor açã o e con ôm ica é d e fa to u m a con st a n te n a s re g iões m a is b a ixa s d o e sp a ço socia l a m e rica n o, on d e vive m os b ox e a d ore s e se u s a ss ocia -d os. O q u e p o-d e va ria r sã o su a s form a s fe n om ê n ica s, su a in te n si-d a -d e e se u s b e n e ficiá rios9. Visto d e s te â n g u lo, o b oxe d ife re p ou co d os ou tro s jog os socia is a os q u a is os jo ve n s p role tá rios d os b a irros p ob r e s e d e ca -d e n te s tê m a ce sso, u m a ve z q u e o siste m a fa li-d o -d e e scola s p ú b lica s só o f e re ce op ortu n id a d e s in viá ve is e o m er ca d o d e tra b a lho n ã oq u a lifica -d o, in cha -d o com m ã o--d e -ob ra b a ra ta , a lon go p ra zo só a ce n a com m a rg i-n a lid a d e (M c Le od 1994; H olze r 1996). C om o ob se rva su cii-n ta m e i-n te Bu tch, m e u com pa n h e iro d e a ca d e m ia, b om b e iro e p u g ilista com m ais d e u m a d é ca d a d e e xp e riê n cia n os rin g u e s:

“ Se e xiste u m a cla sse d e p e ssoa s p ob re s, q u e n ã o te m n a d a , se m e stu d o, o m e rca d o d e tra b a lh o va i m a l, e a í a p a re ce u m ca ra e d iz: ‘e u d ou 150 d óla -re s p a ra você s lu ta -re m ’, com o é q u e a lg u é m va i d ize r n ã o? Ele s se a p ro v e

i-ta m d a su a situ a çã o. Se o ca ra tive sse d in h e iro n o b olso e u m e m p re g o o ca ra n ã o ia con se g u ir con ve n ce r e le a lu ta r. En tã o é cla ro , os ca ra s q u e vê m d e u m a orig e m p ob re sã o u n s p u ta lu ta d ore s, p orq u e e le s lu ta m p orq u e n ã o tê m ma is n a da . E qu a n d o ele s a p re n d e m a g a n h a r d in he iro, b a te r e m a ch u ca r os

o u t ros a ca b a se n d o u m d in h e iro fá cil, e e le s con tin u a m fa ze n d o isso a té nã o p od e re m m a is, a té e le s vira re m d in h e iro fá cil p a ra a lg u m a ou tra p e ssoa ” .

(10)

P U TA S, ESC RAV O S E G A RA N HÕ ES 1 3 6

u m a e sp é cie de lote ria? Um p e so m e io-m é d io m e xica n o q ue a firm a e sta r b e m con scie nte d os a b u sos q u e rotin e ira m e n te os e m p re sá rios com e te m , e q u e n o e n ta n to assin ou rece n te m e n te u m con tra to d e long o p ra zo com u m a d a s q u a tro m a iores a g ê ncia s da re g iã o, e sclare ce: “ Você a s s u m e u m risco, m a s você ta m b é m a ssu m e u m risco q u a n d o a n d a n a ru a , sa b e , você p od e se r a trop e la d o p or u m ca rro, ou p od e se r a ssa lta d o q u a n d o va i le va r su a m u lh e r p a ra u m p iq u e n iq u e , ou q u a lq u e r cois a a ssim ” . Em con d i-çõe s d e in ce r te za g e n e r aliza d a , e m lug a r d e fica re m re sse n tid os com os e m p re sá rios, a lg u n s b oxe a d ore s se se n te m g ra tos pe la op ortu n id ad e q u e e ste s lh e s ofe re ce m d e fa ze r su a s a p osta s n e ssa e stra n h a l o t e ria d e cor-p os h a b ilid osos q u e é o b oxe . É e sta a ocor-p in ião d e Surly, u m cor-pe so-cor-p e sa d o q ue conse g u e e m p re g os in te rm ite ntes e m ora e m um d os con jun tos h a bi-ta cion a is p ú b licos m a is p e rig osos d o We st Sid e d e C h ica g o:

“ Ach o q u e m u itos d e le s, se n ã o e stive sse m a q u i, sa b e , n ã o te ria m n e n h u ma cha n ce , n é ? A g e n te p re cisa se a rr i s c a r. [com a rrog ân cia ] Tu d o te m u m risco.

Se você jog a d a d os, você p od e g a n h a r ou p e rd e r. O b ox e é com o o jog o, e m c e rto se n tid o. Sa b e com o é , ta m b é m p re cisa te r u m a ce rta h a b ilid a d e , m e s-m o se n d o u s-m jog o você ta s-m b é s-m te s-m q u e sa b e r o q u e você e stá fa ze n d o” .

