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6.7 — Em busca de novas linguagens

A não ser que imprestáveis fossem também o sonho, a fantasia, a música e tudo que serve ao coração.

HAROLDO BRUNO*

As reflexões até agora sugeridas pela literatura infantil contemporânea apontam para a consolidação do gênero: bem visível na perspectiva concreta da produção e consumo das obras para crianças, manifesta-se também no plano interno, isto é, nas formas e conteúdos destes livros. No entanto, nem a documentação crítica da realidade contemporânea brasileira, nem a absorção muitas vezes criativa de elementos da cultura de massa, nem mesmo o esforço de renovação poética dão conta de todas as faces assumidas pela atual produção literária infantil brasileira.

Marca bastante típica dos livros infantis de 1960 para cá é a incorporação da oralidade, tanto na narrativa quanto na poesia. A tentativa de fazer uso de uma linguagem mais coloquial é outra forma de a literatura para crianças aproximar-se tanto das propostas literárias assumidas pelos modernistas de 22, quanto da herança lobatiana.

Essa oralização do discurso nos textos para crianças torna-se bastante coerente com o projeto de trazer para as histórias infantis o heterogêneo universo de crianças marginalizadas, de pobres, de índios. Da mesma forma que suas personagens e enredos deixaram de ser exemplares do ponto de vista dos valores dominantes, também a linguagem distanciou-se do padrão formal culto, indo buscar na gíria de rua, em falares regionais e em dialetos sociais a dicção adequada aos novos conteúdos.

Em Apenas um curumim (1979), de Werner Zotz, e em O curumim que virou

gigante (1980), de Joel Rufino dos Santos, a sintaxe coordenada, os paralelismos e

os desbastamentos sintéticos são tentativas de aproximação de uma linguagem, senão indígena, ao menos primitiva:

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Belo dia, Tarumã foi pescar mais os Outros.

Cada um flechou um peixe. Tarumã que flechou dois.

— Pra quem é esse peixe? — perguntaram a ele. — É pra minha maninha — Tarumã respondeu.

Ninguém sabia que tinha nascido irmã de Tarumã.(25)

Em obras de ambiência urbana, a incorporação de modos de fala distantes da norma foi paulatina e, em alguns casos, deixa à mostra cicatrizes:

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é o caso de certos usos anacrônicos e descontextualizados de expressões de gíria e da superposição não significativa de diferentes registros lingüísticos. No entanto, com Lando das ruas (1976), de Carlos de Marigny, e com Pivete (1977), de Henry Correia de Araújo, o uso literário de diferentes dialetos sociais parece atingir a maturidade e, a partir daí, a manifestar-se maciçamente em vários livros e autores.

Mas nem todos os traços que permeiam a linguagem da literatura infantil contemporânea são nítidos. Alguns não chegam a configurar uma tendência: deixam-se apenas entrever, manifestando-se esparsamente em certos momentos de algumas obras, ou em obras isoladas dentro do conjunto de títulos de um autor.

Um deles é o considerável espessamento que o texto infantil sofreu enquanto discurso literário, o que lhe abre a possibilidade de auto-referenciar-se, quer incluindo procedimentos metalingüísticos, quer recorrendo à intertextualidade, ou seja: às vezes o texto tematiza seu próprio processo de escrita e produção, às vezes faz referência a outras obras, instaurando uma espécie de diálogo entre textos.

Analisadas superficialmente, metalinguagem e intertextualidade parecem aproximar a literatura infantil contemporânea de obras não-infantis, que encontram na metalinguagem a manifestação de sua modernidade. Face às transformações que a modernização capitalista trouxe para seu ofício, o escritor encena, perante os leitores, suas perplexidades e inseguranças frente à linguagem de que dispõe.

Na literatura infantil, porém, perplexidades e desconfianças são muito raras. Quem escreve para crianças parece acreditar na docilidade e transparência da linguagem enquanto instrumento, o que confina o questionamento da linguagem a poucas obras e o torna, mesmo nestas, pouco radical.

