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4.5 — A pressão da fantasia e o motivo da viagem

Na história procurei não cair em três armadilhas comuns nas histórias infantis de que me lembro: nada de tom piegas ou sentimental; nenhuma referência concreta ao chamado mundo real (é um conto “maravilhoso”); nenhuma distinção precisa entre crianças e adultos.

GRACILIANO RAMOS*

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* SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. p. 136.

O elogio da vida rural não impede a constatação de sua falência paulatina, de um lado porque o espaço onde ela transcorre assume, de modo crescente, um significado abstrato; de outro, porque a presença da vida urbana vai deixando marcas profundas. Se, no primeiro caso, sucede uma transferência do real sensivelmente verificável para o simbólico apreensível apenas pelo intelecto, no segundo dá-se o inegável triunfo da história, embora esta não seja saudada como a desejável que finalmente chegou.

O triunfo da história motiva uma reação contrária na forma de um novo esforço de superação, que coincide, nos livros a seguir citados, com uma opção escapista: todas as personagens, crianças na sua maior parte, não se satisfazem com seu cotidiano e almejam suplantá-lo, o que se viabiliza por meio de uma viagem. Esta, por menos imaginária que possa parecer, tem resíduos oníricos: porque, ou transcorre durante a noite, ou não tem testemunhas, ou, após o término dela, os meninos “acordam” de um modo ou outro. Além disso, ela guarda do sonho sua mais exata significação: a de realização dos desejos.

Entre os livros de Menotti del Picchia e os de Érico Veríssimo, a semelhança é mais que uma coincidência: em Viagens de João Peralta e Pé-de-Moleque (1931) e As aventuras do avião vermelho (1936), os heróis são fascinados por aviões e aventuras aéreas lidas em obras de ficção. E, motivados por essa atração, simultaneamente tecnológica e literária, eles acabam realizando seus anseios através da obtenção do objeto desejado — o avião (de brinquedo, na narrativa de Érico) — e da fuga de casa, atravessando os reinos mais diversos: o espacial, o subterrâneo e o aquático. Os meninos dão vazão a seu imaginário, que exige o abandono do lar, cuja vida prosaica é insatisfatória, e iniciam um percurso por regiões mágicas, as quais são mais interessantes que a existência doméstica limitadora.

Por sua vez, a intervenção das crianças no mundo da fantasia é muito reduzida, principalmente nos livros de Érico Veríssimo, em que apenas em raras ocasiões os heróis conseguem, por seus próprios recursos, resolver os problemas, passando a depender então de um auxiliar adulto ou não alcançando sair de sua posição inicial. Nas histórias de Menotti del Picchia, essa situação se modifica: os meninos, ainda que mais cerceados pelos adultos (sobretudo em No país das

formigas (1932), onde o Camundongo de Ouro é um superego atento e persistente,

à moda do Grilo Falante que acompanha Pinóquio, na obra de Collodi), têm condições de intervir no mundo dos pais, quando, repetindo as façanhas de João e Maria, trazem para casa a riqueza que, até aquele momento, faltava.

Tanto na ficção de Érico, como na de Menotti, a fantasia é estimulada pelo aborrecimento doméstico, simbolizado pelos ambientes fechados em que as histórias começam, como, por exemplo, o chiqueiro

que Lingüicinha, Salsicha e Sabugo (de Os três porquinhos pobres) querem abandonar. A mesma proporção entre opressão e desejo de fuga se manifesta nos livros de Graciliano Ramos e Lúcia Miguel Pereira. Também nestes, a vontade de sanar o mal é corporificada pela viagem — ou seja, pelo abandono do ambiente que provoca desagrado. Todavia, as duas histórias, respectivamente A terra dos

meninos pelados (1939) e Fada menina (1939), diferem das já analisadas.

Enquanto, em Érico e Menotti, as crianças não apreciam a vida doméstica e saem em busca de emoções, o que as conduz a sucessivas aventuras, de onde retornam sem terem sofrido grandes modificações interiores, Raimundo e Dora, protagonistas das histórias de Graciliano Ramos e Lúcia Miguel Pereira, são vítimas de discriminação constante: o menino, por ter a cabeça pelada e os olhos de cores diferentes; a menina, por ser pequena. O mal é mais profundo e se concretiza no físico das personagens. Entretanto, mesmo entre Dora e Raimundo o sofrimento é diferente, pois ela poderá crescer e mudar; mas ele terá de conviver com sua diferença, suportando-a, sem se considerar infeliz.

