• Nenhum resultado encontrado

Começa agora a floresta cifrada.

RAUL BOPP*

Por muito tempo a Amazônia foi tema exclusivo dos autores do norte, como Inglês de Sousa, que localizou a ação de suas novelas entre as regiões que somente no final do século XIX, com o apogeu da exploração da borracha, se incorporaram à economia brasileira. Os modernistas viram a Amazônia de modo diferente: ela encarnou o primitivismo buscado nos programas e manifestos, esvaziada de um plano histórico, mas carregada de magia e encanto. Nesse período, mesmo autores não totalmente identificados com o Modernismo, como Gastão Cruls, nos livros A

Amazônia misteriosa e A Amazônia que eu vi, não deixaram de aureolar em

mistério o sentimento emanado da floresta.

Até os anos 40, no entanto, a literatura infantil não recorreu ao material amazônico de cunho folclórico, nem encampou o projeto nacionalista de que o tema se revestia. O folclore utilizado pelos autores de livros infantis é de origem africana e ibérica, indicando sua procedência litorânea. A única exceção, já mencionada, foi o escritor amazonense Raimundo Morais, no livro Histórias

silvestres do tempo em que animais e vegetais falavam na Amazônia.

A partir dos anos 40, a Amazônia começa a interessar os autores voltados ao público juvenil. Mas as características das obras editadas indicam que elas não são caudatárias do programa modernista, e sim da influência da cultura de massas,

______________

* BOPP, Raul. Cobra Norato. ln:___ Cobra Norato e Outros poemas. Rio de Janeiro, Livr. São José, 1956. p20.

veiculada, internamente, pelo cinema, nos filmes senados, pelos livros de aventura e detetive, publicados pela Companhia Editora Nacional (Monteiro Lobato foi um dos tradutores mais assíduos e grande estimulador do gênero, desde os anos 30) ou pela Globo, e pelo rádio.

Neste sentido, é expressiva a produção de Jerônimo Monteiro. Seu primeiro livro, O ouro de Manoa (título original: O irmão do diabo), conta uma expedição à Amazônia, na busca de um tesouro. O tema se alinha ao veio dos livros de aventuras, e a narrativa emprega a estrutura de cortes em meio a ações palpitantes, que o escritor aprendera no cinema e aplicara no rádio, para o qual produzia novelas, sob o pseudônimo de Dick Peter.

A cidade perdida, publicada em 1948, na coleção Terramarear (junto com

um livro similar, Kalum, de Menotti del Picchia), confirma a aptidão de Monteiro à ficção de aventura, passada em terras distantes e selvagens. Mas o livro amplia o assunto, pois Sálvio, que, com Jeremias, planeja uma viagem ao norte, tem metas mais ambiciosas: deseja encontrar

[108]

cidade perdida dos atlantes (já mencionada em O ouro de Manoa), porque esse povo teria se constituído no núcleo gerador da civilização contemporânea.

Identificada como a matriz da humanidade, a Amazônia recupera a aura mítica que os modernistas lhe tinham atribuído. Por sua vez, essa sacralidade se propaga ao país e ao continente que a contêm, conforme expressa a profecia do Coronel Marcondes, um dos protetores dos expedicionários: “Um dia se há de fazer justiça à nossa terra, reconhecendo que daqui partiram as civilizações do mundo...”

(15) .

A sentença explicita o projeto nacionalista da obra, conferindo ao Brasil uma prioridade sobre as demais nações. A anterioridade é sinal de supremacia, situada tanto no passado, como no futuro, já que a regeneração da humanidade depende de um novo êxodo da célula original, conservada, até então, intocada e pura.

Se A cidade perdida resgata a representação mítica da região, Corumi, o

menino selvagem dá vazão à Amazônia real. Como no outro livro, o narrador, agora

um jornalista, desloca-se da cidade para a floresta; e esta se mostra estranha, perigosa e repleta seja de fenômenos espantosos (como a tempestade que enche o rio de tal modo, que eleva o barco onde está o herói ao topo de uma árvore), seja de tesouros escondidos, que os aventureiros descobrem nos confins da zona do rio Xingu.

Monteiro vale-se outra vez do motivo da busca de um tesouro milenar; mas ele, ao mesmo tempo, incorpora uma visão realista do ambiente, que se traduz na revelação da “miséria das populações marginais”, em contraste com a “pujança da _______________

mata”,(16) e na crítica à atitude racista e selvagem dos brancos, que liquidam cruelmente os índios que se atravessam em seu caminho.

Esse antagonismo entre os dois povos transparece no conflito criado pela presença de Corumi. Este é um menino branco, educado entre os índios (invertendo um estereótipo do período), o que se torna razão suficiente para Coriolano, o caçador, hostilizá-lo, mesmo quando o outro salva-lhe a vida e conduz os expedicionários até o tesouro escondido.

