• Nenhum resultado encontrado

4.4.2 — Aspirações e limites da vida rural

Nunca pensei que ela acabasse!

Tudo lá parecia impregnado de eternidade

MANUEL BANDEIRA*

O espaço rural e a natureza, enquanto cenário e temática, não foram descobertos pelos escritores estudados. A literatura infantil, desde seu aparecimento, na Europa moderna, mostrou preferência particular pelo mundo agrícola como local para o transcurso de ações. Isso se deve ao aproveitamento, desde o início, de narrativas de origem folclórica ou contos de fadas de proveniência camponesa como matéria-prima para a (re)criação literária. Também converteram-se em literatura infantil as fábulas e outros relatos, isto é, as formas simples, como as denomina André Jolles, gêneros que apelam ao ambiente rural e a personagens vinculadas ao campo, tenham aparência humana ou animal.

[61]

Esse acervo terá forte influência na formação da literatura infantil brasileira, assimilado através das adaptações que, no século XIX, se fizeram no país. E esse processo não se interrompe quando os escritores se mostram mais criativos e inventam suas próprias narrativas. Pelo contrário, o modelo subsiste com grande _____________

* BANDEIRA, Manuel. Evocação do Recife. In: ...Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro,J.Olympio, l966.p. 117.

solidez, ao gerar os similares nacionais.

Viriato Correia é um dos autores em que se encontram versões de histórias de bichos e de homens passadas em espaços campestres, embora este último termo não mais designe uma propriedade rural com características aproximadas às de instituições vigentes na economia brasileira — tais como sítio, fazenda, estância, chácara e sim algo bem mais difuso, mas, nem por isso, menos constante em nossa literatura, porque também presente em outros escritores da época, como Marques Rebelo e Arnaldo Tabaiá, em A casa das três rolinhas (1939), ou Érico Veríssimo, em Os três porquinhos pobres (1936).

A arca de Noé, de Viriato Correia, publicada em 1930, é representativa desse

grupo, sobretudo na primeira história, “A revolta do galinheiro”. O conto narra a revolução causada num galinheiro pelo Garnizé, que induz as galinhas a abandonarem o local e a buscarem uma existência mais livre. A maioria acompanha o fogoso chefe, ficando na chácara apenas um galo e algumas galinhas, todos velhos. Logo, porém, os revoltosos são atacados pela raposa, que deixa poucos sobreviventes. Estes decidem retornar imediatamente ao lugar de origem, sendo recebidos com admoestações pelo galo que permaneceu.

A história tem evidente sentido conformista, mostrando a sabedoria dos mais idosos e o valor da acomodação e segurança. Destinada a crianças, desautoriza-as de imediato, pois propõe que a inventividade e o espírito aventureiro e criador são apanágio de indivíduos frágeis, como é frágil o leitor perante o mundo adulto, cujos comportamentos e valores são, segundo o texto, seguros e sábios.

O conto se aproxima da fábula, seus componentes assumindo um claro sentido analógico: o Garnizé está para a criança, como o galo está para o adulto e as galinhas, para todos aqueles que se entusiasmam perante líderes inflamados, inexperientes e arrogantes.

Além disso, a história vale-se de animais e de um espaço muito próximo àquele que aparece nas narrativas de Tales de Andrade e Lobato: a chácara e seus habitantes domésticos. Esta é uma experiência de pequena propriedade rural, embora as dimensões variem: pode alargar-se em campo ou em algo mais ilimitado, como a floresta, cenário de A casa das três rolinhas, de Marques Rebelo e Arnaldo Tabaiá, história na qual se verifica a mesma crítica às idéias mais arrojadas dos jovens; ou encolher para quintais e casas de campo, como as que se encontram nos livros de Erico Veríssimo, Menotti del Picchia ou Lúcia Miguel Pereira, com conseqüências específicas, segundo se analisará mais adiante.

[62]

Todavia, em textos como o de Viriato Correia, o sítio perde em qualidade. Sua configuração, ainda que simbólica, deixa de ser fruto de uma concepção ou de um projeto social, conforme se constatou nos autores primeiramente examinados. O sítio é esvaziado de uma direção utópica e passa a deter um significado moral que

revolta seus moradores, como o Garnizé: o enclausuramento, a falta de perspectiva existencial e o horizonte doméstico. Esses atributos coincidem com a vivência infantil, o que, se é revelador por um lado, por outro não resgata o significado do espaço da obra, uma vez que o elemento liberador vem a ser negado e mesmo rejeitado pelo predomínio de uma fala dogmática e inquestionável.