Alé m disso, d a d a a d e te stáve l re p u ta çã o d o m u n d o d os boxe a d ore s , n in g u é m p od e a firm a r d e m a n e ir a con vin ce n te q u e foi re a lm e n te e ng a n a d o: tod os os p a rticip a n te s sa b e m m u ito b e m q u e o b oxe é com o u m ta n -q u e ch e io de tu b a rõe s on d e -q ue m n ã o d e vora os ou tros va i a ca b a r m a is ce d o ou m a is ta rd e vira n d o re fe içã o (Wa cq u a n t 1998a ). En tra r n a e cono-m ia d o p u g iliscono-m o p re ssu p õe , p o rta n to , a b in itio a a ce ita çã o, t á cit a ou e xp lícita , d e u m a p osiçã o su b ord in a d a ou e xp lora d a . M a r tin , u m p e s o-c ru za dor n eg ro q ue lu tou o-com o p rofission a l d u ra n te n ove an os a o me sm o t e m p o q u e a sce n d ia p rofission a lm e n t e d e le it or d e m e d id ore s p a ra u m tra b a lh o d e e s crit ório n o d e p a r ta m e n to d e a t e n d im e n to a o c lie n te e m u m a g ra n d e e m p re sa , re fle te :

“ Eu sa b ia q u e u m a coisa q u e e u q u e ria n a vid a e ra lu ta r. Se e u já d e cid i se r u m lu ta d or, e ch e g a u m ca ra e se d iz ‘e m p re sá rio ’, se você q u e r ch a m a r e le d e ‘m e rca d or d e ca rn e ’, sa b e , e n tã o e le é m e rca d or d e ca rn e . O s e m p re s á -rios só se in te re ssa m p or você se você p u d e r lu ta r, sa b e — é a m e sm a coisa

(11)

P U TAS, ESC RAV O S E GA RAN H ÕES 1 3 7

p e ssoa q u e va i se rvir d e e mp re sá rio, é o tra b a lh o d e le , e e le s só e stã o in te -re ssa d os e m v ocê se você p u d e r lu ta r. Se q u ise r ch a m a r isso d e ve n d e r ca r-n e , e r-n tã o tá , é isso q u e e le s fa ze m . M e sm o a ssim re solvi e r-n tra r r-n o jog o, m e s-m o sa b e n d o q u e e u ia se r a ca rn e [risos]” .

Um a se g u n d a força q u e p rom ove a aq u ie scê ncia p rá tica d os lu ta do-re s d ia n t e d e a rra n jo s v e rg on h osa m e n t e e xp lora d o do-re s é o e s p ír it o e m p re e n d e d o r qu e a tra vessa o ofício. De sd e o mome n to e m q u e coloca m o p é n a a ca d e m ia , os “ a rtista s m a ch os” p a ssa m a se r a lim e n t a d os com u m a ra çã o in in t e rru p ta d e n o çõe s e n a r ra tiva s n a tiva s q u e re ssa lta m o in d ivíd u o d e sa fia d or e re tra ta m o b oxea d or com o u m gu e rre i ro solitá rio, u m g la dia d or m od e rn o q u e e stá lá p a ra p rova r se u valor a o se a tra car d e p u n h os ce rra d os com o se u p róp rio d e stin o1 1. Esse voca b u lá rio e m p re s a ria l d a s m otiva çõe s se e n ra íza n a e xp e riê n cia ocu p a cion a l d a a u t op rod u çã o corp ora l: a o tre i n a r, o boxe a d or u sa seu próprio corpo a o m e sm o te m -po com o m a té ria -p r im a e com o fe rra m e n ta p a ra re m od e la r e sse m e s m o c o r p o d e a cord o com a s e xigê n cia s p e cu lia re s do ofício. Ele se e n g a ja e m tra b a lh os corp ora is e sp e cia liza d os q u e tê m o ob je tivo d e p rod u zir u m tip o espe cífico d e ca p ita l corp ora l q u e p od e se r ve n d id o e va loriza d o n o m e r-ca d o p u g ilístico (Wa cq u a n t 1995).

(12)

P U TA S, ESC RAV O S E G A RA N HÕ ES 1 3 8

O s b oxe a d ore s a p re cia m e sta r “ b e m n o lu g ar d a p rod u çã o” , se re m “ se lf-m a d e m e n ” n o se n tido lite ral de pro d u z i re m -se a si m esm os a travé s d o tra b a lh o corp ora l d iá rio n a a ca d e m ia e fora d e la . M u itos d e le s in icia l-m e n te b u sca l-m a p rofissã o p or ca u sa d e u l-m a col-m b in a çã o d e a l-m or a o jog o e d e se jo d e e sca p ar d os “ tra b a lh os e scra vos” da m a n ufa tu ra d e ca de n te e d a n ova e con om ia d e se r viços, n os q u a is se é ob r ig a d o a “ e n g ra xa r o s sa p a tos d os ou tros” e a g ü e n ta r su bm issã o p essoal, h u m ilh a çã o cu ltu ra l e p e rd a d e h on ra m a scu lin a p a r a a sse g u ra r con d içõe s p a ra u m e m p r e g o d u rá ve l — tu d o isso p a r a g a n h a r u m a n in h a ria q u e n ã o g a ra n te n e m se g u ra n ça e conôm ica , n e m op ortu n id a d e s d e p rom oçã o (Bour gois 1995). Ele s con siste nte m e nte in te rp re ta m o b oxe p rofission a l com o u m a rota d e fu g a d ia n te do d estino m od a l d e “ p a ssa r p or vin te d ife re n te s e m p re g o s ” q u e n ã o le va m a lu g a r a lg u m . C om o ob se rva Vin n ie , u m p u g ilista íta la m e ricla n o q u e re lu tla n te m e n te se torn ou p rofission la l d ep ois q u e u m n eg o-cia n te loca l, a m ig o d a fa m ília , se ofe re ce u p a ra a p oiá -lo e m su a ca rre ira :

“Vi n n i e : Se e u n ã o tive sse e n contra d o o b oxe , e u p rova ve lme n te ia e sta r na s ru a s, tra b a lh a n d o com o u m cid a d ã o q u a lq u e r, p or u m con tra ch e q u e , te n d o q u e a g ü e n ta r a s ord e n s d e a lg u é m — ca ra , e u fico d oe n te só d e p e n sa r! Lou ie: É m e sm o? En tã o o b oxe é u m je ito d e e sca p a r d isso?

