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LAJOLO, Marisa_ ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira

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Academic year: 2021

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SÉRIE FUNDAMENTOS

Marisa Lajolo

Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo Professora da Universidade Estadual de Campinas

Regina Zilberman

Doutora em Letras pela Universidade de Heidelberg Professora da Pontifícia Universidade Católica — RS

LITERATURA

INFANTIL

BRASILEIRA

História ε

Histórias

6 edição editora Ática

(3)

Gerência editorial

Jiro Takahashi

Coordenação editorial

Benjamin Abdala Junior Samira Youssef Campedelli

Preparação de texto

Renato Nicolai

ARTE

Projeto gráfico (miolo)

Antônio do Amaral Rocha

Diagramação, composição e arte-final

Diarte — Composição e Arte Gráfica

CAPA: ARY NORMANHA

lmpressão e Acabamento Prol Editora Gráfica 7ª impressão

ISBN 978 8508 02841-2 2007

Todos os direitos reservados pela Editora Ática. Av. Otaviano Alves de Lima, 4400 CEP 02909-900 São Paulo, SP Tel.: (11) 3990-2100 Fax:(11)3990-1784

internet: www.atica.com.br www.aticaeducacional.com.br

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Sumário

1. Era uma vez um livro ... [ 9 ] ... 008

2. Escrever para crianças e fazer literatura [15 ] ... 014

3. Na República Velha, a formação de um gênero novo [ 23] ... 021

3.1 — República e Abolição no limiar de um novo tempo [24] ... 022

3.2 — Belle Époque à brasileira [26] ... 024

3.3 — A nacionalização da literatura infantil [30] ... 028

3.4 — O nacionalismo na literatura infantil [32] ... 030

3.4.1 — As imagens do Brasil [32] ... 030

3.4.2 — A paisagem brasileira [39] ... 037

3.5 — O modelo da língua nacional [41] ... 039

4. De braços dados com a modernização [45] ... 043

4.1 — Livros e autores [45] ... 043

4.2 — Décadas de reformas [48] ... 046

4.3 — Revoluções na cultura brasileira [51] ... 049

4.4 —A utopia do Brasil moderno e rural [55] ... 053

4.4.1 — Brasil: um grande sítio? [55] ... 053

4.4.2 — Aspirações e limites da vida rural [61] ... 059

4.5 — A pressão da fantasia e o motivo da viagem [64] ... 062

4.6 — Da matriz européia ao folclore brasileiro [68] ... 065

4.7 — Os temas escolares [75] ... ... 073

4.8 — Observações finais [81] ... ... 079

5. Entre dois brasis [85] ... 082

5.1 — Escritores em série [85] ... 082

5.2 — Décadas de democracia [88] ... 085

5.3 — Internacionalização e nacionalismo na cultura brasileira [91] ... 088

5.4 — A sobrevivência do Brasil rural [96] ... 093

5.4.1 — O império do café [96] ... 093 5.4.2 — Saudades do sertão [98] ... 096 5.4.3 — Sítio e aventura [101] ... 099 5.5 — O segundo eldorado [104] ... 101 5.5.1 — A epopéia bandeirante [104... 102 5.5.2 — A Amazônia misteriosa [10... 105 5.6 — A infantilizacão da criança [111] ... 109 5.7 — Os vultos da História [117] ... 115 5.8 Observações finais [119] ... 117

(5)

6. Indústria cultural & renovação literária [123] ... 120

6.1 — Escritores de hoje [123] ... 120

6.2 —Tempos de modernização capitalista [129] ... 126

6.3 — Literatura: artigo de consumo [131] ... 128

6.4 —A narrativa infantil em tom de protesto [136] ... 134

6.5 — A literatura infantil em ritmo de suspense [141] ... 138

6.6 — A ruptura com a poética tradicional [145] ... 143

6.7 —Em busca de novas linguagens [153] ... 151

6.8 — Balanço geral [160] ... 158

7. Cronologia histórico-literária [163] ... 161

Bibliografia [183] ... 180

Nota da revisora: os números que aparecem [ 9] referem-se a numeração original das páginas do

(6)

A Leonardo Arroyo. mestre e planalto

dos estudos de literatura infantil brasileira, dedicamos este livro.

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Fornecendo dados, emprestando livros, franqueando arquivo, enviando xerox, dando entrevistas e,

principalmente,

dando ouvidos e opiniões,

pessoas e instituições nos auxiliaram muito. Para elas nossos agradecimentos,

especialmente dirigido a Alcyr Bernardes Pécora

Ana Maria Domingues de Oliveira Clementina Chaikovske

Déa Portanova Barros Enid Yatsuda

Glória Maria Fialho Ponde Ilka B. Laurito

Ivete Zietlow Duro Isa Silveira Leal

João Wander/ey Geraldi Laura Constância Sandroni Jesus Antonio Duringan Magda Helena dal Zotto Márcia Cruz

Maria Beatriz Meurer Papaléo Maria da Glória Bordini

Maria Marlene Sirângeio e Silva Mirna Dietrich

Nézia Helena Riccardi da Silva Norma Soares Pinto

Odette de Barros Mott Rosa Maria Martins T. J. Der Regina Porto Castro

Ruth Rocha

Vera Teixeira de Aguiar Biblioteca Infantil Lucília Minssen Biblioteca Infantil Monteiro Lobato Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico — CNpq Editoras Ática, Brasil-América (EBAL),

Francisco Alves, Moderna, Pioneira e Vertente Fundação de Amparo à Pesquisa do

Estado do Rio Grande do Sul — FAPERGS

Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil

(8)

1.

Era uma vez um livro...

O historiador e o agente histórico escolhem, partem e

recortam, porque uma história verdadeiramente total os confrontaria com o caos. (...) Na medida em que a história aspira à significação, ela se condena a escolher regiões, épocas, grupos de homens e indivíduos nestes grupos, e a fazê-los aparecer, como figuras descontínuas, num contínuo, bom, apenas, para servir de pano de fundo. (...) A história não é, pois, nunca a história, mas a história-para. Parcial mesmo quando se proíbe de o ser, ela continua a fazer parte de um todo, o que é ainda uma forma de parcialidade CLAUDE LÉVI-STRAUSS*

No momento em que a produção de livros para crianças converte-se num dos

segmentos economicamente mais relevantes da indústria editorial brasileira e que a literatura infantil começa a integrar muitos currículos universitários e a tornar-se objeto de teses, congressos e seminários pareceu-nos oportuno um balanço do que se tem feito ao longo de quase um século, em termos de literatura infantil brasileira. Não são outros os objetivos e horizontes deste livro, que se propõe a sistematizar reflexões em tomo das obras para crianças publicadas no Brasil nos últimos cem ano.

Se cotejado com a longa história da literatura infantil européia, tema já de vários e profundos ensaios, e levando em conta que estudos

[9]

nacionais sobre literatura infantil são bastante recentes, seria de se esperar que o projeto deste livro esbarrasse em alguns impasses: uma quase completa ausência de bibliografia de apoio, falta de tradição de pesquisa do assunto, o desaparecimento e/ou a dificuldade de consulta a muitos textos.

Pareceu-nos interessante, como início de conversa, franquear ao leitor alguns recantos da oficina, na expectativa de que, explicitando o percurso, tais informações o deixem à vontade para estabelecer seu próprio itinerário no livro.

Uma análise cuidadosa da produção literária infantil brasileira (disponível em bibliotecas), em circulação desde o fim do século passado, permitiu-nos agrupar os textos em grandes ciclos, delineados de acordo com as relações que se podem _________

* LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo, Ed. Nacional/Edusp 1970.

