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5.2 — Décadas de democracia

CARLOS LYRA

O aparecimento de uma nova geração de poetas e ficcionistas na década de 40, mais especificamente a partir de 1945, contrariou o Modernismo em alguns aspectos: foi discreto, sem manifestos, nem festivais; e explorou caminhos literários que se opunham, em alguns casos, às conquistas da vanguarda de 22.

Na poesia, a reação foi mais evidente, porque os novos autores resgatavam uma linguagem mais solene e culta, alijada da literatura pelos líderes da Semana de Arte Moderna. Repunham, também, na condição de modelos para a composição poética, formas líricas, como o soneto, que pareciam definitivamente banidas dos redutos da criação artística.

Por causa disso, o grupo de poetas, batizado, em 1948, de Geração de 45, assumiu, desde o aparecimento, características contraditórias perante o panorama, àquelas alturas já consolidado, imposto pelo Modernismo. Considerado em contraposição ao núcleo organizador da Semana de Arte Moderna, em 1922, eles eram simultaneamente modernos, porque realizavam uma poética que se opunha às normas em vigor, e conservadores, porque reabilitavam padrões atribuídos à literatura parnasiana (valorização das formas métricas e ênfase no verso como unidade mínima do discurso poético) e simbolista (relevância dada aos recursos sonoros e posicionamento intimista do sujeito criador, que fala sobretudo de si e seu mundo interior). Acrescentem-se a isso dois fatos significativos: a poesia estava internacionalmente se orientando para essa

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nova posição; e os poetas modernistas modificavam seu discurso na direção de um maior formalismo e solenidade no tratamento da palavra literária, conforme indica o texto que se tornou emblemático, “Procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em A rosa do povo, em 1945.

Na ficção, o roteiro foi outro: na década de 40, estréiam em livro dois dos mais prestigiados ficcionistas da moderna literatura brasileira: Clarice Lispector, com Perto do coração selvagem, de 1944, e João Guimarães Rosa que, em 1946, com Sagarana, inicia o processo de renovação da prosa regionalista.

Em ambos, repercutem favoravelmente os procedimentos da vanguarda que o romance instaurara desde a década de 20, na Europa, sob a liderança de Marcel Proust, Virginia Woolf e James Joyce. As técnicas do fluxo da consciência e da fragmentação da cronologia permitem que a narrativa se dirija para o mundo íntimo do protagonista, dando vazão às suas culpas inconscientes e às aspirações de liberação.

Implanta-se a vanguarda do romance psicológico no Brasil, cujos seguidores são, entre outros, Autran Dourado, Osman Lins e Lígia Fagundes Telles, autores que começam a publicar entre 1945 e 1955. E, se o adentramento intimista rompe com o ciclo do romance realista dos anos 30, o caráter social da literatura é recuperado por outra via a do diálogo com um ouvinte imaginário, introduzido pelos protagonistas e narradores de Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, e A paixão segundo GH (1964), de Clarice Lispector, respectivamente, Riobaldo e GH, assinalando o apelo ao leitor e a porta de entrada ao universo ficcional.

O romance, a partir de 45, explora o veio da experimentação, tendo como matéria-prima o mundo interior do indivíduo. Mesmo o regionalismo se ressente dessa influência, uma vez que a valorização do espaço exterior que, na ficção de 30, coincidia com a ênfase na temática da seca nordestina (em Vidas Secas, 1938, de Graciliano Ramos, ou O quinze, 1930, de Raquel de Queirós, entre outros), cede a vez à introspecção das personagens, como acontece nos livros de Guimarães Rosa e Autran Dourado.

A alusão a esses escritores revela a outra modificação por que passou o regionalismo na literatura. Refletindo talvez a mudança de foco econômico, antes mencionada, do Nordeste para o Centro-Oeste, avulta uma ficção que tem Minas Gerais e Goiás como cenário favorito, provindo destas regiões os escritores ruralistas mais importantes, como, além dos mencionados, Mário Palmério, Bernardo Elis e José J. Veiga.

Diminuindo a importância temática do espaço, mesmo na novela regional, a ficção parece tender, de maneira geral, a desnacionalizar-se. Ou melhor, como na poesia, ela atenua as marcas da nacionalidade, tão pesquisada e flagrante na literatura precedente. Esse fenômeno caracteriza,

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de modo geral. desde a década de 40 até a abertura dos anos 60, cultura brasileira, que procura uma equiparação com as tendências vigentes na arte internacional.