Vi n n i e : C om ce rte za , com ce rte za . É p or isso q u e e u d ig o, a os ra p a ze s q u e n ã o e stã o e n volvid os com b oxe ou com e sp o rte ou coisa a ssim , os q u e vã o à e scola : você n ã o te m q u e fa ze r isso! [g e sticu la n d o a n im a d a m e n te ] Se ja se u p róp rio e m p re sá rio, se ja se u p róp rio ch e fe , a í vo cê n ã o p re cisa fica r e scu

-ta n d o d e n in g u é m , n ã o p re cisa fica r a g ü e n t a n d o m e rd a d e n in g u é m , você con se g u e su a p róp ria g ra n a ” .

A v ig orosa a firm a çã o d e su a “ ca p a c id a d e d e a çã o” * in d ivid u a l e n con tra su a con tra p a rte n a p a ra d oxa l n e g a çã o, ou d e scon sid e ra çã o, p e lo l u t a d o r, d a re sp on sa bilida d e e con ôm ica d os e m p re sá rios, d e m od o a d e s-via r a a te n çã o d os a rra njos im pe ssoa is e re la çõe s e stru tu rad a s q u e e fe ti-v a m e n te d e te rm in a m a form a , a ti-ve locid a d e e o re su lta d o d a s ca rr e i r a s d e b oxe a d ore s (Wa cq u a n t 1998a ).

Por fim , con ta n d o co m a cu m p licid a d e in te re ssa d a d e se u s p a r e s , t re i n a d o re s, a m ig os e torc e d o re s, tod o b oxe a d or s e a p e g a à n oçã o a u to-ju st ifica d ora d e q u e e le se rá a e x c e çã o in d ivid u a l à re g ra co le t iva : e le se rá a q u e le q u e va i con se g u ir d a r a vo lta p or cim a , ir con tra to d a s a s

(13)

P U TAS, ESC RAV O S E G A RA N H Õ ES 1 3 9

e xp e cta t iva s, e t ra n sg re d ir a le i u n ive rsa l d a e xtor sã o p u g ilís tica . C om b a se a p e n a s n a su a d e d ica çã o, vonta de fé rre a e con sta nte vigilâ n cia , e le va i con se g u ir “ g a n h a r o se u ” se m “ se d a r m a l” n e sse p roce sso. Es ta é a p osiçã o d e fe n d id a p or Don , u m a n tig o “ con t e n d or” q u e m a is r e c e n t e -m e n te se torn ou u -m va lioso lu ta d or d e se g u n d o e sca lã o n o circu ito n a cion a l e m vir tu d e d e su a s sólid a s h a b ilid a d e s cion o ricion gu e e de su a p e le b ra cion -c a1 2: “ Eu m e sm o, se e u e stou m e cu id a n d o, n ão d e ixo n in g u é m se a p ro-ve ita r d e m im [co m fir m e za ]: n ã o d e ix o” . Essa m e sm a d e te r m in a çã o é rep e tid a p or Rod e rick , u m p eso-le ve ne g ro q u e já h a via se n tid o o “ g osto d o su ce sso” q u a n d o se u e m p re sá rio o m a n d ou p a ra a s a ca d e m ia s d e La s Ve g a s p a ra tre ina r com b oxe a dores d e e lite : “Pa ra m im , e u concordo ple -n a m e -n te [q u e os e m p re sá rios e xp lora m a s p e ssoa s]. (M e sm o a ssim você re so lve u e n tra r n o jo g o?) É, m a s é o ú n ico je ito ; e u p oss o lu ta r, sa b e : a d i f e re n ça é e ssa , e u p o sso lu ta r. Eu p osso m e a g ü e n ta r sozin h o. (Vo c ê n ã o a ch a q u e a lg u é m va i te u sa r?) Só se e u d e ixa r, se e u fica r a te n to, fica r e s p e rt o, eu nã o vou m e d a r m a l” . Um com p a n h e iro d e a ca de m ia con cd a : “ O n e g ócio é o se g u in te : e u se i q u e n ã o va i a con te ce r isso, saca , p or-q u e e u sou u m a p e ssoa or-q u e se e u vir or-q u e e stá a con te ce n d o iss o, e u vou m a n d a r você se fod e r” . Por su a ve z, M a rtin , o p e so- cru za d or n e g ro q ue a d m ite s e r “ ca rn e ” p ron ta p a ra se r ve n d id a , e voca a p rote çã o e sp e cia l d o cé u : “ Eu te n h o o S a lv a d o r qu e olh a p or m im e n tã o e u n ã o m e p re o c u -p o — e u se i q u e a s -p e ssoa s te n ta m m e u sa r m a s o b o m De u s n ã o h á d e d e ixa r isso a con te ce r com ig o” .