(9)

propor entre essa produção literária infantil e seu contexto que, ainda que de forma vaga, podemos chamar de cultura brasileira.

Assim, cada uma das quatro unidades — do capítulo 3 ao capítulo 6 — se ocupa de um desses ciclos, associados a um plano histórico e cultural a que se integram e de onde se puxam os fios necessários para compreender os livros infantis nele surgidos. Esse panorama sócio-cultural, temos certeza, é tanto mais provisório, quanto mais nos aproximamos do presente, quando a vizinhança com o objeto pode empanar e distorcer a visão do observador. Assumir o risco do provisório, no entanto, foi necessário, porque um dos desafios era exatamente este: pensar nas obras infantis contemporâneas, sem seccioná-las dos textos que as antecederam. Acreditamos ser da dialética de uma perspectiva sincrônica e diacrônica que o trabalho do historiador e do crítico se enriquece.

Trata-se então de um itinerário longo, cheio de idas e vindas, para o qual convidamos os leitores. A história da cultura brasileira, principalmente no que toca à literatura, já se cristalizou em rótulos de períodos e movimentos, que se tornam mais ortodoxos e monolíticos, quanto mais se recua para o passado. Nessa medida, as indefinições do presente são fecundas: podem matizar e relativizar um pouco as feições por demais definidas do passado imediato ou remoto. No sentido inverso, o discurso crítico e histórico já consagrado para períodos anteriores pode emprestar sugestões mais seguras para a interpretação deste presente movediço e vivo. Mas este presente vivo e polimorfo, que transborda de critérios e conceitos, é ponto de chegada do que o antecedeu; e, se sua identidade específica não se entrega mediante uma contemplação microscópica, pode também ser alcançada através de avanços e recuos.

Ancoramos o percurso diacrônico cumprido pela literatura infantil brasileira no horizonte mais amplo da cultura nacional, privilegiando, no interior desse contexto mais amplo, a produção literária. Percorre por isso, todo este texto, um contraponto entre a literatura infantil e a não-infantil, na medida em que ambas compartilham a natureza de produção

[10]

simbólica que faz da linguagem sua matéria-prima e, dos livros, seu veículo preferencial.

Se esse contraponto não é comum, isto é, se todas as histórias literárias brasileiras até agora deixaram de incluir em seu campo de estudo a literatura infantil, nunca é demais frisar o peso circunstancial que o adjunto infantil traz para a expressão literatura infantil. Ele define a destinação da obra; essa destinação, no entanto, não pode interferir no literário do texto.

As relações da literatura infantil com a não-infantil são tão marcadas, quanto sutis. Se se pensar na legitimação de ambas através dos canais convencionais da crítica, da universidade e da academia, salta aos olhos a marginalidade da infantil.

(10)

Como se a menoridade de seu público a contagiasse, a literatura infantil costuma ser encarada como produção cultural inferior. Por outro lado, a freqüência com que autores com trânsito livre na literatura não-infantil vêm se dedicando à escrita de textos para crianças, somada à progressiva importância que a produção literária infantil tem assumido em termos de mercado e de oportunidade para a profissionalização do escritor, não deixam margens para dúvidas: englobar ambas as facetas da produção literária, a infantil e a não-infantil, no mesmo ato reflexivo é enriquecedor para os dois lados. Constitui uma forma de relativizar os entraves que se opõem à renovação da perspectiva teórica e crítica da qual se debruçam estudiosos de uma e outra. Se, por um lado, o paralelo entre a literatura para crianças e a outra pode funcionar como legitimação para a primeira, reversamente, o paralelo pode iluminar alguns traços da literatura não-infantil que, por razões várias, têm se mantido à sombra.

Os trabalhos sobre literatura infantil, via de regra, desconsideram que o diálogo de qualquer texto literário se dá, em primeiro lugar, com outros textos e tendem a privilegiar o caráter educativo dos livros para crianças, sua dimensão pedagógica, a serviço de um ou outro projeto escolar e político. Nossa perspectiva foi inteiramente outra: em momento nenhum levamos em conta a adequabilidade deste ou daquele livro para tal ou qual público ou faixa etária. Valendo-nos do contraponto entre a literatura infantil e a não-infantil, nossa hipótese é que, no diálogo que se estabelece entre as duas, a especificidade de cada uma pode ajudar a destacar o que a tradição crítica, teórica e histórica não tem levado em conta na outra. E como se a literatura infantil e a não-infantil fossem pólos dialéticos do mesmo processo cultural que se explicam um pelo outro, delineando, na sua polaridade, a complexidade do fenômeno literário num país com as características do nosso.

Circunscrever os recortes internos desses cem anos de literatura teve, por sua vez, outros problemas. Em primeiro lugar, foi necessário acompanhar o desenvolvimento da literatura infantil brasileira do ponto de vista da produção, tentando delimitar os pontos de contato entre aquele conjunto e as outras modalidades de objetos culturais. Por conseqüência,

[11]

deixamos de levar em conta os textos traduzidos que, majoritários ainda na década de 70, são absolutamente fundamentais para uma história da leitura infantil brasileira. Contudo, para este projeto, eles ingressam apenas como as fontes mais remotas ou mais próximas, dependendo do momento, que inspiraram os textos nacionais.

Além disso, por mais cuidado que se tome, a proposição de épocas ou períodos que pretendam balizar qualquer fenômeno, cuja manifestação transcorra e se altere ao longo do tempo, acaba, no limite, sendo arbitrária. As discussões ainda

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em pauta a respeito da periodologia da literatura brasileira exemplificam o que queremos dizer.

No caso, entretanto, deste estudo da literatura infantil, porque a vemos no contexto maior das manifestações culturais brasileiras, não houve como fugir à aura que certos episódios, certas datas e certos acontecimentos ganharam no discurso, que, perfazendo a crítica, a teoria e a história da literatura não-infantil, torna impossível ignorar o magnetismo que exerce, por exemplo, o ano de 1922, atraindo e afetando quase tudo que se produziu nas suas imediações.

Exemplo eloqüente disto no discurso histórico e crítico sobre a literatura brasileira não-infantil é a impropriedade de denominações como, por exemplo, a de pré-modernismo Etiquetando um período que abarca uma produção tão díspar quanto a de Euclides da Cunha, o último Machado de Assis, Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac e Monteiro Lobato (para ficarmos só nos nomes com garantia de ingresso na história oficial da literatura brasileira), ela dilui, na generalidade de sua denominação e na ótica necessariamente parcial que vê a Semana de Arte Moderna, de São Paulo, como ponto de chegada, o que quer que de divergente possa haver em cada um e em todos esses autores.

Mas infelizmente a consciência desses desvios é insuficiente para a ruptura com os códigos, as grandes datas, os marcos históricos e os mapas já traçados para o patrimônio cultural brasileiro. Rupturas como essas geralmente desembocam em outros códigos, datas, marcos históricos e mapas, por sua vez sujeitos às mesmas críticas.

Assim, se as segmentações propostas para o acervo literário nacional para crianças têm marcos muito vizinhos de algumas segmentações vigentes na diacronia da literatura brasileira não-infantil, vale apontar que, menos do que o desejo fútil da inovação, guiamo-nos pela especificidade de nosso objeto, extraindo do bojo mais interno de sua evolução os momentos em que as rupturas se configuraram possíveis e perceptíveis. A vizinhança de fronteiras, então, parece dever-se antes à identidade dos processos gerais de cultura e de história da qual compartilham os livros, infantis e não-infantis, que uma adesão inicial nossa à periodologia já consagrada.