Essa situação é verificável, em primeiro lugar, nos esforços por dotar a arte brasileira de sistemas de produção e circulação similares aos dos países desenvolvidos. Isso transparece nas iniciativas patrocinadas, em São Paulo, pelos empresários Franco Zampari e Francisco Matarazzo, quais sejam: a fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).

A primeira, em estilo hollywoodiano, visava à realização de filmes de qualidade, diferentes daqueles financiados pela Atlântida, no Rio de Janeiro. O TBC destinava-se à encenação de textos dramáticos de reconhecida qualidade artística, evitando as obras até então usualmente apresentadas ao público brasileiro, como comédia de costumes e o teatro rebolado. Também no mesmo sentido organiza-se a Bienal Internacional de Artes Plásticas, segundo os moldes da Bienal de Veneza, a mais importante exibição de artes plásticas.

Se a cultura erudita (cinema, teatro, artes plásticas) aumenta seus canais de produção e circulação e, como a literatura, passa por um processo de elevação de nível, a cultura de massas começa a dispor também de meios mais modernos, sofisticados e eficazes de veiculação. Assim, em 1950, Assis Chateaubriand inaugura, em São Paulo, a TV Tupi, tornando o Brasil o quarto país do mundo a adotar esse novo meio de comunicação. No ano seguinte, nasce a co-irmã, no Rio de Janeiro, e, em 1952, é implantada a TV Paulista, a que se seguem, em 1953, a TV Record, em São Paulo, e a TV Rio, no Distrito Federal.

Os jornais passam por uma reformulação gráfica. Exemplar é o Jornal do

Brasil, que lança uma diagramação mais dinâmica e que, com o Caderno B, ao qual

pertence o Suplemento Literário, abre suas páginas a contribuições culturais, a começar pela vertente mais avançada da poesia nacional, o concretismo.

Dinamiza-se também a produção de revistas semanais de informação e reportagem. O Cruzeiro vive seu momento de apogeu; e é lançada a revista

Manchete, inspirada nas similares Paris Match e Life, publicações que se enraízam

na vida brasileira. Implantam-se igualmente as revistas em quadrinhos americanas, lideradas por O Pato Donald, que a Editora Abril publica a partir de 1950. Desde o final da segunda guerra, elas acompanham a invasão de produtos industriais que os Estados Unidos enviam para o sul, convertendo-se no cotidiano das crianças urbanas e na encarnação do demônio para pais e professores habituados a leituras mais tradicionais.

Mas a literatura brasileira continua a sofrer a concorrência da edição maciça de obras de autores estrangeiros, que a Companhia Editora Nacional e a Globo publicam em coleções como a Terramarear, Para-todos ou Série Amarela, cujos assuntos são a aventura passada em cenários

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exóticos e distantes, a ficção científica, o crime e a investigação policial. Esses temas são igualmente veiculados pelos filmes e revistas traduzidas, como X-9,

Mistério Magazine de Ellery Queen e Detetive, configurando a convergência e

unidade das formas da cultura de massas, em que personagens, enredos e idéias transitam de um gênero a outro para assegurar, de modo solidário, a continuidade de seu consumo.

Esses novos fatos culturais repercutem em algumas características assumidas pela arte brasileira até o final dos anos 50, como a tendência geral à elevação de nível, que deveria patrocinar uma produção cultural comparável às das nações desenvolvidas: uma arte de exportação, digna de um país próspero e em ritmo acelerado de modernização. Mas, como sucedia à indústria, que substituía as importações pelo similar fabricado no Brasil, a arte copiava internamente modelos consagrados no exterior.

A Bienal Internacional, moldada no exemplo veneziano, a Vera Cruz, destinada a produzir filmes para serem premiados em Cannes (sonho que se realiza em 1953, com a premiação de O cangaceiro, de Lima Barreto, paradoxalmente, um filme que tematiza o subdesenvolvimento), explicitam de modo cabal esse desejo. Mas é o fato de que o mesmo acontece no âmbito da cultura de massas (não por acaso Chateaubriand restaura, em 1949, o Museu de Arte de São Paulo e, em 1950, inaugura a era da TV no Brasil) que evidencia, primeiramente, que o fenômeno alcançava setores diferenciados da arte brasileira. E que, em segundo lugar, essa nova orientação atendia especialmente os segmentos superiores da sociedade, dado o caráter elitista assumido, seja na cultura erudita (como mostram TBC, Vera Cruz e Bienal), como na cultura de massas, já que mesmo a TV tinha em vista o público originário das camadas elevadas, consumidoras prováveis das caras revistas semanais e dos aparelhos importados de televisão e hi-fi.