Em ú ltim a in s tâ n cia , a r e s p on sa b ilid a d e p e la e xp lora çã o é jog a d a tota lm en te n as costa s d o b oxe a d or, q ue é con vid a d o a a ssu m ir a p a te rn i-d a i-de i-de se u e ve ntua l fra ca sso n o ca m po pu g ilístico jun ta m e n te com a i-de su a s re a liza çõ e s. Se e le q u ise r se v a n g loria r d os se u s a tos d e su ce sso p u g ilístico, d e ve e sta r p ron to p a ra a ssu m ir ta m bé m a a g on ia d o fra ca sso p rofissio n a l, d a d e g ra d a çã o e con ôm ica e d a d e stru içã o corp ora l, com o a firm a u m jove m p e so-m é d io n e g ro q u e lu ta b oxe d e d ia e tra b a lh a com o se g u ra n ça à n oite :

“ E u a ch o q u e isso é ve rd a d e [q u e os e m p r e sá r ios e xp lor a m a s m in or ia s p o b re s], a lg u n s d e le s, sa b e , n ã o sã o t od os, só a lg u n s. Q u e r d ize r, só vã o p od e r te u sa r e n q u a n to você d e ixa r. Um a p e ssoa só p od e te su g a r e n q u a n to você d e ixa r. Se você se n te q u e te m a lg u é m te u sa n d o, a ch o q u e você d e v e

(14)

P U TA S, ESC RAV OS E G A RA N HÕ ES 1 4 0

No fim d as con ta s, o b oxe n ão p a ssa d e um “ n e gócio ca p italista ” como q u a lq u e r ou tro e os e m p re sá rios, com o q u a isq u e r b on s e m p re sá rios, e stã o só fa zen d o o seu tra b a lh o qu a n d o g an h a m din h e iro a p a rtir d a lab u ta e d o su or d os ou tros. Um p olicia l p orto-riqu e n h o q u e con corre u d u as ve ze s a o títu lo e stad u a l d os p e sos-le ves costu ra o te m a d a ine vita b ilid a d e d a e xplo-raçã o com o d a re sp on sa b ilid a de d o lutad or como op e ra d or in de pe nd e n te :

“ É, a ch o q u e é b e m isso, e u sin to a m e sm a coisa , sa b e , é o tra b a lh o d e le s, é

a ssim q u e e le s g a n h a m a vid a , tá m e e n te n d e n d o? A g e n te n ã o p od e cu lp a r e le s, p orq u e e le s ta m b é m tê m q u e g a n h a r a vid a , m a s p or ou tro la d o a g e n te p od e cu lp a r e le s ta m b é m , p orq u e e stã o d e stru in do a lg u ém , e stã o a ca b a n -do com a lg u m g a roto q u e p od ia te r u m p ote ncia l m u ito b om . Só p orq u e e sse

g a roto n ã o te m dinh e iro p or trá s d e le , e le va i se r u sa d o com o isca , e isso n ão está ce rto, tá m e e n te n d e nd o? M a s se o ga roto for e sp e rto, e le n ã o va i e n tra r n e ssa , e u se i q u e com ig o isso n ã o va i a con te ce r, tá m e e n te n d e n d o, p orq u e e u n ã o sou otá rio” .

Por fim , n o ca so d a q u e le s q u e , te n d o se d e d ica d o d u ra n te a n os a tra -b a lh os corp ora is in te n sivos d e n tro d e ssa e con om ia e sp ecífica , n ã o p os-su e m ou tr a s q u a lific a çõe s n e m a lt e r n a t iv a s a cu rto p r a zo p a ra g e ra r a re n d a n e ce ssá ria p a ra cob rir su a s d e sp e s a s b á sica s — a n ã o se r o n ã o m e n os pe rig oso com é rcio de m e rca d oria s “ q u e n te s” e n a rcóticos — re s t a a cru a ca rê n c ia e con ôm ica . Essa é a situ a çã o d e u m p e sop e sa d o a fr o -a m e ric-a n o q u e foi e m p re g -a d o re p e t id -a s ve ze s p or se u t re in -a d or com o “ op on e n te ” e m s h o w s te le vision a d os, se m q u e tive sse virtu a lm e n te n e -n h u m a ch a -n ce d e ve -n ce r, e q u e p ro-n ta m e -n te a d m ite e s ta r se -n d o u sa d o p or e m p re sá rios e m b u sca d e se u s p róp rios fin s . Sa b e r q u e os e m p r e s á -rios sã o e xp lora dores n ã o o le va a p a ra r d e luta r: “ Sim . (Por q ue ?) Porq u e e u g osto. (Você n ã o a ch a q u e ta lve z você p ossa e sta r se n d o u sa d o?) N ã o. Um p ou co, a té ce rto p on to, sim . (E você n ã o se p re ocup a com isso?) M e p re ocu p o sim , m a s e u te n h o q u e g a n h a r a vid a , te n h o q u e con tin u a r”13.

Em se u con ju n to, a s cre n ça s d óxica s in scrita s p r ofu n d a m e n te n a s d isp osiçõe s corp ora is d o lu ta d or, a cre n ça n a n a tu ra lida d e d a e xp lora ção, n a “ ca pa cid a de d e a çã o” d o e m p re sa ria m e n to d o corp o e n a p ossib ilida -d e -d e ca sos in -d ivi-d u a is e xce p cion a is, a ju -d a m a p ro-d u zir u m e q u ív oc o coletivo de re c o n h e c i m e n t o * q u e le va os b oxe a d ore s a se torn a re m cú m -p lice s d e su a -p ró-p ria com e rcia liza çã o e a conse n tire m -p ra tica m e n te com

(15)