É mister deixar claro também que o projeto de traçar uma história da literatura infantil brasileira não assume o compromisso de mencionar,

[12]

um a um, autores e títulos que perfazem essa mesma história. Mais do que um inventário de nomes, a história é uma interpretação. O ato de escolha que preside ao trabalho do crítico e do historiador da literatura já de per si excluiria — não do percurso de nossa reflexão, mas da citação, do estabelecimento de marcos e dos pontos de ruptura — muitos títulos e muitos autores.

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Outro tipo de investigação, comprometido com rastrear em detalhe quem escreveu o quê — trabalho indiscutivelmente relevante, aqui não cogitado, — poderá encontrar neste livro o mapa inicial para uma excursão pioneira de garimpo a textos e autores. Nesse sentido, nossa texto é uma espécie de armação provisória, andaime a ser refeito, à medida que outras pesquisas vierem completar lacunas e apontar distorções de interpretação. Nossa preocupação maior foi a análise de determinados momentos e certas tendências da produção literária brasileira para crianças. Por sua vez, as interpretações aqui propostas correspondem à investigação que foi possível fazer, nas quais apostamos até prova em contrário. E, ainda a propósito do mesmo assunto, uma última explicação: dada a fecundidade de escritores para crianças, sobretudo nos últimos trinta anos, a inclusão deste ou daquele autor, neste ou naquele ciclo, leva em conta o momento inicial de sua produção, ou então os momentos de ruptura de sua obra, sem se deter na totalidade de seus títulos.

A literatura infantil, orientada de antemão a um consumo muito específico e que se dá sob a chancela de instituições sociais como a escola, cria problemas sérios para o teórico e o historiador que dela se aproximam munidos dos instrumentos consagrados pela história e pela teoria literárias. Sem entrar nos aspectos teóricos da literatura infantil, assunto do próximo capítulo, vale notar que ela talvez se defina pela natureza peculiar de sua circulação e não por determinados procedimentos internos e estruturais alojados nas obras ditas para crianças. Na história da literatura infantil européia, são muitos os exemplos de obras, hoje consideradas clássicos para a infância, que, na sua origem, não continham essa determinação de público. Robinson Crusoé e Viagens de Gulliver são exemplos que ilustram a tese aqui colocada.

Mas, se o caráter infantil de uma obra talvez não se defina necessariamente por seus elementos internos, à medida que os livros para crianças foram se multiplicando, eles passaram a ostentar certas feições que, pela freqüência com que se fazem presentes, parecem desenhar uma segunda natureza da obra infantil. E o caso, por exemplo, da ilustração.

Se a literatura infantil se destina a crianças e se se acredita na qualidade dos desenhos como elemento a mais para reforçar a história e a atração que o livro pode exercer sobre os pequenos leitores, fica patente a importância da ilustração nas obras a eles dirigidas.

Ao lado disso, o visual, na vida contemporânea, ganha cada vez maior importância, tendo a vanguarda poética dos anos 50 incorporado à

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literatura a dimensão ótica do signo e o cuidado artesanal com a diagramação. Ou seja, no requinte da poesia concreta, faz-se presente o novo estatuto do visual não só no mundo moderno, como nas representações dele que se querem modernas.

(13)

Por sua vez, nos cem anos aqui estudados, o livro infantil brasileiro sofreu transformações, desde a importação pura e simples dos clichês com que se ilustravam as histórias traduzidas, até os sofisticados trabalhos gráficos de Ziraldo, Gian Calvi ou Eliardo França.

Todas essas são razões para que, ao refletirmos sobre a ilustração nos livros para crianças, esses passem, graças a ela, a constituir uma espécie de novo objeto cultural, onde visual e verbal se mesclam. No entanto, e apesar de tudo isso, este livro privilegia exclusivamente o nível verbal dos textos analisados. Incluir na nossa reflexão a dimensão gráfica dos livros exigiria o recurso a outros especialistas, o que tornaria o projeto inexeqüível.

Este livro, embora autônomo, se complementa por outro, em vias de publicação: uma antologia de documentos e textos, ilustrando, os primeiros, a tênue e esgarçada linha dos estudos históricos e teóricos da literatura infantil brasileira e exemplificando, os segundos, as tendências mais marcadas destes cem anos de literatura para a infância.

No entanto, as freqüentes citações de textos, no interior das análises, são suficientes para preservar a melhor tradição do ensino e pesquisa de literatura, que aponta o texto como ponto de partida e de chegada da teoria e história literárias.

Com o objetivo de facilitar consultas e reforçar visualmente a contemporaneidade de fatos históricos e culturais, o livro se encerra com um pequeno quadro cronológico que alinha episódios históricos, lançamentos de obras relevantes da literatura infantil brasileira e da não-infantil. Fica a critério do leitor não só ampliar o quadro, como proceder aos múltiplos inter-relacionamentos que ele sugere entre a série histórica e a literária, em particular a literária infantil.

A bibliografia, por último, elenca as obras consultadas durante a execução do trabalho de pesquisa. Colocada ao final, evita a recorrência contínua às notas de rodapé, reservadas apenas para a referência bibliográfica dos textos, de literatura infantil preferentemente, citados ao longo da exposição.

(14)

2.

Escrever para crianças

e fazer literatura

Traduzir uma parte Na outra parte

— que é uma questão de vida ou morte — será arte?

FERREIRA GULLAR* As primeiras obras publicadas visando ao público infantil apareceram no mercado livreiro na primeira metade do século XVIII. Antes disto, apenas durante o classicismo francês, no século XVII, foram escritas histórias que vieram a ser englobadas como literatura também apropriada à infância: as Fábulas, de La Fontaine, editadas entre 1668 e 1694, As aventuras de Telêmaco, de Fénelon, lançadas postumamente, em 1717, e os Contos da Mamãe Gansa, cujo título original era Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades, que Charles Perrault publicou em 1697. Mas este livro passou por uma situação curiosa que explicita o caráter ambivalente do gênero nos seus inícios. Charles Perrault, então já uma figura importante nos meios intelectuais franceses, atribui a autoria da obra a seu filho mais moço, o adolescente Pierre Darmancourt; e dedica-a ao delfim da França, país que, tendo um rei ainda criança, é governado por um príncipe regente.

A recusa de Perrault em assinar a primeira edição do livro é sintomática do destino do gênero que inaugura: desde o aparecimento, ele terá dificuldades de legitimação. Para um membro da Academia Francesa. escrever uma obra popular representa fazer uma concessão a que ele não

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podia se permitir. Porém, como ocorrerá depois a tantos outros escritores, da dedicação à literatura infantil advirão prêmios recompensadores: prestígio comercial, renome e lugar na história literária.

_______________

* GULLAR, Ferreira. Traduzir-se. In: _____Toda poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. p. 437-8.

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Perrault não é responsável apenas pelo primeiro surto de literatura infantil, cujo impulso inicial determina, retroativamente, a incorporação dos textos citados de La Fontaine e Fénelon. Seu livro provoca também uma preferência inaudita pelo conto de fadas, literarizando uma produção até aquele momento de natureza popular e circulação oral, adotada doravante como principal leitura infantil.

Contudo, os escritores franceses não retiveram a exclusividade do desenvolvimento da literatura para crianças. A expansão desta deu-se simultaneamente na Inglaterra, país onde foi mais evidente sua associação a acontecimentos de fundo econômico e social que influíram na determinação das características adotadas.