Talvez o escritor infantil que primeiro e com mais empenho tenha trazido para a narrativa infantil os dilemas do narrador moderno seja Clarice Lispector. Suas obras para crianças abandonam a onisciência, ponto de vista tradicional da história infantil. Esse abandono permite o afloramento no texto de todas as hesitações do narrador e, como recurso narrativo, pode atenuar a assimetria que preside a emissão adulta e a recepção infantil de um livro para crianças:

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Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro, contarei e vocês, que vão ler esta história triste, me perdoarão ou não.

Vocês hão de perguntar: por que só no fim do livro? E eu respondo:

— É porque no começo e no meio vou contar algumas histórias de bichos que

eu tive, só para vocês verem que eu só poderia ter matado os peixinhos sem querer. (26)

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Nesse projeto, além da marca inconfundível de Clarice, pode-se reconhecer também um procedimento nitidamente moderno: a fragmentação e a diluição da narrativa, sempre postergada, o que exige ostensivamente a participação do leitor a quem o narrador se dirige com freqüência, explicando o que narra e fazendo perguntas.

Também O caneco de prata (1971), de João Carlos Marinho, aspira à modernidade narrativa, mas como que se arrepende no fim do caminho. O último fragmento da história explica pela loucura o que parecia ter se desenrolado como aventura de linguagem:

Mas o dono do hospício veio dançando pelo corredor e depois pegou no meu livro e escreveu fim. (27)

Contextualizar no hospício uma narrativa que começa com discos voadores, crianças e marcianos comendo morango com chantili no pico do Jaraguá e que no seu desenvolvimento incorpora grafitis, cartas sem pé nem cabeça, um leopardo verde e o esquadrão da morte tem conseqüências sérias: acarreta a diluição do non

sense e do surrealismo e enfraquece o projeto de desmontagem e fragmentação da

narrativa, de indisfarçável figurino oswaldiano.

Marcelo marmelo martelo (1976), de Ruth Rocha, é outro livro que

mergulha seus leitores na aventura da linguagem. Tematiza a arbitrariedade do signo lingüístico, vivenciada comicamente pelo protagonista, um menino entretido em explorar a elasticidade sonora e semântica das palavras.

Ao chamar seu cachorro de Latildo, travesseiro de orelheiro e pegar fogo de

embrasar-se, Marcelo vive, através de suas experiências lingüísticas, a aventura de

nomear e significar. Na medida em que os novos nomes que ele atribui às coisas fazem-no viver situações problemáticas, a história incorpora a ambigüidade do compromisso entre, de um lado, os usos sociais da linguagem e, de outro, os limites que tal uso impõe às interferências do falante no sistema lingüístico.

Se nesse livro o questionamento da linguagem se faz sobre a componente léxica, um livro posterior da mesma autora leva adiante a reflexão, fazendo-a

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(26) LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. 4. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio,

1974.

incidir sobre a prática da linguagem. Trata-se de O reizinho mandão (1978), que conta a história de um povo reduzido ao silêncio por um governante autoritário e que tem sua voz e sua fala restauradas por uma criança que enuncia as palavras mágicas: cala a boca já morreu: quem manda na minha boca sou eu.

Na tradição das fórmulas de encantamento e desencantamento, a frase que opera o milagre é ritmada e rimada. E além disso, nela, enunciado e enunciação coincidem, isto é, ela constitui um ato de fala (condição do desencantamento), que proclama o direito individual à palavra.

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Trata-se, ainda, de um provérbio, cuja origem popular reforça a noção de um uso libertador da linguagem, não mais instrumento de comunicação, mas forma de atuação na realidade.

Outra obra onde o poder emancipador da palavra é a espinha dorsal do texto

é Chapeuzinho Amarelo (1979), de Chico Buarque. De concepção bastante

sofisticada, a história retoma e reescreve alguns elementos da velha e popular história do Chapeuzinho Vermelho. Na reescrita, o lobo passa a simbolizar uma espécie de arquétipo dos medos infantis, inventariados num texto de muita musicalidade:

Era Chapeuzinho Amarelo. Amarelada de medo.

Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. Já não ria.

Em festa não aparecia. Não subia escada nem descia.

Não estava resfriada mas tossia.

Ouvia conto de fada e estremecia.

Não brincava mais de nada, nem de amarelinha.