P U TAS, ESC RAV OS E G A RA N H Õ ES 1 4 1

a su a “ d e gra da çã o a u m a m e rca d oria , e u m a m erca d oria b e m mise rá ve l” ( M a rx 1964:120 ). Q u a n to à in com u m i n t e n s id a d e d a e xp lora çã o n e ssa e con om ia , é u m a fu n çã o d ir e ta d a d istâ n cia socia l e e tn orra cia l e n tre o e xp lora d or e o e xp lora d o b e m com o d a e n orm e d isp a rid a d e e n tre os volu -m e s e tip os d e ca p ita l q u e p ossu e -m : d e u -m la d o, lu ta d ore s q u e n or-m a l-m e n te q u a se n a d a tê l-m a lé l-m d e se u s org a n isl-m os tre in a d os e a cora g e l-m m ora l n e ce ssá ria p a ra v a lorizá -los e m u m ofício d u ro e a rrisca d o; d o o u t ro, e m p re sá rios q u e virtu a lm e n te m on op oliza m a s com p e tê n c ia s e b e n s n e cessá rios p a ra le va r a d ian te o n e g ócio. A a u sê ncia q u a se tota l d e re g u la çã o p or a g ê n cia s b u rocrát icas d o Esta d o, por su a ve z, é e xp re s s ã o d o s t a t u s m a rg in al e m a cu la d o de sse ofício n o u nive rso d os e sp orte s p rofission a is e d o e ntre te n ime nto p op ula r, b e m com o a cla sse corre s p o n d e n te m e nte b a ixa de se u s p ra tica n te s e con su m id ore s, com o ob se rva ag u d a -m e n te -m e u cole g a d e a ca d e -m ia S-m ith ie :

“ Ve ja b e m , é u m a p rofissã o q u e se você tive sse g e n te co m e stu d o, tive sse

d i p l om a t a s, se t ive ss e g e n te d e ce rt a c u lt u r a , n é , q u e e n t ra sse n o jog o e vira sse l u t a d o r, e n tã o e le s iria m p e d ir isso [m a is re g u la çã o]. M a s ve ja o tip o d e g e n te q u e você e n con t ra n e sse jog o, e stá d e a cord o com o tip o d e re l a -çã o e o tip o d e n e g ócios q u e você e n co n t ra , n é ? En tã o u m a coisa re f l e t e

s o b re a ou tra ” .

Re ce b id o e m 13 d e m a io d e 2000

Tra d u çã o: J oh n C om e rford

(16)

P U TAS, ESC RAV OS E G A RA N HÕ ES 1 4 2

N o t a s

* Este te xto se b a se ia e m u m a discu ssã o re aliza d a n o Prog ra m a d e PósG ra -d u a çã o e m An trop olog ia Socia l, M u se u N a cion a l, UFRJ , Rio -d e J a n e iro, n o -d ia 3 d e m a io d e 2000, e fa z u so, e m p a rte , d e u m p a p e r m a is lon g o com o títu lo “ Th e P a ssion o f th e P u g ilist: De sire a n d Dom in a t ion in th e M a k in g of Pr ize fig h te rs ” (“ A Pa ixã o d o Pu g ilista : De se jo e Domin a çã o n a C on stru çã o d os Boxe a d ore s Pro-fission a is” ), a p re se n ta d o com o M o rr ison Lib ra ry In a u g u ra l Le ctu re , n a Un ive rsi-d a rsi-d e rsi-d a C a lifórn ia , Be rk e le y, n o rsi-d ia 25 rsi-d e a b ril rsi-d e 1995. Este tra b a lh o se b e n e fi-ciou d os com e n tá rios e q u e stõe s d os p a r ticip a n te s d o se m in á rio sob re C u ltu r a Pop u la r n o M u se u N a cion a l, b e m com o d o a g u d o olh a r e d ito ria l d e M e g a n L. C om fort.

1 Du ra n te o tra b a lh o d e ca mp o, re a liza d o e n tre 1988 e 1991, a p re nd i a lu ta r b oxe (b e m o su ficie n te p a ra se r a d m itid o n o C h ica g o G old e n G love s e p a ra b oxe a r re g u l a rm e n te com p rofissio n a is), fre q ü e n te i torn e ios a m a d ore s e p rofission a is e m vá rios loca is d o M e ioO e ste a m e rica n o e e m Atla n tic C ity, ob se rve i e re l a c i o n e i -m e c o-m tre i n a d o re s e e -m p re sá rios e -m se u a -m b ie n te n a tu ra l, e a co-m p a n h e i o s m e u s a m ig os d a a ca d e m ia e m se u cotid ia n o. N e ste a rtig o, la n ço m ã o d a s 2.2 00 p á g in a s d e m e u d iá rio d e ca m p o, d e m in h a s n ota s d e ca m p o, d a s h istória s d e vid a d e m e u s com p a n h e iros d o Ston e la n d Boys C lu b (n om e fictício) e d e e n t re v i s t a s e m p rofu n d id a d e com tod os os cin q ü e n ta boxe a d ore s p rofission a is a tivos n o e sta -d o a m e rica n o -d e Illin ois n o ve rã o -d e 1991.

2 Ve r Wa cq u a n t (1 998a ) p a ra u m a a n á lise d e ta lh a d a d a e stru tu ra e d o fu n -cion a m e n to d a e con om ia d o p u g ilism o com o sist e m a d e troca e d e con ve r sã o m ú tu a e n tre ca p ita l corp ora l e ca p ita l e con ôm ico p ossib ilita d a p or u m e q u ívoco cole tivo d e re con h e cim e n to [colle ctive m isre cogn ition ].

