• Nenhum resultado encontrado

6.4 — A narrativa infantil em tom de protesto

A rua envelhece muito os seus meninos. Não lhes permite a crença em contos de fadas e da vida. Ensina-os só a acreditar no conto-do-vigário. E assim mesmo para evitá- lo.

CARLOS DE MARIGNY*

Até os anos 50, o elogio do Brasil rural marcava nitidamente a maioria das histórias destinadas à infância. A década seguinte mostra a contrapartida: a emergência do Brasil urbano. No final do livro Aventuras do escoteiro Bila (1964), de Odette de Barros Mott, o protagonista transfere-se com a família para a cidade. Nessa migração, ele parece compartilhar do destino das mais significativas personagens dos livros infantis de hoje.

Se a trajetória de Bila reproduz o percurso da narrativa infantil, Isa Silveira Leal, desde o começo da década de 60, com sua série de Glorinhas, incorporou a vida urbana aos livros para o público jovem.

No entanto, a cidade dos livros de Isa é tão idílica e idealizada quanto a imagem da vida rural nos livros anteriores. Glorinha e as demais personagens dessa autora (exceção feita aos protagonistas de O menino de Palmares, 1968) vivem uma versão otimista da sociedade brasileira: participam do padrão de vida e dos mitos que a partir dos anos 50 norteavam o sonho das classes médias brasileiras: nenhuma crítica, nenhuma frincha na ensolarada paisagem social brasileira urbana que essa autora tece.

A ruptura começa a esboçar-se em 64, com Aventuras do escoteiro Bila. Apesar do sotaque bilaquiano que o elogio do escotismo traz para o livro, o desejo de migração para a cidade e as dificuldades por que passam os pequenos sitiantes apontam, se bem que de forma ainda tímida, para a ruptura de uma imagem otimista da sociedade brasileira. Bila muda-se para a cidade, onde freqüentará uma escola. Mas isso só ocorre graças à ajuda que seu padrinho, gerente de banco, promete à família:

— Sabe, nhá Tonica. o compadre me disse, enquanto os meninos estavam no

túnel, que Bila é muito esperto. O chefe dos escoteiros, Flávio, foi quem lhe falou de nosso filho, O compadre acha que ele deve ir para a cidade e estudar. Falei-lhe de nossa idéia de comprar uma granja, à entrada da cidade. Ele achou a idéia ótima. Disse

que nos faria um empréstimo através do banco.(2)

Em 1970, com a publicação de Justino, o retirante, da mesma autora, a crise social é documentada com mais rigor, na história do menino de doze anos que,

_____________

* MARIGNY, Carlos de. Lando das ruas. São Paulo, Brasiliense, 1975. p. 15.

perdendo pai e mãe, decide largar a terra em que vivia, reclamada pelo patrão. Em seu itinerário de retirante, ele abandona o sertão e chega a Canindé, cidade maior, onde fará o ginásio. Embora seus problemas só se resolvam graças à generosidade de Dona Severina, o texto é suficientemente complexo para registrar transformações profundas trazidas pela modernização econômica da sociedade brasileira. A viagem de Justino não é só geográfica: ele migra também de uma economia de

[137]

trocas para uma economia mais sofisticada, correspondente a uma vida onde as relações sociais são bem mais complexas:

Dona Severina aproxima-se dos vendedores, olha a mercadoria, examina-a, escolhe, pergunta o preço, pechincha. É toda uma cena desconhecida do menino. Nunca vira ninguém negociar assim. O pai plantava, colhia e dava dois terços para o patrão. O pouco que sobrava era deles. Com isso e mais uns peixinhos do rio, quando havia água, viviam. A mãe tecia a rede num rústico tear manual, depois cortava calças

para o menininho, e as costurava na sua máquina também manual.(3)

Canindé de São Francisco foi uma surpresa, tanto para o menino, como para Dona Severina. Acostumados com a vida simples, quase de fazenda de Croibero, onde todos se conheciam, amigos e parentes, não podiam imaginar tanta gente a caminhar, a passar uma pela Outra, estranhos e indiferentes. O movimento do trânsito, carrocinhas cheias de verduras, jegues com caçuás transbordantes de mangas, de cajus, de mandiocas, mesmo em tempo de seca. Que milagre seria esse? Abrir as torneiras e fazer jorrar água, que ia espirrar, fria e agradável? Tocar um botão e a escuridão se ir, a luz

iluminar tudo, como dia claro?(4)

Nesses dois livros de Odette, a realidade urbana constitui um mito, seja porque o livro se encerra antes de Bila mudar-se para a cidade, seja pela dimensão acanhada da cidade para onde Justino emigra. O registro de uma realidade urbana mais degradada só vai ocorrer em outro livro da mesma autora:A rosa dos ventos, de 1972.

Ao contrário das anteriores, essa história se passa em São Paulo, e é protagonizada por um grupo de jovens que mora na periferia paulistana e trabalha no centro da cidade. Vivem todos com famílias desfeitas, são pobres, têm de enfrentar o humor oscilante do patrão. As várias situações do enredo fazem o livro avançar um passo em relação aos anteriores, na medida em que o povo pobre e sofrido participa da história:

_______________

(3) MOTT, Odetie de Barros. Justino, o retirante. São Paulo, Brasiliense, 1970. p. 39. (4) Id. ibid. p. 77.

