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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE * [131]

6.2 — Tempos de modernização capitalista

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE * [131]

Os últimos vinte anos de literatura brasileira revelam, de um lado, a influência prolongada de nomes como João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, cujas obras continuam a circular e a constituir modelos do fazer literário. Por outro lado, os anos 60 consolidam a infra-estrutura necessária para a modernização de modos de produção e circulação literária que, a partir daí, atingem maior maturação e eficácia.

Os anos 60 e 70 multiplicam os capitais investidos em cultura, criando condições semelhantes às que, a partir dos anos 50, viabilizaram uma semiprofissionalização do escritor infantil e que agora começam a afetar a esfera da literatura não-infantil. A ebulição ideológica e política que permeava a discussão das reformas de base em que se empenhava o governo de Jango constituía atmosfera propícia para o estabelecimento de canais que servissem de mediação entre intelectuais e camadas populares. Vários escritores dedicam-se à produção de textos voltados para essas massas, tradicionalmente distanciadas da arte e da cultura burguesas, em particular da literatura.

Os Centros Populares de Cultura (CPCs) e o Movimento de Cultura Popular (MCP) representaram, entre 62 e 64, canais por onde se escoava, para um público reunido em comícios, passeatas e assembléias, a produção musical, teatral e literária, politicamente comprometida com valores e linguagem de esquerda.

Esse projeto artístico-ideológico trazia para a literatura poemas que denunciavam o latifúndio, a fome e o imperialismo, veiculados nas antologias

Violão de Rua: livros pequenos e baratos que já indicavam, a partir do título, o

desejo de romper os estreitos canais que, em nossa tradição, obstaram sempre o consumo popular da literatura. Ao lado da poesia libertária, publicações como os

Cadernos do Povo discutiam, numa linguagem bastante acessível, aspectos teóricos

das reivindicações populares, em títulos incisivos como O que é reforma agrária ou Quem é o povo no Brasil.

Mas a permeabilidade da cultura à temática esquerdizante não se limita à literatura. Filmes como Deus e o diabo na terra do sol (Gláuber Rocha), Cinco

vezes favela (CPC), músicas do CPC da UNE, como Subdesenvolvido (Carlos

Lyra) e peças como Brasil, versão brasileira, de Millor Fernandes, faziam com que repercutissem, em outras artes, a temática política e social.

A ingenuidade com que esse projeto transformava o poema, a peça ou a ______________

*DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Ao Deus Kom Unik Assão. In:___Obra Com´leta. 5.ed.Rio de Janeiro, Nova Aguilar,1974,p.428.

canção num instrumento de pedagogia política é um traço que aproxima essa produção cultural da literatura infantil, presa fácil de variados projetos de pedagogia ideológica.

A adesão a esse projeto de arte política supõe que o artista acredite na neutralidade da linguagem e na transparência do enunciado verbal. Neutralidade e transparência revestidas de retórica, instrumento a que

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tradicionalmente se costuma recorrer quando o que está em jogo é a adesão dos interlocutores: em particular daqueles poucos familiarizados com tradições culturais mais sofisticadas.

O resultado é o simplismo formal de quase todos esses textos: o abuso da redundância e o reforço de clichês são os recursos com que se tenta assegurar a legibilidade desses textos a grandes contingentes populacionais.

Outro, no entanto, é o clima da segunda metade dos anos sessenta, quando polícia e política suprimem os canais institucionais que permitiam a circulação da produção cultural do tipo acima descrito. A nova situação política do país exigia outras soluções para os artistas que quisessem tematizar o seu presente: lucros políticos imediatos estavam irremediavelmente comprometidos, muito embora as formas de controle de que se cercou o poder instalado no Brasil a partir de 1964, aprimoradas em 1968 pelo quinto Ato Institucional, tenham sido insuficientes para reprimir o tom esquerdizante de boa parte da produção cultural. É isso que observa Roberto Schwarz, quando, fazendo um balanço da cultura brasileira dos anos que se seguem a 64, constata que “a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data e mais, de lá para cá não parou de crescer” e que “apesar da ditadura de direita há(via) relativa hegemonia cultural da esquerda do país”.(1)

O romance Quarup (1967), de Antônio Callado, parece inaugurar novos rumos da ficção brasileira, em sua secular tarefa de retratar o Brasil. De 1967 para frente, avolumam-se propostas literárias alternativas e experimentais, constituindo seu conjunto a representação possível de um país cuja história política, regularmente sacudida por solavancos como foi o movimento militar de 64, talvez se deixe representar melhor como fragmento do que como continuidade.