A industrialização consistiu no fenômeno mais geral que assinalou o século XVIII. Foi qualificada de revolucionária e classificou o período, porque incidiu em atividades renovadoras dentro dos diferentes setores do quadro econômico, social, político e ideológico da época. A rala produção artesanal multiplicou-se rapidamente, com o aparecimento de manufaturas mais complexas, tecnologias inovadoras e invenções recentes. Localizadas nos centros urbanos, as fábricas logo atraíram trabalhadores do campo, que vinham em busca de melhores oportunidades de serviço, O êxodo rural fez inchar as cidades, incrementou o comércio e incentivou meios de transporte mais avançados. Porém, mão-de-obra abundante significa igualmente falta de empregos, e os dois fatos, reunidos, produziram o marginal alojado na periferia urbana, os cinturões de miséria e a elevação dos índices de criminalidade.

À revolução industrial, deflagrada no século XVIII e, desde então, não mais sustada, se associam tanto o crescimento político e financeiro das cidades, como a decadência paulatina do poder rural e do feudalismo remanescente desde a Idade Média. A urbanização, por seu turno, se faz de modo desigual, refletindo as diferenças sociais: do lado de fora localiza-se o proletariado, constituído inicialmente pelas pessoas que haviam se mudado do campo para a cidade; no coração do perímetro urbano, a burguesia, que financia, com os capitais excedentes da exploração das riquezas minerais das colônias americanas ou do comércio marítimo, as novas plantas industriais que se instalam e a tecnologia necessária a seu florescimento.

A burguesia se consolida como classe social, apoiada num patrimônio que não mais se mede em hectares, mas em cifrões. E reivindica um poder político que conquista paulatinamente, procurando evitar confrontos diretos e sangrentos, como o que ocorre na França, em 1789, mas utilizando também essa solução, quando é o caso. Entretanto, é uma camada social pacifista, em princípio. Ou, por outra, procura tornar sua

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violência menos visível. Para isso, incentiva instituições que trabalham em seu favor, ajudando-a a atingir as metas desejadas.

A primeira dessas instituições é a família, cuja consolidação depende, em alguns casos, da interferência do Estado absolutista que, interessado em fraturar a unidade do poder feudal, ainda atuante, estimula um modo de vida mais doméstico e menos participativo publicamente. Esse padrão vem a ser qualificado como moderno e ideal, elevando-se como modelo a ser imitado por todos.

A manutenção de um estereótipo familiar, que se estabiliza através da divisão do trabalho entre seus membros (ao pai, cabendo a sustentação econômica, e à mãe, a gerência da vida doméstica privada), converte-se na finalidade existencial do indivíduo. Contudo, para legitimá-la ainda foi necessário promover, em primeiro lugar, o beneficiário maior desse esforço conjunto: a criança. A preservação da infância impõe-se enquanto valor e meta de vida; porém, como sua efetivação somente pode se dar no espaço restrito, mas eficiente, da família, esta canaliza um prestígio social até então inusitado.

A criança passa a deter um novo papel na sociedade, motivando o aparecimento de objetos industrializados (o brinquedo) e culturais (o livro) ou novos ramos da ciência (a psicologia infantil, a pedagogia ou a pediatria) de que ela é destinatária. Todavia, a função que lhe cabe desempenhar é apenas de natureza simbólica, pois se trata antes de assumir uma imagem perante a sociedade, a de alvo da atenção e interesse dos adultos, que de exercer uma atividade econômica ou comunitariamente produtiva, da qual adviesse alguma importância política e reivindicatória. Como decorrência, se a faixa etária equivalente à infância e o indivíduo que a atravessa recebem uma série de atributos que o promovem coletivamente, são esses mesmos fatores que o qualificam de modo negativo, pois ressaltam, em primeiro lugar, virtudes como a fragilidade, a desproteção e a dependência.

A segunda instituição convocada a colaborar para a solidificação política e ideológica da burguesia é a escola. Tendo sido facultativa, e mesmo dispensável até o século XVIII, a escolarização converte-se aos poucos na atividade compulsória das crianças, bem como a freqüência às salas de aula, seu destino natural.

Essa obrigatoriedade se justificava com uma lógica digna de nota: postulados a fragilidade e o despreparo dos pequenos, urgia equipá-los para o enfrentamento maduro do mundo. Como a família, a escola se qualifica como espaço de mediação entre a criança e a sociedade, o que mostra a complementaridade entre essas instituições e a neutralização do conflito possível entre elas.

Entretanto, a escola incorpora ainda outros papéis, que contribuem para reforçar sua importância, tornando-a, a partir de então, imprescindível no quadro da

(17)

vida social. E que, por força de dispositivos legais,

[17]

ela passa a ser obrigatória para crianças de todos os segmentos da sociedade, e não apenas para as da burguesia. Ajuda, assim, a enxugar do mercado um contingente respeitável de operários mirins, ocupantes, nas fábricas, dos lugares dos adultos, isto é, dos desempregados que, na situação de prováveis subversivos ou criminosos, agitavam a ordem social sob o controle dos grupos no poder.

A literatura infantil traz marcas inequívocas desse período. Embora as primeiras obras tenham surgido na aristocrática sociedade do classicismo francês, sua difusão aconteceu na Inglaterra, país que, de potência comercial e marítima, salta para a industrialização, porque tem acesso às matérias-primas necessárias (carvão, existente nas ilhas britânicas, e algodão, importado das colônias americanas), conta com um mercado consumidor em expansão na Europa e no Novo Mundo e dispõe da marinha mais respeitada da época.

Numa sociedade que cresce por meio da industrialização e se moderniza em decorrência dos novos recursos tecnológicos disponíveis, a literatura infantil assume, desde o começo, a condição de mercadoria. No século XVIII, aperfeiçoa-se a tipografia e expande-aperfeiçoa-se a produção de livros, facultando a proliferação dos gêneros literários que, com ela, se adequam à situação recente. Por outro lado, porque a literatura infantil trabalha sobre a língua escrita, ela depende da capacidade de leitura das crianças, ou seja, supõe terem estas passado pelo crivo da escola.

Os laços entre a literatura e a escola começam desde este ponto: a habilitação da criança para o consumo de obras impressas. Isto aciona um circuito que coloca a literatura, de um lado, como intermediária entre a criança e a sociedade de consumo que se impõe aos poucos; e, de outro, como caudatária da ação da escola, a quem cabe promover e estimular como condição de viabilizar sua própria circulação.

Neste sentido, o gênero dirigido à infância está no bojo dos processos que vêm marcando a sociedade contemporânea desde os primeiros sinais da implantação desta, permitindo-lhe indicar a modernidade do meio onde se expande. Tem características peculiares à produção industrial, a começar pelo fato de que todo livro é, de certa maneira, o modelo em miniatura da produção em série. E configura-se desde sua denominação — trata-se de uma literatura para — como criação visando a um mercado específico, cujas características precisa respeitar e mesmo motivar, sob pena de congestionar suas possibilidades de circulação e consumo.

Por outro lado, depende também da escolarização da criança, e isso a coloca numa posição subsidiária em relação à educação. Por conseqüência, adota posturas às vezes nitidamente pedagógicas, a fim de, se necessário, tornar patente sua

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utilidade. Pragmática igualmente por este aspecto, inspira confiança à burguesia, não apenas por endossar valores desta classe, mas sobretudo por imitar seu comportamento.