Nesse sentido, o concretismo, tendência dominante da poesia de São Paulo e Rio de Janeiro (onde a dissidência concretista rebatizou-se de neoconcretista), é exemplar, pois, ao desejar implantar uma “poesia de exportação”, retomando o

leitmotiv de Oswald de Andrade, no Manifesto Pau-Brasil, de 1924, denuncia o

anseio de equivalência que está no bojo das iniciativas mencionadas.

Por seu turno, a cultura popular, de extração urbana ou rural, passa para segundo plano. Da mesma maneira, o coloquialismo da expressão, assimilador, na escrita, de elementos do discurso oral, que fora plataforma e conquista do Modernismo, perde seu lugar. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de que ambos contradiziam o novo patamar de qualidade almejado: na chanchada, no teatro rebolado, no samba, predominam a improvisação e a gíria, faltando-lhes o refinamento e a erudição que facultassem a concorrência internacional. Depois, porque traziam consigo resíduos do período anterior, tendo sido as formas culturais urbanas promovidas pelo regime do Estado Novo, embora, durante aquela época, elas tivessem conservado o espírito crítico e o humor que

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permitiram sua sobrevivência e atração. Enfim, porque algumas expressões foram adotadas pela cultura de massas, que, alem de importar produtos estrangeiros, absorveu os valores oriundos ou representativos do povo, fazendo-os circular através dos novos recursos tecnológicos disponíveis.

Assim, distanciados da cultura erudita, que se refina e estiliza de modo crescente, e desprovidos da cultura popular, de que, até então, eram produtores, aos grupos urbanos e rurais mais humildes resta usufruir o que a cultura de massas, industrializada, lhes oferece: o tipo rural do Jeca Tatu, que transita para o cinema nos filmes de Amáncio Mazzaroppi; as figuras populares da vida carioca, que a chanchada da Atlântida reproduziu e o rádio acolheu, este através dos programas humorísticos de Haroldo Barbosa e Max Nunes; e o sentimentalismo da radionovela e da fotonovela, ambas, seguidamente, de procedência estrangeira.

No âmbito da cultura erudita, a direção internacionalista não foi duradoura. Pois os pressupostos desenvolvimentistas que a sustentavam se chocaram inevitavelmente com a sociedade desigual que vigorava para além dos planos pilotos de poesia e de metas de governos. A reação começa a transparecer no final dos anos 50, comandada pelo Teatro de Arena, de São Paulo. Encenando inicialmente peças que tematizam o cotidiano do proletariado paulista, como em

Eles não usam “black-tie “, de Gianfrancesco Guarnieri, o grupo evolui para uma

dramaturgia mais comprometida com a denúncia da exploração capitalista no Brasil, conforme se vê em Revolução na América do Sul, de Augusto Boal.

Como na política, renasce a veia nacionalista, com a tematização dos problemas nacionais e da formulação de soluções políticas para eles. O Cinema Novo, com o projeto de conciliar a pesquisa de qualidade, buscada pelo grupo da Vera Cruz, com a representação popular, mas diferenciando esta dos rumos adotados pela chanchada da Atlântida, sintetiza essa vertente. Mas a elaboração de um modelo artístico que expressasse a pobreza do país tanto está presente na música, que procura incorporar uma temática politicamente mais agressiva a uma melodia mais aproximada aos ritmos populares, sobretudo os rurais e nordestinos, como na poesia, que se deseja popular e revolucionária, conforme proclamam os participantes da série Violão de Rua, patrocinada pelos Centros Populares de Cultura (CPC), entidades filiadas à União Nacional dos Estudantes (UNE).

A literatura infantil, popularizada nas décadas de vigência da arte modernista, defronta-se agora com dois tipos de competidores, que podem sustar ou, ao menos, reduzir seu crescimento. De um lado, depara-se com o empenho pela elitização da cultura, ao menos daquela que circula entre as classes elevadas; isto a coloca, enquanto gênero considerado menor, na defensiva, tendo de depender de escritores sem maiores aspirações a glórias literárias, mas, ainda assim, eficientes na arte de capturar leitores assíduos. De outro, concorre, no gosto desses mesmos leitores,

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com a cultura de massas, que, dispondo de canais mais poderosos internacionais, avança de modo irreversível sobre os hábitos intelectuais de consumo do homem urbano.

A solução que encontra é propor-se como um front de combate a esse avanço, conforme exige a pedagogia da época, aliada aos interesses dos editores que desejam ampliar os negócios nesse setor da indústria cultural. Para atingir eficazmente esse objetivo, terá de encampar temas da ideologia em voga, para tanto contando com os recursos literários de que puder dispor.