Esse novo ciclo aberto por Quarup é marcado pela fragmentação, que se reflete, por exemplo, na disparidade dos aspectos que, isoladamente ou em conjunto, fazem convergir para a representação literária a multiplicidade de formas sociais em vigência no Brasil. Além disso, é também a fragmentação da linguagem de que se valem os escritores para essa representação, na medida em que se apropriam da multiplicidade de linguagens, que a produção mais moderna põe à disposição do escritor.

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A paródia histórica e a retomada da novela arcaica e de cordel fazem-se presentes em Galvez, imperador do Acre (1970), de Márcio Souza, A pedra do

reino (1971), de Ariano Suassuna, Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo

Ribeiro e O grande mentecapto (1979), de Fernando Sabino. O estilhaçamento do texto narrativo leva a Avalovara (1973), de Osman Lins, Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, A festa (1976),

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de Ivan Ângelo, Reflexos do baile (1976), de Antônio Callado. A apresentação de nossa história mais recente, através da alegoria ou do realismo que não evita a representação da brutalidade e da violência, ocorre em A máquina extraviada (1967), de José J. Veiga, Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo, Bar D.

Juan (1971), de Antônio Callado, As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles, Fazenda modelo (1974), de Chico Buarque, Feliz ano novo (1975), de Rubem

Fonseca, Lúcio Flávio, passageiro da agonia (1975), de José Louzeiro. A investigação minuciosa e precisa de espaços brasileiros até então virgens de representação literária passa pelos Contos do mundo operário (1967), de Rubem Mauro Machado, A guerra conjugal (1969), de Dalton Trevisan, Tarde da noite (1970), de Luís Vilela, Mafra (1976), de Darci Ribeiro, Um negro vai à forra (1977), de Edilberto Coutinho. O filtro do fantástico e o surrealismo de O

pirotécnico Zacharias e O convidado (reeditados em 1974), de Murilo Rubião, ou

de A morte de D. J. em Paris (1975), de Roberto Drummond, ou ainda a reabilitação da biografia são alternativas que se oferecem aos ficcionistas.

Do ponto de vista das vanguardas e da crítica mais exigente, a literatura CPC costuma ser caracterizada como esteticamente ultrapassada já em seu nascimento. No entanto, por mais que a crítica hesite em atribuir valor literário à arte de protesto, os anos da literatura CPC parecem ter acenado com a possibilidade de subtrair o texto escrito à circulação restrita de um público de iniciados.

Retomando, talvez, essa vocação de democratizar o texto literário, os anos posteriores a 64 assistem à circulação de um grande número de obras que, mesmo sem o reconhecimento da crítica, criam, alimentam e fortalecem um público médio, indispensável para que a cultura literária assuma um perfil moderno e sem ranço, quer do mecenatismo, quer do paternalismo.

Os anos 70 assistem a uma reformulação completa do Instituto Nacional do Livro (INL), que passa a bancar número considerável de co-edições. Com isso, a política cultural do Estado afasta-se do anacrônico mecenatismo que fazia de cargos públicos a recompensa do escritor, e do financiamento do livro um favor pessoal. A partir de então, o Estado dá seu apoio à iniciativa privada, não mais favorecendo autores, mas grandes editoras, numa atitude análoga à que assume frente a vários outros ramos da indústria brasileira.

Correlatamente ocorre a migração dos escritores do funcionalismo público para o jornalismo e a publicidade, atestando a transformação da sociedade brasileira, agora mais complexa e moderna, que oferece novas e mais rendosas formas de profissionalização para o homem de letras, que põe seu know-how a serviço de uma forma de produção definitivamente capitalista.

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Os últimos vinte anos da literatura brasileira parecem marcados por novos estágios da modernização capitalista que, manifestando-se desde as instâncias econômicas e quantitativas da produção de livros, acaba por refletir-se também no perfil propriamente literário — mais característico de nosso tempo.

Data dos anos 50 o sucesso da crônica, um texto mais ligeiro, de interpretação fácil e que fisga o leitor desacostumado a grandes vôos literários: foi através de revistas de grande circulação como O Cruzeiro e Manchete que, há 30 anos, vários cronistas foram se tornando conhecidos.