Esses aspectos geram, em contrapartida, a desconfiança de setores

[18]

especializados da teoria e da crítica literárias, quando confrontados à literatura infantil. Permeável às injunções do mercado e à interferência da escola, aquele gênero revela uma franqueza a que outros podem se furtar, graças a simulações bem-sucedidas ou a particularidades que os protegem de uma entrega fácil à ingerência de fatores externos. É essa sinceridade, resultante, todavia, de uma opção mercenária, que o tornam constrangedor: de um lado, porque tantas concessões interferem com freqüência demasiada na qualidade artística dos textos; de outro, porque denuncia que, sem concessões de qualquer grau, a literatura não subsiste como ofício. Deixa claro que a liberdade de criação é relativa, e que é enquanto relatividade — fato que abre lugar para a mediação do leitor e/ou do público no processo de elaboração de um texto — que a literatura conquista seu sentido, pois somente assim se socializa, convivendo com aspirações comunitárias.

Esboça-se aos poucos a relevância da literatura infantil e de seu estudo. O interesse que desperta provém de sua natureza desmistificadora, porque, se se dobra a exigências diversas, revela ao mesmo tempo em que medida a propalada autonomia da literatura não passa de um esforço notável por superar condicionamentos externos — de cunho social e caráter mercadológico — que a sujeitam de várias maneiras. E como, ainda assim, alcança uma identidade, atestada pela permanência histórica do gênero e pela predileção de que é objeto pelo leitor criança, mostra que a arte literária circunscreve sempre um espaço próprio e inalienável de atuação, embora seja ele limitado por vários fatores.

Outras características completam a definição da literatura infantil, impondo sua fisionomia. A primeira delas dá conta do tipo de representação a que os livros procedem. Estes deixam transparecer o modo como o adulto quer que a criança veja o mundo. Em outras palavras, não se trata necessariamente de um espelhamento literal de uma dada realidade, pois, como a ficção para crianças pode dispor com maior liberdade da imaginação e dos recursos da narrativa fantástica, ela extravasa as fronteiras do realismo. E essa propriedade, levada às últimas conseqüências, permite a exposição de um mundo idealizado e melhor, embora a superioridade desenhada nem sempre seja renovadora ou emancipatória.

Dessa maneira, o escritor, invariavelmente um adulto, transmite a seu leitor um projeto para a realidade histórica, buscando a adesão afetiva e/ou intelectual daquele. Em vista desse aspecto, a literatura para crianças pode ser escapista, dando vazão à representação de um ambiente perfeito e, por decorrência, distante. Porém, pela mesma razão, poucos gêneros deixam tão evidente a natureza utópica da arte

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literária que, de vários modos, expõe, em geral, um projeto para a realidade, em vez de apenas documentá-la fotograficamente.

Esse fato, somado aos anteriormente citados, dão a entender que a literatura infantil padece do perigo do escapismo, da doutrinação ou

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de ambos. Todavia, por matizar essa aptidão. ou desejar aniquilá-la, ela assegura sua continuidade histórica. Esta, por seu turno, advém ainda de outro fator característico: sua permeabilidade ao interesse do leitor.

Apesar de ser um instrumento usual de formação da criança, participando, nesse caso, do mesmo paradigma pragmático que rege a atuação da família e da escola, a literatura infantil equilibra e, freqüentemente, até supera — essa inclinação pela incorporação ao texto do universo afetivo e emocional da criança. Por intermédio desse recurso, traduz para o leitor a realidade dele, mesmo a mais íntima, fazendo uso de uma simbologia que, se exige, para efeitos de análise, a atitude decifradora do intérprete, é assimilada pela sensibilidade da criança.

Ambas as propriedades citadas — a de projeção de urna utopia e a expressão simbólica de vivências interiores do leitor — não são necessariamente contraditórias, pois a visão do adulto pode se complementar e fortalecer com a adoção da perspectiva da criança. A contradição apresenta-se no momento em que a primeira opõe-se à segunda; contudo, é sob essa condição que a obra desmascara sua postura doutrinária e a decisão por educar.

Os dois pólos descritos configuram a tensão que direciona a produção ficcional para crianças e que se mostra como desafio ao escritor. Do deciframento do enigma emerge o texto criativo e se evidenciam as qualidades artísticas da literatura infantil, englobando-a ao setor mais geral da arte literária. Ao mesmo tempo, esclarece-se que, da determinação dos componentes tensionais de uma obra, nasce a possibilidade de sua análise e crítica.

Da solução pacífica desse conflito organiza-se igualmente a história do gênero no Ocidente. Do grande elenco de obras publicadas no século XVIII, poucas permaneceram, porque então era flagrante o pacto com as instituições envolvidas com a educação da criança. Mas, ao sucesso dos contos de fadas de Perrault, somou-se o das adaptações de romances de aventuras, como os já clássicos

Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, e Viagens de Gulliver (1726), de

Jonathan Swift, autores que asseguraram a assiduidade de criação e consumo de obras.

O século XIX inicia-se pela repetição dos caminhos bem-sucedidos: os irmãos Grimm, em 1812, editam a coleção de contos de fadas que, dado o êxito obtido, converte-se, de certo modo, em sinônimo de literatura para crianças. A partir de então, esta define com maior segurança os tipos de livros que agradam mais aos pequenos leitores e determina melhor suas principais linhas de ação: em

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primeiro lugar, a predileção por histórias fantásticas, modelo adotado sucessivamente por Hans Christian Andersen, nos seus Contos (1833), Lewis Carroll, em Alice no país das maravilhas (1863), Collodi, em Pinóquio (1883), e James Barrie, em Peter Pan (1911), entre os mais célebres. Ou então por histórias de aventuras, transcorridas em espaços exóticos, de preferência, e comandadas por

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jovens audazes; eis a fórmula de James Fenimore Cooper, em O último dos

moicanos (1826), Jules Verne, nos vários livros publicados a partir de 1863, ano de Cinco semanas num balão, Mark Twain, em As aventuras de Tom Sawyer (1876),

ou Robert Louis Stevenson, em A ilha do tesouro (1882). Por último, a apresentação do cotidiano da criança, evitando a recorrência a acontecimentos fantásticos e procurando apresentar a vida diária como motivadora de ação e interesse, conforme procedem o Cônego von Schmid, em Os ovos de Páscoa (1816), a Condessa de Ségur, em As meninas exemplares (1857), Louise M. Allcott, em Mulherzinhas (1869), Johanna Spiry, em Heidi (1881), e Edmond De Amicis, em Coração (1886).

Autores todos da segunda metade do século XIX, são eles que confirmam a literatura infantil como parcela significativa da produção literária da sociedade burguesa e capitalista. Dão-lhe consistência e um perfil definido, garantindo sua continuidade e atração. Por isso, quando se começa a editar livros para a infância no Brasil, a literatura para crianças, na Europa, apresenta-se como um acervo sólido que se multiplica pela reprodução de características comuns. Dentro desse panorama, mas respondendo a exigências locais, emerge a vertente brasileira do gênero, cuja história, particular e com elementos próprios, não desmente o roteiro geral.

(21)

3

.

Na República Velha,

a formação

de um gênero novo

Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé Comprida história que no acaba mais. (...)

Lá longe, meu pai campeava No mato sem fim da fazenda. E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE*

Se a literatura infantil européia teve seu inicio às vésperas do século XVIII, quando, em 1697, Charles Perrault publicou os célebres Contos da Mamãe Gansa, a literatura infantil brasileira só veio a surgir muito tempo depois, quase no século XX, muito embora ao longo do Século XIX reponte, registrada aqui e ali, a notícia do aparecimento de uma ou outra obra destinada a crianças.