Faróis brincam de acender e de apagar. O bairro é de operários. Mais ônibus do que carros param em todos os pontos, despejando homens, mulheres, jovens, que parecem rolar pelas portas escancaradas. São iguais na simplicidade do trajar e no cansaço estampado no rosto. Ninguém sente ânimo para conversar. Após horas e horas de trabalho, a fome aperta seus estômagos vazios. Têm vontade de chegar, de se

atirarem na cama...(5)

Dona Noêmia, a vizinha, lava o coador, dona Míriam despeja o penico bem na porta, a porca, por que não faz o serviço em outro lugar, em particular? A porta é sua, mas o pequeno quintal pertence aos quatro moradores que ali se defrontam. No espelhinho colocado sobre o tanque de sua casa,

[138]

composta de quarto e cozinha, sala e banheiro fora, comum a todos (outra coisa que um dia terá todo seu, preto e dourado, com aquelas torneiras bocas de leão a jorrarem

água) penteia seu cabelo cortado rente, última moda...(6)

A par de um retrato quase sem retoques da realidade urbana e da rnarginalização econômica vivida por crianças e jovens, o livro tematiza ainda outros problemas: uso de drogas, carência afetiva, tendências homossexuais. Se a última questão se resolve ao fim da história, quando Tico reencontra sua masculinidade através de Marta, outra personagem. Luís, envolve-se irremediavelmente com traficantes de drogas e se vicia em maconha.

Confirma-se, assim, que a vida urbana representada em A rosa dos ventos é mais isenta da idealização que presidia a representação da distante cidade que alimentava planos e sonhos de Bila e Justino. Esse livro, no entanto, não chega aos últimos desdobramentos da crise que documenta e acaba endossando a tese ingênua de que a sociedade moderna oferece, aos que se esforçam, oportunidade de ascensão social, através de personagens como Marta ou Maria José, que prosseguem nos estudos e progridem no emprego.

A partir desse livro, o submundo urbano de menores abandonados se faz presente em muitas obras: na dicção coloquial carioca de Lando das ruas (1975), de Carlos de Marigny, no registro rápido e nervoso do dia-a-dia de meninos de rua em Pivete (1977), de Henry Correia de Araújo, no menino do morro que procura simbolicamente A casa da madrinha (1978), de Lygia Bojunga Nunes, na história de Coisa de menino (1979), de Eliane Ganem, ou no lirismo de Os meninos da rua

da Praia (1979), de Sérgio Caparelli.

Em 1977,Pivete, de Henry Correia de Araújo, radicaliza a representação da vida de crianças pobres numa cidade grande. O livro é amargo e não tem happy

end. Enfatiza a ausência de nomes próprios das personagens, referidas apenas por

apelidos, como o da personagem que dá nome ao livro. Esse processo de ___________

(5) MOTT, Odette de Barros. A rosa dos ventos. São Paulo, Brasiliense, 1972. p. 6 (6) Id. ibid. p. 49.

despersonificação é assumido e apontado pelo narrador:

Pivete não era Pivete. Foi batizado Francisco Arruda. Mas no morro o chamavam Chiquinho Capeta. Ficou sendo Pivete porque era o menor de todos e

porque na cidade acabou sendo Pivete mesmo.(7)

Igualmente direta e crua é a descrição do espaço urbano onde transcorre a história:

No morro do Acaba-Mundo não tinha água, não tinha luz, não tinha

escola. No morro só tinha barracos feitos com tábuas de caixotes e muita pobreza.(8)

[139]

A descrição é incisiva e redundante, nivelando em frases rápidas e coloquiais a degradação do ambiente físico, das relações familiares e da aparência das personagens:

Minhoca era uma minhoca. Muito alto, muito magro. muito pálido. Não escutava nada com o ouvido esquerdo e tinha uma cicatriz na perna direita. Quando era pequeno, vivia comendo terra. No Acaba-Mundo disseram pra mãe dele que o Minhoca comia terra porque devia ter muito bicho na barriga. A mãe deu lombrigueiro

pra ele e o bicho não saiu. Então ela desistiu. (9)

Mais do que a história de um pivete, o livro é a história de pivetes: Paulão, Chico Manco, Rabo de Arraia e Disparada são menores abandonados que, no dia-a-dia de uma cidade grande, vivem como podem. Por mais que a vida marginal os tenha marcado, no entanto, a história preserva alguns traços de ingenuidade infantil perante a engrenagem social, à qual os meninos atribuem uma espécie de vocação assistencialista:

... eu quero que o Disparada seja preso porque os guardas vão ver que ele está muito doente. Aí eles não levam ele para a cadeia. Levam para o hospital. Dão injeção,

dão remédio e depois soltam. (10)

O choque, no entanto, entre essa ingênua idealização de um Estado humanitário e a brutal realidade do quase linchamento de Disparada é inevitável, e aproxima Pivete de obras não-infantis dos anos 70, como as de Rubem Fonseca,

____________

(7) ARAÚJO, Henry Correia de. Pivete. Belo Horizonte, Comunicação, 1977. p. 11. (8) Id. ibid. p. 6.

(9) Id. ibid. p. 10. (10) Id. ibid. p. 41.

Ignácio de Loyola Brandão e Renato Tapajós, que mergulham fundo na violência urbana.

Com essas narrativas que tematizam pobreza, miséria, injustiça e marginalidade, o cenário urbano passa a ocupar o lugar central da narrativa infantil contemporânea. E na desmistificação da cidade, perdem também a aura as cidadezinhas interioranas e os espaços rurais: Uma cidade fora do mapa (1976), de Eliane Ganem, e Cão vivo leão morto (1980), de Ary Quintella, parecem ilustrar a impossibilidade desses textos infantis alimentarem qualquer ilusão de paraíso. Tanto a cidadezinha que Mariana e todos os habitantes querem que “entre no mapa”, quanto a vida em contato com a natureza que termina com a morte do índio Juan abatido como bicho parecem sugerir o compromisso dessa vertente da narrativa infantil contemporânea com a denúncia de uma organização social que tem, nas concentrações urbanas, um de seus sintomas mais visíveis.