3 “ Eu sou u m a p u ta q u e ve n d e o sa n g u e e m ve z d a b u n d a . M a s isso fa z p a r-te d o e sp orr-te . Eu n u n ca g a n h e i m u ito d in h e iro com a m in h a b e le za , m a s se m p re a p a re ce a lgu é m d isp osto a m e pa g a r p a ra le va r p orra da . E e u a g ü e n to mu ita p or-ra d a , ca or-ra . É u m d om d a n a tu re za . Esse g or-ra n ito d os m e u s om b ros p od e a g ü e n ta r m u ita p a n ca d a . Ele s n ã o m e p a g a m p a ra se r in te lig e n te ” (Ra n d a l “ Te x” C ob b , u m p e so-p e sa d o b r a n co, q u e t ra b a lh a com o m e câ n ico, cita d o p or H a u se r 1986:106). Do ou tro la d o d a fron te ira d e g ê n e ro, ta lve z a m e lh or a n a log ia p a ra os b o x e a d o re s se ja m a s mu lh e re s q u e fa ze m p e rf o rm a n c e s de p orn og ra fia com e rc i a l (St olle r e Le vin e 1993 e Wa cq u a n t 1997), a in d a q u e e s sa a tivid a d e se ja m ora l-m e n te re p rova d a a té l-m e sl-m o n o l-m e io b a s ta n te p r óxil-m o d a s a tr ize s p orn ô s , e nq u a n to luta r b oxe é u m a a tivid a d e b a sta n te va loriza d a n a s re g iõe s m a is b a ixa s d o e sp a ço socia l, d e on d e vê m os b oxe a d ore s.

(17)

P U TAS, ESC RAV O S E GA RA N H ÕES 1 4 3

tra zid o p or u m e m p re sá rio p a ra se con fron ta r (o ja rg ã o d iz: “ p a ra se rvir d e com i-d a p a ra ” ) com a lg u m b oxe a i-d or e m a sce n sã o, com o ob je tivo i-d e m e lh ora r o cu rr í-cu lo e p rom ove r a ca rre ira d e ste . Sh a p iro (1988) re tra ta com se n sib ilid a d e e sse s “ op on e n te s” .

5 Essa s o rg a n iza çõe s, m u ita s ve ze s ch a m a d a s co m d e s p re zo p or p e ssoa s lig a d a s a o b oxe com o os “ b a n d id os d o a lfa b e to” [a l p h a b e t b a n d its], sã o a g ê n cia s a u ton om e a d a s q u e tra b a lh a m m a n com u n a d a s com e m p re sá rios p a ra p u b lica r os r a n k i n g s e cole ta r e n orm e s “ ta xa s d e a u toriza çã o” e m t roca d e in clu ir n o ca m -p e on a to lu ta s q u e sã o ve n d id a s à s re d e s de te le visã o. As trê s ma iore s sã o a Wo r l d Boxin g Associa tion (cria d a e m 1962), “ u m a p e q u e n a irm a n d a d e d e la tin o-a m e ri-ca n os” q u e “ n ã o p a ssa d e u m a p ia d a corru p ta ” ; o World Boxin g C o u n cil (196 3), q u e tra b a lh a com o “ fe u d o p e ssoa l” d e J osé Su le im a n , u m lib a n ê s e d u ca d o n os Esta d os Unidos e e m p re sá rio in d u stria l n o M é xico, qu e tra b a lh a e m con ju n to com a e m p re sa Don Kin g P rod u ction s (H a u se r 1 986:95, 98); e a In te rn a tio n a l Boxin g Fe d e ra tion (1983), q u e re ce n te m e n te foi coloca d a sob in t e rve n çã o d a J u st iça d e p ois q u e se u s p rin cip a is d irig e n te s fora m a cu sa d os p or p ro m o t o re s fe d e ra is d e p ra tica r d ive rsos a tos d e corru p çã o (in clu sive a ve n d a se cre ta d e su a s cla ssifica -çõe s p a ra a lg u n s e m p re sá rio s). M a is re ce n te m e n te , e ssa s org a n iza -çõe s tê m e n f re n ta d o a com p e tiçã o d e um a g a m a d e pe q u e n a s “ fed e ra çõe s m u n d ia is” a u to-p rocla m a d a s, ta is com o a IBC , a WBO , a IBO e tc.

6 A é tica p rofission a l d o “ sa crifício” e o re g im e d e tre in a m e n to d os lu ta d o-re s p rofission a is sã o d e scritos e m d e ta lh e s e m ” Pu g s a t Work ” (Wa cq u a n t 1 995) e e m “ O s Trê s C orp os d o Lu ta d or Profission a l” (Wa cq u a n t 1998b ).

7 C om o ob se rva O rla n d o Pa tte rson (1 982:3 88), a im a g e m d os ossos se n d o b ica d os e d e sca rn a d os ta m b é m é u m te m a fre q ü e n te n a lin g u a g e m d os e scra vos d o m u n d o in te iro: “ Você m e com e u q u a n d o e u e ra ca rn e , a g ora você d e ve d e s-c a rn a r m e u s ossos” . O se n tim e n to d e e sta r se n d o “ s-com id o vivo” ta mb é m é u m a f o rma d e con sciê n cia com u m e n tre tra b a lh a d ore s m a n u a is q u e vive m e m con d i-çõe s d e su p e re xp lora çã o e m circu n stâ n cia s fisica m e n te d e g ra d a n te s. Exe m p los fa m osos sã o os ca sos d os m in e iros d e e sta n h o d a s te rra s a lta s d a Bolívia d e scritos p or J u n e N a sh (1979) e os tra b a lh a d ore s d a s u sin a s d e a çú ca r n o Bra sil a n a lisa -d os n o clá ssico e st u -d o -d e J os é Sé rg io Le ite Lo p e s , O Va p or -d o Dia b o ( 1 9 7 8 ). A fig u ra va m p ire sca d o su g a m e n to d e sa n g u e a p a re ce n a v ívid a d e scriçã o d o s tra -b a lh a d ore s im ig ra n te s a rg e lin os n a Fra n ça p or A-b d e lm a le k Sa ya d (1999).