(...)

Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira. E transforma em companheiro cada medo que ela tinha: o raio virou orrái,

barata é tabará, a bruxa virou xabru

e o diabo é bodiá. (28)

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(28) BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. 2. ed. Rio de Janeiro, Berlendis & Vertecchia, 1980. n. p.

A superação do medo decorre de um trabalho com a palavra, a partir de sua decomposição em sílabas e da inversão destas. Através dessa operação, LOBO transforma-se em BOLO e, nessa transformação, anulam-se seus traços amedrontadores e instaura-se uma relação inversa, onde ele é que fica à mercê da criança. Assim, Chapeuzinho Amarelo é um texto que tematiza a relação da palavra com as coisas e que sugere o poder da linguagem na transformação da realidade.

De raízes antigas e da linhagem dos contos de fadas mais tradicionais são os textos com os quais dialoga a História meio ao contrário (1979), de Ana Maria Machado, que recupera, discute e inverte diametralmente situações e valores correntes nas histórias infantis. A inversão

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repercute no andamento da narrativa, que se abre pela fórmula que tradicionalmente encerra o conto de fadas:

... e então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e

viveram felizes para sempre. (29)

Logo no início do texto, o narrador manifesta consciência da inversão sistemática a que submete os constituintes tradicionais do gênero e do reflexo disso no modo de narrar:

Tem muita história que acaba assim. Mas este é o começo da nossa.

Quer dizer, se a gente tem que começar em algum lugar, pode muito bem ser por aí. (30)

O diálogo narrador-leitor, em que o primeiro tematiza seu fazer literário, é constante na literatura não-infantil contemporânea e é um dos modos de manifestação do encorpamento do texto infantil enquanto discurso literário. Nesse livro, que a partir do título coloca-se sob o signo da inversão (atenuada pelo advérbio), a revisão de conceitos é total: o rei não é todo-poderoso, o príncipe casa- se com a pastora e o povo é quem resolve seus problemas. Além dos conteúdos fantásticos que esse livro reescreve, ele parodia também elementos de outra fonte, como a figura do gigante, cuja apresentação se inspira em versos do hino nacional:

— Mas alguém já viu o Gigante acordado? Ele passa o tempo todo deitado, esse

gigante adormecido.

— É mesmo... Deitado eternamente... (31)

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(29) MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. São Paulo, Ática, 1979. p. 4. (30) Id. ibid. p. 4.

Assim, colocando lado a lado elementos de origem tão díspar como os contos de fadas e o hinário pátrio e submetendo ambos ao mesmo procedimento de reescrita paródica, História meio ao contrário representa outra forma de diálogo entre a literatura infantil contemporânea e suas fontes mais remotas.

Se a encenação da linguagem e a recuperação paródica do discurso tradicional são formas de a literatura infantil mais moderna inserir-se no presente, outras modalidades dessa inserção parecem ser as estruturas alegóricas que sustentam várias histórias para crianças.

Parentes longínquos das fábulas, mas recusando os valores tradicionais que elas difundiam, todos os livros de Lygia Bojunga Nunes (Os colegas, 1972,

Angélica, 1975, A bolsa amarela, 1976, A casa da madrinha, 1978, Corda bamba,

1979, e O sofá estampado, 1980) representam, nas histórias que contam, desajustes, frustrações, marginalização social e familiar.

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Mais do que a representação de situações sociais tensas, Lygia Bojunga Nunes traz para suas histórias a interiorização das tensões pela personagem infantil, muitas vezes representada por animais.

As personagens dessa autora vivem, no limite, crises de identidade: divididas entre a imagem que os outros têm delas e a auto-imagem que irrompe de seu interior, manifestando-se através de desejos, sonhos e viagens, os livros de Lygia registram o percurso dos protagonistas em direção à posse plena de sua individualidade:

Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não agüento mais o meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras — as três que de repente vão crescendo e engordando toda a vida — ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum.

Não sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido

garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever (32)

Sua narrativa flui num ritmo vagaroso, atento à minúcia de comportamento e de ambiente que às vezes se aproxima do fluxo de consciência. O resultado é uma narrativa original que, além de romper com a linearidade, parece ter a intenção de colar-se ao modo infantil de perceber e dar significado ao mundo.