Com a implantação da Imprensa Régia, que inicia, oficialmente em 1808, a atividade editorial no Brasil, começam a publicar-se livros para crianças; a tradução de As aventuras pasmosas do Barão de Munkausen e, em 1818, a coletânea de José Saturnino da Costa Pereira, Leitura para meninos, contendo uma coleção de

histórias morais relativas aos defeitos ordinários às idades tenras, e um diálogo sobre geografia, cronologia,

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história de Portugal e história natural. Mas essas publicações eram esporádicas (a

obra que se seguiu a elas só surgiu em 1848, outra edição das Aventuras do Barão

de Münchhausen, agora com a chancela da Laemmert) e, portanto, insuficientes

para caracterizar uma produção literária brasileira regular para a infância. _____________

*DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Infância In: Reunião 6. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio,

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3.1 — República e Abolição no limiar de um novo tempo

Nós nem cremos que escravos outrora Tenha havido em tão nobre país.

MEDEIROS E ALBUQUERQUE*

Como sistema regular e autônomo de textos e autores postos em circulação junto ao público, a história da literatura brasileira para a infância só começou tardiamente, nos arredores da proclamação da República, quando o país passava por inúmeras transformações. Entre elas, a mais visível foi a mudança da forma de governo: um velho imperador de barbas brancas cedeu o comando da Nação a um marechal igualmente velho, de iguais barbas igualmente brancas. Era a República que chegava, trazendo consigo e legitimando a imagem que o Brasil ambicionava agora: a de um país em franca modernização.

O novo regime, embora proclamado por um militar, teve nos bastidores a presença ativa e participante de civis, membros dos vários partidos republicanos regionais. Eles se empenhavam na consolidação de uma política econômica que favorecesse o café, cada vez mais o produto básico da pauta brasileira de exportações. Ainda durante a monarquia, adotaram posições abolicionistas, porque lhes interessava um modo de produção que substituísse de vez a mão-de-obra escrava pela assalariada, na medida em que a escravidão exigia um grande empate de capital: com a proibição do tráfico e as fugas cada vez mais freqüentes e irremediáveis, o capital necessário para manutenção e renovação da mão-de-obra negra era sempre maior.

Além disso, por essa mesma época, interessava à economia de países já industrializados, como a Inglaterra, e à incipiente indústria brasileira, a criação e desenvolvimento de nosso mercado interno. A Inglaterra

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(pela tendência expansionista própria do capitalismo) e a nascente indústria nacional (pela necessidade de sobrevivência) não poupavam esforços no sentido de patrocinar uma política favorecedora de várias camadas médias, consumidoras virtuais de sua produção.

Esses grupos intermediários da sociedade, ausentes durante o período colonial e ainda escassos durante o Império, tiveram uma formação diversificada. Provinham dos rescaldos de uma classe dominante fragmentada pelos sucessivos rearranjos da posse de terras; das levas de imigrantes que não se adaptaram às condições de trabalho da lavoura; e do crescente número de empregados direta ou

_______________

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indiretamente envolvidos na comercialização do café, que multiplicou o número de bancos e casas e exportadoras, ampliou o quadro do funcionalismo público, estendeu a rede ferroviária e aumentou o movimento dos portos. Esses segmentos, variados e flutuantes, começaram a compor a população das cidades, até aquele momento habitadas apenas pela rala administração e pelo comércio, e esporadicamente por fazendeiros a passeio, cujos filhos freqüentavam as raras escolas superiores, em São Paulo, Rio de Janeiro e Recite.

Decorrente dessa acelerada urbanização que se deu entre o fim do século XIX e o começo do XX, o momento se torna propício para o aparecimento da literatura infantil. Gestam-se aí as massas urbanas que, além de consumidoras de produtos industrializados, vão constituindo os diferentes públicos, para os quais se destinam os diversos tipos de publicações feitos por aqui: as sofisticadas revistas femininas, os romances ligeiros, o material escolar, os livros para crianças.

Esta, por assim dizer, prontidão e maturidade da sociedade brasileira para absorção de produtos culturais mais modernos e especificamente dirigidos para uma ou outra faixa de consumidores expressa-se exemplarmente no surgimento, em 1905, da revista infantil O Tico-Tico. O sucesso do lançamento, a longa permanência da revista no cenário editorial, a importância de suas personagens na construção do imaginário infantil nacional, a colaboração recebida de grandes artistas — tudo isso referenda que o Brasil do começo do século, nos centros maiores, já se habilitava ao consumo de produtos da hoje chamada indústria cultural.

Sendo, no entanto, os livros infantis e os escolares os que mais de perto nos interessam, cabe justificar a aproximação entre eles, acrescentando que, para a transformação de uma sociedade rural em urbana, a escola exerce um papel fundamental. Como é à instituição escolar que as sociedades modernas confiam a iniciação da infância tanto em seus valores ideológicos, quanto nas habilidades, técnicas e conhecimentos necessários inclusive à produção de bens culturais, é entre os séculos XIX e XX que se abre espaço, nas letras brasileiras, para um tipo de produção didática e literária dirigida em particular ao público infantil.

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3.2 — Belle Époque à brasileira

Os alfandegueiros de Santos Examinaram minhas malas Minhas roupas

Mas se esqueceram de ver Que eu trazia no coração Uma saudade feliz de Paris.

OSWALD DE ANDRADE*

Nas duas últimas décadas do século passado, a literatura brasileira estava mais encorpada e consolidada do que estivera no início do mesmo século XIX, ao tempo da independência recente e dos românticos. Como sugere Antonio Candido a propósito da literatura não-infantil, a partir do final do século XVIII, vários fatores viabilizaram a configuração de uma literatura brasileira, no sentido de que autores e obras já circulavam nas ainda precárias aglomerações que, em nome do ouro e da administração colonial, ocorreram em Minas Gerais e no Rio de Janeiro.

Até a chegada de D. João VI, em 1808, o suporte editorial (e até mesmo tipográfico) necessário para o assentamento de um sistema literário era, mais do que precário, inexistente. Decorre muito tempo, até que tipografias, editoras, bibliotecas e livrarias tornem o livro um objeto não tão raro, ao menos nos centros urbanos mais importantes.

Por volta da segunda metade do século XIX, a leitura de textos e autores brasileiros já constituía um hábito até certo ponto arraigado entre os privilegiados assinantes dos jornais, onde os escritores mais famosos colaboravam com crônicas e poemas, folhetins de romance e crítica literária. Figuras como Machado de Assis e Olavo Bilac, consagradas nas rodas mundanas e intelectuais, faziam da vida literária um ponto de referência para a vida cultural daqueles anos.

Nossa literatura, nos últimos anos do século XIX, era variada. Ao modelo impassível do poema parnasiano francês, responderam os poetas brasileiros, em particular Olavo Bilac, com uma poesia lapidar e cintilante, admiravelmente bem escrita, mas percorrida subterraneamente por uma corrente forte de lirismo. Esta encontrava adesão imediata na sentimentalidade e emotividade do público nacional, que sabia de cor seus versos e declamava-o sempre que se apresentasse a ocasião, conforme registram cronistas e historiadores daqueles tempos.

A prosa, abandonando o gosto açucarado das histórias românticas, abriu-se em leque: enveredou pelos submundos, ambientes malcheirosos _________________

* ANDRADE, Oswald de. Contrabando. In: Poesias reunidas. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966. p. 136.