(18)

P U TA S, ESC RAV O S E G A RA N H ÕES 1 4 4

9 Essa a ce ita çã o d óxica d a e xp lora çã o com o u m a con sta n te d a vid a é le va -d a a o e x tre m o p or u m p e so-le ve -d e se m p re g a -d o v in -d o -d e u m su b ú rb io n e g ro e p o b re d e C h ica g o, q u e vê n a a tu a l d e sig u a ld a d e , com u m fe rvor q u a se re l i g i o s o , u m in e qu ívoco sina l do su ce sso fu turo: “ C la ro, porq u e e u vou g a n h a r m e u d inh e i-ro, sa b e , q u a n d o for m in h a ve z d e g a n h a r d in h e iro e u vou g a n h a r. Tu d o q u e ve m m u it o fá cil n ã o va le a p e n a , e n tã o e u se i q u e te n h o q u e lu ta r, te n h o q u e l u t a r-l u t a r- r-l u t a r, te n h o q u e ir e m fre n t e se m n a d a , m a s e u e s c or-l h i e ssa vid a e s e i q u e va i se r d u ro” .

10Ao fin a l d e ssa e n tre vista , fe ita e m u m re sta u ra n te p e rto d a a ca d e m ia e m u m a n oite d e ve rã o, e sse b oxe a d or-m a la n d ro se ofe re ce u p a ra m e le va r a té o loca l on d e e le p rom ovia jog os d e a za r, e m a is ta rd e te n tou in siste n te m e n te m e ve n d e r vá ria s m e rca d oria s rou b a d a s, in clu sive u m re vólve r u sa d o (p or 150 d óla re s) e u m a su b m e tra lh a d ora n ova (p or 300 d óla re s).

11As (a u to)b io gra fia s d os ca m pe õe s, d e Pa p a J a ck J oh nson e J a ck De m p se y a té J oe Lou is, M u h a mm a d Ali e Osca r d e La Hoya , sã o re p e tiçõe s q u a se id ê n tica s d e sse te m a d a sin g u la rid a d e su p e r-h u m a n a e d o su ce sso in d ivid u a l d ia n te d e d ificu ld a d e s form id á ve is. N e ssa s h istória s d e vid a e m p a cota d a s, os b oxe a d ore s a p a -re ce m e m su a e ssê n cia com o os H ora tio Alg e rs d o corp o m a scu lin o [H ora tio Alg e r, n a scid o e m 1834 e fa le cid o e m 1899, a u tor a m e rica n o d e e stória s in fa n tis e m q u e os h e róis le va va m vid a s e xe m p la re s, lu ta va m con tra a p ob re za e a a d ve rsid a d e e a ca b a va m g a n h a n d o riq u e za s e h on ra ria s].

12O s lu ta d ore s b ra n cos torn a ra m se m a is va loriza d os e con om ica m e n te con -f o rm e se -fora m torn a n d o m a is e sca ssos, e sp e cia lm e n te n a s d ivisõe s d e p e sos m a is p e sa d os p a ra a s q u a is a s re m u n e ra çõe s sã o m a is a lta s.

(19)

P U TAS, ESC RAV O S E G A RA N H ÕES 1 4 5

Ref erências bibliográf icas

B O U R G O I S, Ph ilip pe . 1995. In Se arch of Re sp e ct: Se llin g Cra ck in El Ba rr i o. C a m b rid g e : C a m b rid g e Un ive rsity P re s s .

G O F F M A N, Ervin g . 1959. Th e Pre s e n t a -tion of Se lf in Eve ryd a y Life . H a r-m o n d s w o rth : Pen g uin .

H A U S E R, Th om a s. 1986. Th e Bla ck Lig h ts: In sid e th e World of Pro f e ssion a l Boxin g . Ne w York : M cG ra w -H i l l .

H O B S B AW M, Eric. 1984. “ Artisa n s a n d La b ou r Aristocra ts?” . In : Wo r k e r s : World s of La b ou r. N e w York : Pa n -th e on . pp . 252-272.

H O L Z E R, H a rry J . 1996. Wh a t Em p loye rs Wa nt: J ob Prosploye cts for Lloye ssEd -u ca te d Wo r k e r s. N e w York : R-u sse ll Sa ge Fou n d a tion .

L O P E S, J osé Sé rg io Le ite . 1978. O Va p o r d o Dia b o: O Tr a b a lh o d os O p e r á -rios d o Açúca r. Rio d e J an e iro: Pa z e Te rr a .

M A R X, Ka rl. 1956. Se le cte d Writin g s in Sociolog y a n d Socia l Ph ilosop h y (e d itad o p or Tom Bottomore e M aximilien Ru be l). N e w York: M cGra w -H i l l .

_ _ _ . 1964. Ea rly Wr i t i n g s (tra d u zid o e e d ita d o p or Tom Bottom ore ). N e w York: M cG raw -H ill.