Outras obras e outros autores abandonam definitivamente a representação do real e a pedagogia, mesmo que seja a pedagogia do avesso, que os anos 70 pareceram decretar. Abandono benvindo, na medida em que parecem esgotadas —

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por terem chegado a seu limite — as tendências aberta ou alegoricamente contestadoras que marcaram os últimos 10 anos de literatura infantil.

Marina Colasanti, em Uma idéia toda azul (1979), faz reingressar na literatura infantil toda a população de reis, fadas, princesas e rainhas que costumavam povoar os contos tradicionais. O reingresso coincide com o aparecimento de muitas obras cujo projeto consistia na desmistificação das criaturas do reino das fadas.

Nos textos da tradição de Perrault e de Grimm, os elementos fantásticos, em constante intercâmbio com o real, acabaram servindo a interpretações que os viam como metáforas de situações sociais e psicológicas muito marcadas. É, de certa forma, contra o maniqueísmo dessas interpretações que A fada que tinha idéias e

Soprinho, de Fernanda Lopes de Almeida, A fada desencantada, de Eliane Ganem, História meio ao

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contrário, de Ana Maria Machado, e Onde tem bruxa tem fada, de Bartolomeu

Campos Queirós, se insurgem.

A ressurreição do fantástico operada por Marina Colasanti dialoga, então, não só com as fontes originais do conto de fadas, como também com a contestação desse acervo. E por esse caminho, seu projeto encontra eco em textos contemporâneos não-infantis, como os de Murilo Rubião, igualmente mergulhados no imaginário.

As personagens dos contos de Uma idéia toda azul e do mais recente Doze

reis e a moça do labirinto do vento (1983) são todas de estirpe simbólica: tecelãs

princesas, fadas, sereias, corças e unicórnios, em palácios, espelhos. florestas e torres, não têm nenhum compromisso com a realidade imediata. Participam de enredos cuja efabulação é simples e linear, dos quais emergem significados para a vivência da solidão, da morte, do tempo, do amor. O clima dos textos aponta sempre para o insólito, e o envolvimento do leitor se acentua através do trabalho artesanal da linguagem, extremamente melodiosa e sugestiva:

Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde e a noite inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em que se haviam encontrado, a princesa aproximou-se do unicórnio. E como no segundo dia, olhou-o procurando o fundo de seus olhos. E como no terceiro dia segurou-lhe a cabeça com as mãos. E nesse último dia aproximou a cabeça de seu peito, com suave força, com força de amor empurrando, cravando o espinho de marfim

no coração, enfim florido. (33)

Em direção semelhante aponta O misterioso rapto de Flor-do-Sereno (1979), ________________

de Haroldo Bruno. É uma história narrada numa linguagem popular e oral, que lembra tanto a novela arcaica quanto o romance de cordel. Os capítulos têm títulos longos que inventariam e resumem o conteúdo narrativo:

O rapto da meiga e branca Flor-do-Sereno, com a casa sendo violentamente

atirada nos ares e outras desordens do natural.(34)

De como o mágico Segismundo-corre-mundo sabe do endereço do monstro

Sazafrás pela inscrição de fogo que se abre num céu de estrelas e relâmpagos.(35)

A história é longa, incorpora vários elementos da cultura pernambucana, e é composta de episódios que se superpõem sem necessariamente se interpenetrarem. O livro conta a história de Zé Grande em busca de sua mulher, Flor-do-Sereno, raptada pelo gigante Sazafrás “de antiga e negra memória”.

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Na oralidade de sua narração. no diálogo constante com o leitor, são apontadas as conotações simbólicas da história que, em última análise, é a história de um herói popular em quem a missão libertadora não exclui a dimensão amorosa. Essa fusão entre o social e o individual, entre universal e regional, também presente em Guimarães Rosa, sugere que o caminho trilhado por Haroldo Bruno é promissor. Representa uma forma moderna de aproveitamento do material folclórico, sempre reivindicado como fonte desejável de literatura infantil, desde os tempos de Figueiredo Pimentel e Mexina de Magalhães Pinto.