Cazuza, do mesmo Viriato, publicada em 1938, não se localiza no mesmo

plano, devido às inversões procedidas pelo autor, que determinaram uma modificação na ótica com que o mundo rural pode ser representado na literatura brasileira para crianças. A mudança aparece nos aspectos a seguir enumerados:

a) o escritor opta pela cena realista, evitando símbolos e analogias, assim como o trânsito entre o mundo histórico e o fantástico:

b) a apresentação toma a forma de memórias, de modo que o objeto narrado está distante no tempo (correspondeu à infância do narrador) e no espaço (o narrador vivia no Rio de Janeiro quando redigiu o livro);

c) o protagonista passa por diferentes estágios que acompanham, de um lado, seu progressivo amadurecimento, e, de outro, seu paulatino afastamento do ambiente interiorano;

d) a separação do meio original corresponde a um progresso nos estudos e a uma maior intimidade com a vida escolar; no início a escola é intolerável, mas, à medida que a personagem se muda do campo para a cidade, ela melhora e o menino passa a gostar, de maneira crescente, da experiência estudantil;

e) o livro não idealiza personagens, nem lugares; pelo contrário, critica instituições como a escola, e certas atitudes cegas, como o patriotismo oco e o militarismo.

Essa postura crítica provém do distanciamento que o narrador adota diante dos fatos narrados, o que se deve um pouco a seu deslocamento espacial e temporal: escreve, adulto e do Rio de Janeiro, as recordações da infância vivida no interior do Maranhão. O alvo dessa crítica é a escola, principalmente como aparece na primeira parte do livro, que enfatiza sua faceta mais autoritária e cruel. A crítica, porém, não se atenua quando o menino Cazuza vem a estudar em colégios de maior prestígio, como o internato em São Luís. Torna-se mais camuflada, é certo; mas não deixa de revelar como a instituição serve ao poder, porque depende desse. E denuncia o paternalismo enquanto único meio eficiente de contornar os desequilíbrios e os preconceitos vigentes na sociedade.

O fato de que a crítica à escola esmoreça em indignação quando o protagonista se transfere do sertão para a cidade mostra que. se ela

[63]

acompanha espacialmente a trajetória do menino, dirige-se antes a leitores com experiência predominantemente urbana. Vale dizer, destina-se a pessoas para quem

a narrativa de acontecimentos rudes no interior seria chocante por desconhecida, e não por conhecida em excesso. Desse modo, o livro não deixa de repetir o feito de Raul Pompéia, em O Ateneu (1888), denunciando os descalabros da instituição educativa. Mas com uma modificação substancial: Pompéia dirige-se àqueles que passaram por uma experiência semelhante, enquanto Viriato Correia, ao se referir a fatos e atitudes que o estudante conheceria (como os privilégios que recebiam os alunos oriundos de famílias ricas, tema da última parte de Cazuza), modera sua revolta e prefere uma saída conciliatória, adotando, em última instância, o mesmo paternalismo com que a alta burguesia brindava os menos afortunados assunto de crítica em muitas passagens do livro.

Pela mesma razão é o meio rural, rude e inculto, o ambiente apresentado com mais detalhe ao leitor. E a partir da situação deste que a realidade é mostrada, porque corresponde ao lugar onde se instalou o narrador desde a ruptura familiar original representada pela escola. Esse fato determina mudanças significativas, porque o universo rural, distante e superado cronológica e ideologicamente, prescinde de idealizações para ser recuperado, tal como ocorrera em Saudade. Tampouco assumirá uma índole integradora, como na obra de Lobato, pois, também para esse caso, a distância temporal é o sintoma da superação daquele contexto agrário e de sua inexeqüibilidade enquanto alternativa econômica e social.

Cazuza, a despeito de sua orientação ufanista, pedagógica e moralista, atinge

um resultado original e único em nossa produção literária para crianças, rechaçando as ilusões campestres e denunciando o trajeto irreversível da história. Não chegou a ser um livro com seguidores; mas nem por isso o marco que representa, nos seus defeitos e virtudes, é negligenciável, valendo a pena contrapô-lo às obras de seu tempo, que levaram avante caminhos conhecidos e veredas já domesticadas da vida rural brasileira.