Da mesma aproximação literatura-jornalismo parece nascer outra das tendências da literatura brasileira dos anos 70: o traço biográfico — próximo da notícia jornalística — presente no requinte alentado de Pedro Nava (Baú de ossos, 1972, Balão cativo, 1973,Chão de ferro, 1976, Beira mar, 1978), na ligeireza despojada de Gabeira (O que é isso, companheiro?, 1979, O crepúsculo do macho, 1980), na polêmica de Paulo Francis (Cabeça de papel, 1977, Cabeça de negro, 1978) e bem mais recentemente em Feliz ano velho (1982), de Marcelo Paiva.

Reforçando a trajetória do jornalismo para a literatura, os textos de Stanislaw Ponte Preta (Tia Zulmira e eu, 1961, Primo Altamirando e elas, 1962, Rosamundo

e os outros, 1963, Garoto linha dura, 1966, Febeapá 1, 1966, Febeapá 2, 1968 e Na terra do crioulo doido, 1968) teceram uma história deliciosa e bem pouco

ortodoxa do que foi a vida brasileira em meados da década de sessenta.

Configura-se assim a ironia — mesmo o humor ligeiro nascido na redação de jornal como forma de resistência bastante entranhada em nossa tradição cultural, extremamente inovadora e criativa, principalmente quando comparada à sisudez da literatura política anterior a 64, possibilitando também conciliar o projeto de falar a grandes contingentes com o projeto de representação crítica da realidade social brasileira. Isso estabelece uma ponte entre essa produção mais ligeira e novelas como O coronel e o lobisomem (1964), de José Cândido de Carvalho, ou de Dona

Flor e seus dois maridos (1967), de Jorge Amado, pois tanto o Vadinho de Jorge

Amado, como Tia Zulmira e o primo Altamirando, de Stanislaw Ponte Preta, ou Coronel Ponciano, de José Cândido de Carvalho, revelam, no avesso que são, o lado direito e intolerável da estrutura de dominação montada no Brasil dos arredores de 64.

A partir dos anos 70 se escreve muito: entre 1973 e 1979, o número de títulos editados no Brasil saltou de 7080 para 13 228 e o número de exemplares, de 166

milhões para 249 milhões, acompanhando, progressivamente, a expansão do ensino médio e superior, sem dúvida responsáveis pelo consumo de tantos livros.

Assim, não é apenas a literatura infantil que tem sua circulação e recepção marcadas pela instituição escolar. Também a literatura não-infantil, através da adoção de livros pelas escolas, visitas de autores e

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organização de feiras e semanas do livro, beneficiou-se muito da vertiginosa expansão de cursos universitários que, a partir de 70, proliferaram nas cidades médias e grandes.

Se Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto cruzaram firmes os anos 60, adentraram e encerraram os anos 70 com seu prestígio intocado de poetas maiores, a última década assistiu a uma reviravolta: o surgimento da poesia marginal.

Muitas vezes mal impressa, quase sempre curtíssima e de comunicação imediata com seu leitor, tematizando velhas perplexidades existenciais, vários poetas reúnem-se em grupos de nomes tão sugestivos como Sanguinovo, Poetasia ou Nuvem Cigana. E são esses grupos que, assumindo e controlando todas as etapas da produção literária, estão presentes desde a escrita do texto (muitas vezes coletiva) até sua produção gráfica e venda a leitores.

Das vanguardas dos anos 50, em particular da poesia concreta e de suas dissidências, essa poesia retoma o enxugamento do texto, despido de qualquer retórica verbal. E ainda em relação aos concretos, essa novíssima geração leva um passo adiante a reflexão e a prática de sua produção poética: enquanto o concretismo advogava a inclusão, no texto poético, da concretude gráfica do texto impresso e, de modo geral, a absorção pela poesia de uma técnica verbal aprendida na imprensa e nos meios gráficos, esses poetas marginais (enquanto marginais, isto é, enquanto não absorvidos pela indústria editorial) procuram caminhos alternativos para a circulação de seu texto, o que aponta para a onipresença da indústria editorial.

Numa outra forma de recusa ao convencionalismo do livro, a poesia emigrou para a música, transformando-se em letras de canção, com a benção de um poeta do porte de Vinícius de Morais. E nisso recupera tanto a vocação coletiva tão desejada pelos poetas do Violão de Rua, como uma linhagem mais ilustre, a dos poetas antigos que faziam da praça grega e do adro medieval das igrejas o ponto de encontro do poeta com seu povo.