Respeitando o cânone do livro de aventuras, Monteiro não perde de vista dois aspectos: adota uma postura crítica em relação às suas personagens, evitando idealiza-las; e enraíza o tema, freqüentemente veiculado através da literatura de massas e de outros meios de comunicação de procedência internacional, a um ambiente brasileiro, tanto por integrá-lo a uma vertente em que a Amazônia é objeto de uma representação mítica, como por evitar o ufanismo que pode revestir e camuflar o material literário estrangeiro.

[109]

Essas obras de Jerônimo Monteiro atualizam o tom épico da ficção bandeirante. Mas a modernização não se deve apenas à transposição do assunto para o presente, e sim à realização dos objetivos de um gênero, o de aventuras, sem o caráter promocional que o vincula a programas específicos de um momento histórico e impede sua circulação na atualidade de qualquer leitor.

A aventura enquanto tema ainda apareceu em outras circunstâncias temporais: no futuro, em Três meses no século 81 (1947), também de Jerônimo Monteiro, ou no passado, em Aventuras de Xisto (1957), de Lúcia Machado de Almeida.

Três meses no século 81 é o primeiro livro nacional de ficção científica

dedicado ao público juvenil. Seu paradigma é A máquina do tempo, de H. G. Wells, cuja presença se faz notar desde o início da história, quando Campos, o narrador e principal personagem, consulta o escritor inglês e expõe-lhe seus planos de viagem ao futuro. Outro ponto de contato entre ambos diz respeito à visão do mundo do futuro: se ele é perfeito do ponto de vista tecnológico, habitam-no pessoas infelizes, física e intelectualmente debilitadas pela ausência de um projeto de vida. Acima desse paralelo, todavia, Monteiro é fiel à sua temática: na pesquisa das raízes da sociedade que encontra, descobre ser o povo a descendência, enfraquecida, dos atlantes. Com a ajuda de Campos, um grupo, mais revolucionário, reaprende a trabalhar junto à natureza. Por sua vez, a energia vital é novamente fornecida pela Amazônia, o que lhe permite retomar o mito amazônico e formular sua utopia regeneradora.

No desenho de uma civilização ideal, a dos atlantes, e de um espaço para a _______________

realização de um programa de vida, a Amazônia, Jerônimo Monteiro constrói uma obra que apresenta traços de parentesco com Lobato. A visão do futuro brasileiro distingue os dois escritores; mas aproxima-os a capacidade de produzir uma ficção original, sem se furtar à influência da cultura da época, pelo contrário, até deixando-se fertilizar por ela. Pela mesma razão, posicionaram-se perante a sociedade nacional, não apenas para a retratarem melhorada (tendência muito comum na literatura infantil) ou piorada, mas para esboçar um projeto de mudança, signo de suas expectativas diante do universo manifesto no e pelo texto.

Aventuras de Xisto não viaja ao futuro, mas ao passado. A abertura da obra

designa a época da ação, a Idade Média dos cavaleiros andantes e bruxos. Xisto participa do primeiro grupo, após passar por uma prova qualificatória, em que protege sua cidade de modo inteligente.

Sagrado cavaleiro, define sua tarefa: exterminar os últimos bruxos da terra, com a ajuda de Bruzo, seu companheiro de infância. A missão tem resíduos quixotescos, mas Xisto suplanta os perigos e é bem-sucedido, alcançando ao final a maturidade e o poder político. Para tanto, precisa passar por várias provas, a mais difícil consistindo em derrotar os bruxos na situação provisória e precária de pássaro; além disso, deve

[110]

superar a dependência familiar, sendo essa liberação simbolizada pela morte da mãe, Oriana.

O sucesso de Xisto, apesar das perdas com que convive, coloca-o, no fim da história, numa posição estável. Mas o êxito do livro determinou o retorno do herói, agora agente de aventuras interplanetárias, nos livros Xisto no espaço (1967) e

Xisto e o saca-rolha (1974), republicado posteriormente com o título de Xisto e o pássaro cósmico (1983).

A mudança temporal reflete talvez o esgotamento do veio escolhido pela escritora. Parte de uma situação original, ao explorar, às vezes, com humor, o estado anacrônico do protagonista, cavaleiro andante num mundo em que desaparecia esse tipo de herói. No entanto, nos livros seguintes, obriga-se a levar a sério a personagem como preço da continuidade das aventuras. Torna então paradoxal o anacronismo do primeiro texto, pois, sem qualquer mediação, Xisto salta dos tempos medievais para o futuro.

Lúcia Machado de Almeida e Jerônimo Monteiro, adeptos de um gênero comum, representam trajetórias literárias inversas. Pois, se o segundo recorre ao passado ou ao futuro como procedimento para refletir sobre o presente, a primeira exila-se em épocas distantes para anular a cronologia e imergir num indeterminado temporal.

Se o livro de aventuras brasileiro não se recusa a pensar a realidade nacional, ele não deixa de optar, na maior parte das vezes, por uma tendência escapista. A

isto se acrescenta a recuperação de processos narrativos e temáticos já superados pelos escritores do período modernista.