M C L E O D, Ja y. 1994. A i n ’t N o M akin ’ It. B o u l d e r, C o.: We stview Pre s s . M I L L S, C . Wrig h t. 1940. “ Situ a te d

Ac-tion s a n d Voca b u la rie s of M otive ” . Am e rica n Sociolo g ica l Re vie w, 5: 9 0 4 - 9 1 3 .

M O O D I E, T. Du n b a r e N D AT S C H E, Vi-vie n n e . 1994. G oin g for G old: M e n , M in e s a n d M ig ra tion . Be rk e le y: Unive rsity of C a liforn ia Pre ss. N A S H, J u n e . 1979. We Ea t th e M in e s

a n d th e M in e s Ea t Us: De p e n de n cy

a n d Exp loita tion in Boliv ia n Ti n M i n e s. N e w York : C olu m b ia Un i-ve rsity Pre s s .

PAT T E R S O N, O rlan do. 1982. S l a v e ry an d Socia l De a th . C a m b rid g e : H a rv a rd Unive rsity Pre s s .

S A M M O N S, J e ff re y T. 1988. Beyon d th e Rin g : Th e Role of Boxin g in Ame ri-ca n Socie ty. Urb a n a a n d C h iri-ca g o: Unive rsity of Illin ois Pre s s .

S AYA D, A b d e lm a le k . 1999. La Dou b le Abse n ce . De s Illu sion s de l’Im m ig ré a u x Sou ffra n ce s d e l’Ém ig ré . Pa ris: Éd ition s d u Se uil.

S H A P I R O, M ich a e l. 1988. “O p p on en ts” . In : J . C . O a te s e D. H a lp e rn (e d s.), Rea ding th e Fig hts. N ew York : Pre n-tice-Ha ll Pre ss. p p. 242-249. S T O L L E R, Robe rt J . e L E V I N E, I. S. 1993.

Com in g Attra ction s: Th e M a kin g of an X-Ra te d Vi d e o. Ne w Ha ve n : Ya l e Un ive rsity Pre s s .

U.S. SENAT E. 1992. H e a rin g s on Corru p -tion in Profe ssion a l Boxin g b e fore th e Pe rm a n e n t Com m itte e on G ov-e rn m ov-e nta l Aff a i r s. 102n d Con g rov-e s s . Wa sh in g ton : G ove rn m e n t Prin tin g O ffice.

WA C Q U A N T, Loïc. 1995. “ Pu g s a t Wo r k : Bod ily C a p ita l a n d Bod ily La b or a m on g Profe ssion a l Boxe rs” . B o d y an d Socie ty, 1(1):65-94.

_ _ _ . 19 97. “ Porn Exp ose d ” . Bod y a n d S o c i e t y, 3(1):119-125.

_ _ _ . 1998a . “ A Fle sh p e d d le r a t Wo r k : P o w e r, Pain , an d Profit in th e Prize -fig h tin g Econ om y” . T h e o ry a nd So-c i e t y, 27(1):1-42.

(20)

P U TA S, ESC RAV O S E G A RA N H ÕES 1 4 6

R e s u m o

Este a rtig o se b a se ia e m t ra b a lh o d e ca m po e m um a a ca d e m ia d e boxe loca -liza d a no g u eto ne g ro de C hica go. Bu s-ca e xp lis-ca r com o os lutad ore s pro f i s s i o-n a is p e rce b e m e e xp re ssa m o fa to d e s e re m m e rca d orias viva s, e com o se re con cilia m p ra tica m e n te com u m a im p ied osa exp lora çã o, de ma neira a cons e -g u ir m a n te r u m se n so d e in t e -g rid a d e p e ssoa l e d e fin a lid a d e m ora l. A e xp e riê n cia qu e o b oxe a dor te m d a exp lora -çã o d o seu corpo é e xpressa a tra vé s d e t rê s id iom a s a p a re n ta d os, o d a p ro s t i-t u içã o, o d a e scra vid ã o e o d a cria çã o a n im a l. Esse s trê s trop os e n u n cia m a c o m e rcia liza çã o im ora l d e corp os. M a s e ssa con sciê n cia é n e u tra liza d a p e la c re n ça n a n orm a lid a d e d a e xp lora çã o , n a “ ca p a cid a d e d e a çã o” d o e m p re s a -ria me n to d os corp os e n a p ossib ilid a d e d e ca sos in d ivid u a is exce p cion ais. Essa c r e n ça , in scrita n a s d isp osiçõe s corp o-rais d o lu ta d or, a ju da a p rod uzir o eq u ívoco cole tivo d e re con h e cim e n to a tra -vés do qual os boxeadores se tornam c ú m-p lices d e su a m-p róm-pria com erc i a l i z a ç ã o .

A b s t r a c t

Referências

Documentos relacionados

Este artigo é um exame crítico de três premissas que dominaram e viciaram o debate recente sobre divisão racial e pobreza urbana nos Estados Unidos: a) diluir a noção de gueto

Disse rta tion in An th rop olog y, Sta n ford Un ive rsity... Be rk e le y: Un ive rsity of C a liforn ia

[r]

Pa

PO LIAKO V, Lé on.. WO RSLEY, Pe

Prin ce ton : Prin ce ton. Un ive rsity

Foi um d

No caso do Brasil, por exemplo, uma sociedade na qual valores hierárquicos são importan- tes no cotidiano, a produção da liminaridade carnavalesca abre um espa- ço dentro do qual