Se a raiz do problema difere, as soluções se assemelham: Dora, durante a noite, transfigura-se numa poderosa fada que resolve as mais diferentes e complicadas dificuldades. E, Raimundo, como não pode se modificar, muda os outros: seu Tatipirun é a terra onde todos têm as cabeças peladas e olhos de cores diferentes, sendo também o local “onde as ladeiras se abaixam e os rios se fecham para a gente passar”.(6) O paraíso, revelado a essas crianças, confunde-se com o

exercício do poder, para Dora, e a obtenção da igualdade, para Raimundo.

Nos textos de Graciliano Ramos e Lúcia Miguel Pereira, o imaginário se mescla ao ideal a que almejam os heróis; mas, como sua realização implica luta, ele acaba por configurar um projeto político. Por isso, proporciona uma prática que se revela no final das aventuras: Dora soluciona sabiamente seu conflito com a Rainha do Mar, salvando, ao mesmo tempo, o menino João das acusações infundadas. E Raimundo decide-se por uma ação esclarecedora, que, se o beneficia, repercute também em favor dos outros meninos.

Assim, o mais traumático no início é igualmente o mais liberador no final, indicando a transformação e superação da necessidade escapista. A solução do conflito coincide com o término da aventura, o que impede a continuação da história. Esse aspecto diferencia mais uma vez os dois grupos de narrativas; pois é condição do prosseguimento da aventura a persistência da vida doméstica insatisfatória, que pode ser abandonada sem constrangimentos. Entretanto, quando o problema é mais profundo, a ação por espaços originais é insuficiente, e só o enfrentamento direto da dificuldade vivida pode satisfazer.

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(6) RAMOS, Graciliano. A terra dos meninos pelados. 5. ed. Rio de Janeiro, Record, 1982. p. 58. [66]

A diferença de propósito e de encaminhamento do tema e das personagens explica a separação entre os dois grupos de histórias e indica os rumos que essa modalidade de narrativa assumirá doravante. Seu traço mais marcante aponta para uma oposição entre o real e a fantasia, corporificada a última pelo imaginário infantil, povoado pelos desejos insatisfeitos a que cabe dar forma e solução por meio da atividade ficcional. Esta, por sua vez, prefere em geral o tema da viagem, remontando ao modelo épico sempre tão eficaz, por isso presente também nas obras de Antônio Barata, O livro dos piratas (1940), e Max Yantok, O pequeno

comandante (1933), que, desde o título, dão conta dos eventos emocionantes

propiciados pela vida marítima. E, como no caso da epopéia clássica, cria as condições de sua continuidade, renovando os motivos que deflagraram a aventura e optando, de certo modo, por uma rotatividade narrativa. É-lhe permitido, entretanto, resolver os problemas que estimularam a fantasia e, por decorrência, a ação aventureira; nesse caso, acaba legitimando a vida doméstica, tolerável agora em virtude da pacificação interior do protagonista principal.

A literatura infantil brasileira, elaborando ficcionalmente seus modelos narrativos e heróis, funda um universo imaginário peculiar que se encaminha em duas direções principais. De um lado, reproduz e interpreta a sociedade nacional, avaliando o processo acelerado de modernização, nem sempre aceitando-o com facilidade, segundo se expressam narradores e personagens. Para tanto, circunscreve um espaço preferencial de representação — o ambiente rural — o qual passa a simbolizar as tendências e o destino que experimenta a nação, quando não significa, na direção contrária, a negação dos mesmos processos e a idealização de um passado sem conflitos. De outro lado, dá margem à manifestação do mundo infantil, que se aloja melhor na fantasia, e não na sociedade, opção que sugere uma resposta à marginalização a que o meio empurra a criança. De um modo ou de outro, enraíza-se uma tradição — a de proposição de um universo inventado, fruto sobretudo da imaginação, ainda quando esta tem um fundamento social e político. Esta tradição dá conta da faceta mais criativa da literatura para crianças no país, no período agora examinado.

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