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e moradias coletivas, como em O cortiço, de Aluísio Azevedo; ou corroeu e solapou os alicerces de instituições expressivas dos grupos dominantes,

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até então intocados pela crítica, feita então por Raul Pompéia, em O Ateneu. Desnudou os avessos do homem e da sociedade, ao menos daqueles homens, mulheres e instituições que tinham passado incólumes pelas narrativas românticas. Vêm à luz a mesquinhez e a hipocrisia dos comportamentos de uma burguesia até então legitimada pela imagem que dela forneciam os romances românticos. Dos subúrbios emigrou para os livros o cinzento da vida suburbana suada e sofrida, presente nas principais obras de Lima Barreto. Em resumo, afastados da cintilante vida social carioca, os vários brasis vão tendo seus modos de vida e suas histórias documentadas e tecidas na prosa de Euclides da Cunha, Simões Lopes Neto e Monteiro Lobato.

O resultado é um mosaico: o virtuosismo poético de Olavo Bilac, as vaguidades não menos rebuscadas dos simbolistas, a denúncia urgente e contorcida de Euclides da Cunha ou Raul Pompéia, o regionalismo de Monteiro Lobato, entre 1890 e 1920, configuram a produção literária brasileira em suas várias vertentes. Entre estas, mesmo as que se proclamavam (ou eram proclamadas) menos radicais assumiam como função dos projetos e dos textos a tarefa missionária de dar testemunho de seu país, atuando, por meio da literatura, no ambiente que desejavam transformar.

Nesse contexto cultural, e no horizonte social de um país que se urbanizava e modernizava, começam a sistematizar-se os primeiros esforços para a formação de uma literatura infantil brasileira, esforços até certo ponto voluntários e conscientes.

Em primeiro lugar, entre 1890 e 1920, com o desenvolvimento das cidades, o aumento da população urbana, o fortalecimento das classes sociais intermediárias entre aristocracia rural e alta burguesia de um lado, escravos e trabalhadores rurais de outro, entra em cena um público virtual. Este é favorável, em princípio, ao contato com livros e literatura, na medida em que o consumo desses bens espelha o padrão de escolarização e cultura com que esses novos segmentos sociais desejam apresentar-se frente a outros grupos, com os quais buscam ou a identificação (no caso da alta burguesia) ou a diferença (os núcleos humildes de onde provieram).

Mas teve percalços a modernização brasileira. Imposta de cima para baixo, não levou em conta as peculiaridades de uma sociedade que queria abafar, num projeto de renovação aparente, a realidade social de um país que recentemente abolira a escravidão e cuja economia não apenas se fundava na estrutura arcaica do latifúndio, da monocultura e da exportação de matérias-primas, como não tinha o menor interesse em modificar essa situação.

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O processo de reurbanização do Rio de Janeiro, levado a cabo pelo prefeito Pereira Passos, durante a presidência de Rodrigues Alves, e 26

[27]

euforicamente registrado na Gazeta de Notícias pela pena mundana de Figueiredo Pimentel, é exemplar de quão esfuziante e superficial era o projeto de modernização que empolgava as elites: atingia unicamente o centro da cidade, expulsando para a periferia a população pobre.

Além de o modelo econômico deste Brasil republicano favorecer o aparecimento de um contingente urbano virtualmente consumidor de bens culturais, é preciso não esquecer a grande importância — para a literatura infantil — que o saber passa a deter no novo modelo social que começa a se impor. Assim, também as campanhas pela instrução, pela alfabetização e pela escola davam retaguarda e prestígio aos esforços de dotar o Brasil de uma literatura infantil nacional.

Nesse clima de valorização da instrução e da escola, simultaneamente a uma produção literária variada, desponta a preocupação generalizada com a carência de material adequado de leitura para crianças brasileiras. E o que documenta Sílvio Romero, evocando, nos anos 80 do século passado, a precariedade das condições de sua alfabetização:

Ainda alcancei o tempo em que nas aulas de primeiras letras aprendia-se a ler em velhos autos, velhas sentenças fornecidas pelos cartórios dos escrivães forenses. Histórias detestáveis e enfadonhas em suas impertinentes banalidades eram-nos administradas nestes poeirentos cartapácios. Eram como clavas a nos esmagar o senso

estético, a embrutecer o raciocínio, a estragar o caráter. (1)

Nas lamentações da ausência de material de leitura e de livros para a infância brasileira, fica patente a concepção, bastante comum na época, da importância do hábito de ler para a formação do cidadão, formação que, a curto, médio e longo prazo, era o papel que se esperava do sistema escolar que então se pretendia implantar e expandir.

Em outro diapasão, o crítico literário José Veríssimo expressa de modo exemplar a crença nas virtudes do livro nacional. Reivindicava ele

um material escolar não só feito por brasileiros, o que não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores transladados, pelos poetas

reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime. (2)

E tantos alertas, denúncias e sugestões não caíram no vazio: o apelo foi ouvido. Intelectuais, jornalistas e professores arregaçaram as mangas e puseram

_____________

1. ROMERO, Sílvio. Prefácio, In: JANSEN, Carlos, trad. Robinson Crusoé. Rio de Janeiro, Laemmert, 1885. Apud CAVALHEIRO, Edgar. Monteiro Lobato. Vida e obra. v. 2. São Paulo, Ed. Nacional, 1955. p. 730-1.

(27)

mãos à obra; começaram a produzir livros infantis que tinham um endereço certo: o corpo discente das escolas igualmente reivindicadas como necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno.

[28]

Tratava-se, é claro, de uma tarefa patriótica, a que, por sua vez, não faltavam também os atavios da recompensa financeira: via de regra, escritores e intelectuais dessa época eram extremamente bem relacionados nas esferas governamentais, o que lhes garantia a adoção maciça dos livros infantis que escrevessem. Se isto, por um lado, pode explicar o tom gramscianamente orgânico da maioria dos contos e poesias infantis desse tempo, por outro, sugere que escrever para crianças, já no entre-séculos, era uma das profissionalizações possíveis para o escritor.

Tampouco os editores ficaram insensíveis ao novo filão que se abria para seus negócios, inevitavelmente magros num país de tantos analfabetos. Começaram a investir no setor infantil e escolar, a ponto de mais tarde Monteiro Lobato, procedendo de forma semelhante à frente da Companhia Editora Nacional, justificar o segundo plano da literatura em suas publicações, invocando o precedente da tradicional Livraria e Editora Francisco Alves.

A justificativa para tantos apelos nacionalistas e pedagógicos, estimulando o surgimento de livros infantis brasileiros, era o panorama fortemente marcado por obras estrangeiras. E nas duas últimas décadas do século passado que se multiplicam as traduções e adaptações de obras infantis; antes de 1880, circulavam no Brasil, aparentemente, apenas as traduções do na Europa bem-sucedido em vendas Cônego (Christoph) von Schmid: O canário (1856), A cestinha de flores (1858) e Os ovos de Páscoa (1860).

Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel são os que se encarregam, respectivamente, da tradução e adaptação de obras estrangeiras para crianças. Graças a eles, circulam, no Brasil, Contos seletos das mil e uma noites (1882),

Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888), As aventuras do celebérrimo Barão de Münchhausen (1891), Contos para filhos e netos (1894) e D. Quixote de la Mancha (1901), todos vertidos para a língua portuguesa por Jansen. Enquanto

isso, os clássicos de Grimm, Perrault e Andersen são divulgados nos Contos da

Carochinha (1894), nas Histórias da avozinha (1896) e nas Histórias da baratinha

(1896), assinadas por Figueiredo Pimentel e editadas pela Livraria Quaresma. Merecem destaque ainda, entre as traduções, a que João Ribeiro fez, em 1891, do livro italiano Cuore e, a partir de 1915, as traduções e adaptações que, coordenadas por Arnaldo de Oliveira Barreto, constituíram a Biblioteca Infantil Melhoramentos.

Data igualmente do final do século passado o livro Contos infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira. Em 1904, Olavo Bilac e Coelho

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Neto editam seus Contos pátrios e, em 1907, Júlia Lopes de Almeida lança as

Histórias da nossa terra. Em 1910, surge a narrativa longa Através do Brasil, de

Olavo Bilac e Manuel Bonfim; sete anos depois, Júlia Lopes de Almeida retoma com uma história: Era uma

[29]

vez. Em 1919, com o romance Saudade, Tales de Andrade praticamente encerra

esse primeiro período da literatura infantil brasileira.

Quanto à poesia, Zalina Rolim, que já em 1893 excluíra alguns poemas infantis no seu livro Coração, publica, em 1897, o Livro das crianças, fruto de um plano em parceria com João Köpke. Em 1904, Olavo Bilac edita suas Poesias

infantis e, em 1912, Francisca Júlia e Júlio da Silva lançam Alma infantil.

Datam também desse mesmo período as antologias folclóricas e temáticas, estas últimas geralmente com o objetivo de constituírem material adequado para celebrações escolares: A festa das aves (1910), de Arnaldo Barreto, Ramon Roca e Teodoro de Morais, Livro das aves (1914), de Presciliana D. de Almeida, A árvore (1916), de Júlia Lopes de Almeida e Adelina Lopes Vieira. Entre as antologias folclóricas, destaca-se o trabalho de Alexina de Magalhães Pinto, que publicou, em 1909, Os nossos brinquedos, em 1916, Cantigas das crianças e do povo e Danças

populares e, em 1917, os Provérbios populares, máximas e observações usuais,

obra em que anexou um “Esboço provisório de uma biblioteca infantil”.

São essas as obras — e esse o contexto, do qual trazem fortes marcas — que estavam disponíveis para a leitura da infância brasileira, em particular daquela infância que, freqüentando escolas, preparava-se para ser o amanhã deste país que, como então já se dizia, era visto por suas elites como o país do futuro.

3.3 — A nacionalização da literatura infantil

De noite, na mesa de jantar, à luz do lampião belga que pendia do teto, eram freqüentes estas conversas:

— Papai, que quer dizer palmatória?

— Palmatória é um instrumento de madeira com que antigamente os

mestres-escolas davam bolos nas mãos das crianças vadias...

— Mas aqui não é isso.

O pai botava os óculos, lia o trecho, depois explicava:

— Pelo assunto, neste caso, deve ser castiçal. Parecido, não? Como um ovo com

um espeto!

Minutos depois, a criança interrompia novamente a leitura.

— Papai, o que é caçoula?

— Caçoula, que eu saiba, é uma vasilha de cobre, de prata ou de ouro, onde se

queima incenso.

(29)

O pai botava os óculos de novo e lia, em voz alta: “O bicho de cozinha deitou água fervente na caçoula atestada de beldroegas, e asinha partiu na treita dos três mariolas.

Depois de matutar sobre o caso, o pai tentava o esclarecimento: Caçoula deve ser panela... Parecido, não?

E a mãe, interrompendo o crochê:

— A final, por que não traduzem esses livros portugueses para as crianças

brasileiras?

AFONSO SCHMIDT*

Os textos que justificam as queixas de falta de material brasileiro são representados pela tradução e adaptação de várias histórias européias que, circulando muitas vezes em edições portuguesas, não tinham, com os pequenos leitores brasileiros, sequer a cumplicidade do idioma. Editadas em Portugal, eram escritas num português que se distanciava bastante da língua materna dos leitores brasileiros.

Esta distância entre a realidade lingüística dos textos disponíveis e a dos leitores é unanimemente apontada por todos que, no entre-séculos, discutiam a necessidade da criação de uma literatura infantil brasileira. Dentro desse espírito, surgiram vários programas de nacionalização desse acervo literário europeu para crianças.

O primeiro deles dá-se através de diferentes (e progressivas) formas de adaptação, tal como ocorre com os dois projetos editoriais que, praticamente, abrem e fecham o período: 1894, com seus Contos da Carochinha, o famoso Figueiredo Pimentel, cronista do jornal Gazeta de Notícias, inaugura a coleção Biblioteca Infantil Quaresma que, ao longo dos vários títulos, vai fazendo circular, entre a infância brasileira, as velhas histórias de Perrault, Grimm e Andersen. A partir de 1915, a editora Melhoramentos inaugura sua Biblioteca Infantil que, sob a direção do educador Arnaldo de Oliveira Barreto, publica corno primeiro volume de sua coleção O patinho feio, de Andersen.

Constitui, este último projeto, a retomada atualizada da idéia da Livraria Quaresma, na medida em que o coordenador da série era um pedagogo, homem ligado, pois, ao metiê escolar. E a escola, além de emprestar seu prestígio de instituição às histórias de fadas, é também o espaço onde se encontram os leitores-consumidores visados pelo projeto.

Sem querer cancelar a primogenitura de Figueiredo Pimentel em nossas letras infantis, cumpre não esquecer que, antes dele, outros autores se voltaram à tradução e adaptação de histórias para crianças. Tratava-se, no entanto, de

_____________

* Apud CAVALHEIRO, Edar. Monteiro Lobato. Vida e obra. v. 2. São Paulo, Ed. Nacional, 1955. p. 145-6.

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publicações esporádicas e de circulação precária na medida em que, antes da fase republicana, o Brasil não parecia comportar uma linha regular de publicações para jovens, sustentada por uma prática editorial moderna, como ocorreu com as séries confiadas a Figueiredo Pimentel e Arnaldo de Oliveira Barreto.

[31]

Entre esses pioneiros, destaca-se a figura de Carlos Jansen, que traduziu e adaptou para a Editora Laemmert, entre outros, Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusoé (1885) e As aventuras do celebérrimo Barão de

Münchhausen (1891). Das dificuldades e, conseqüentemente, dos méritos desse

trabalho de Jansen, falam, de um lado, as cartas de empenho e prefácios que ele solicitava a intelectuais do porte de Rui Barbosa, Sílvio Romero e Machado de Assis, cujo apoio parecia legitimar sua atividade em relação à literatura para jovens. De outro, os mesmos prefácios e cartas são unânimes em sublinhar o pioneirismo da iniciativa de Jansen, pretextando muitas evocações da precariedade das condições que, via de regra, presidiam o aprendizado e a prática de leitura daquele tempo, como o depoimento de Sílvio Romero, já transcrito.

3.4 — O nacionalismo na literatura infantil

De repente, a música tocou os primeiros compassos do hino nacional. Um vento brando, vindo do mar, agitou a bandeira brasileira, que estava no centro de um pelotão. A bandeira desdobrou-se, palpitou no ar espalmada, com um meneio triunfal. Parecia que o símbolo da Pátria abençoava os filhos que iam partir, para defendê-la.

E, então, ali, a idéia sagrada da Pátria se apresentou, nítida e bela, diante da alma de Anselmo. E ele, compreendendo enfim que sua vida valia menos do que a honra de sua nação, pediu a Deus, com os olhos cheios de lágrimas, que o fizesse um dia morrer gloriosamente, abraçado às dobras daquela formosa bandeira, toda verde e dourada, verde como os campos, dourada como as madrugadas de sua terra.

OLAVO BILAC e COELHO NETO*

3.4.1 — As imagens do Brasil

A adaptação do modelo europeu que nos chegava geralmente através de Portugal, nesse primeiro momento da literatura infantil brasileira, não se exerceu

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