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Os imóveis residenciais e o capitalismo financeirizado nos Estados Unidos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

Rafael Fagundes Cagnin

Os imóveis residenciais e o capitalismo

financeirizado nos Estados Unidos

CAMPINAS 2018

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INSTITUTO DE ECONOMIA

Rafael Fagundes Cagnin

Os imóveis residenciais e o capitalismo

financeirizado nos Estados Unidos

Profa. Dra. Maryse Farhi – orientador

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Ciências Econômicas, área de concentração Teoria Econômica.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO RAFAEL FAGUNDES CAGNIN E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. MARYSE FARHI.

CAMPINAS 2018

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TESE DE DOUTORADO

Rafael Fagundes Cagnin

Os imóveis residenciais e o capitalismo

financeirizado nos Estados Unidos

Defendida em 23/08/2018

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa. Dra. Maryse Farhi - Presidente

Instituto de Economia / UNICAMP

Profa. Dra. Daniela Magalhães Prates

Instituto de Economia / UNICAMP

Profa. Dra. Mariana Azevedo Barretto Fix

Instituto de Economia / UNICAMP

Dra. Maria Cristina Penido de Freitas

Economista Doutora pela Universidade Paris 13

Dr. Marcos Antonio Macedo Cintra

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA

Prof. Dr. <Inserir nome>

<Inserir a Instituição>

Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Por sempre terem me encorajado a retomar este projeto de pesquisa, que já havia passado por diferentes etapas, agradeço a Daniela Prates, Maria Cristina Penido de Feitas, Marcos Antonio Macedo Cintra, Maria Luiza Levi, Mariana Jansen e, sobretudo, Maryse Farhi, que gentilmente aceitou orientar a elaboração da tese.

Os comentários e sugestões da banca de qualificação foram fundamentais para avançar em direção de uma versão final deste trabalho; por isso, agradeço a Mariana Fix e, novamente, a Marcos e Maryse. Agradeço igualmente as críticas e as ponderações, todas muito pertinentes, decorrentes do debate realizado no âmbito da banca de defesa.

Sou ainda muito grato a meus amigos, minha família e a Mariana Jansen pela compreensão e paciência com os efeitos colaterais de uma tese de doutorado, implicando ausências e oscilações de humor.

Por fim, gostaria de reconhecer o apoio institucional, direta ou indiretamente, concedido pelo Programa Alβan e a Universidade Paris 13, em uma etapa inicial desta agenda de pesquisa, pelo Instituto de Economia da Unicamp, e por todos os seus funcionários sempre muito solícitos, gentis e eficientes, bem como pela Fundap e pelo Iedi, por terem assegurado a flexibilidade necessária para compatibilizar minhas atividades profissionais e acadêmicas.

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Entre 2007 e 2009, a escalada da inadimplência em um segmento específico do mercado de crédito dos Estados Unidos, o de hipotecas de alto risco sobre imóveis residenciais, denominadas subprime, transformou-se em uma crise financeira global de grandes proporções, contrastando com outros episódios de instabilidade financeira da virada do século. Desta vez, os efeitos foram suficientemente graves para que a crise fosse comparada à de 1929. Por seus impactos negativos sobre o ritmo de crescimento econômico, nos Estados Unidos e no mundo – que até 2017 não havia retomado os patamares anteriores à crise – e pelo acirramento de conflitos sociais que se seguiu, a crise das hipotecas subprime parece ter explicitado as contradições da configuração contemporânea do capitalismo americano, em que as finanças são capazes de impor sua lógica e seus condicionantes ao processo de acumulação, dando origem a um regime de acumulação financeirizado.

Se os imóveis residenciais e seus vínculos com os mercados financeiros estiveram no epicentro da mais grave crise do regime financeirizado, encontravam-se igualmente presentes na fase anterior de ascensão do ciclo, mesmo antes de 2002, quando a aceleração do processo de valorização das residências americanas, apoiada na política de baixas taxa de juros do Federal Reserve, liderou a recuperação econômica dos EUA, compensando os efeitos negativos da desvalorização dos mercados acionários.

O objetivo dessa tese é, à luz dos eventos revelados pela crise subprime, identificar as transformações institucionais que possibilitaram que os imóveis residenciais desempenhassem um papel central no regime de acumulação financeirizado dos EUA, tanto nas fases de crescimento econômico como na crise que se seguiu. Em outros termos, busca-se mostrar que novas formas de financiar, gerir e construir esses ativos imobiliários também integraram as transformações ocorridas, a partir dos anos 1970 e 1980, que deram os contornos da configuração atual do capitalismo americano.

Palavras-chave: Estados Unidos, regime de acumulação, financeirização, Théorie de la Régulation, habitação, imóveis residenciais, crise das hipotecas subprime.

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Between 2007 and 2009, the increase in the default rate in a particular US credit market, the subprime home mortgages, has turned into a major global financial crisis, in contrast to other recent financial instability episodes. This time, the crisis effects were sufficiently severe to be compared to that of 1929. Because of its negative impacts on the pace of economic growth in the United States and in the world, which by 2017 had not resumed pre-crisis levels, the subprime mortgage crisis seems to have made explicit the contradictions of the contemporary configuration of American capitalism, in which finance is able to impose its logic and its constraints on the accumulation process, giving rise to a finance-led accumulation regime.

If residential real estate and its links to the financial markets were at the epicenter of the most serious crisis of the finance-led regime, they were also present in the previous growth phase, even before 2002, when the American housing prices accelerated, backed by the Federal Reserve's low interest rate policy, spearheaded the US economic recovery, offsetting the negative effects of stock market declines.

The purpose of this thesis is, in light of the events revealed by the subprime crisis, to identify the institutional changes that allowed residential real estate to play a central role in the US finance-led accumulation regime, both in the economic growth phases and in the crisis that followed. In other words, it seeks to show that new ways of financing, managing and constructing these real estate assets have also integrated the transformations that took place in the 1970s and 1980s, which shaped the current American capitalism configuration.

Keywords: United States, accumulation regime, financialization, Théorie de la Régulation, housing, residential real estate, subprime mortgage crisis.

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Gráfico 1. Participação dos salários no PIB dos EUA (%) – 1970 a 2010 ... 49 Gráfico 2. Evolução da Taxa de Poupança¹ das Famílias Americanas (%) – 1970 a 2010 ... 51 Gráfico 3. Evolução do Endividamento das famílias americanas (%) – 1970 a 2010 ... 51 Gráfico 4. Média dos ativos em posse das famílias americanas por grupos de renda (em % da renda) ... 57 Gráfico 5. Crescimento da Produtividade e do Salário Médio Real nos EUA ... 62 Gráfico 6. Valorização dos Mercados Acionários e dos Imóveis Residenciais¹ nos EUA – jan./91 a dez./10 (Em número índice – jan./95 = 100) ... 65 Gráfico 7. Taxas de Juros dos Treasuries de 10 anos, das Hipotecas Convencionais de 30 anos e da Fed Funds Rate – 1999 a 2010 ... 69 Gráfico 8. Evolução dos preços de imóveis residenciais - Regiões Metropolitanas com

Maiores Altas ... 70 Gráfico 9. Novas Unidades Residenciais¹ em Construção – 1990 a 2010 (em milhões de unidades) ... 72 Gráfico 10. Inadimplência das Hipotecas Prime e Subprime (% da carteira) – 2005 a 2010 ... 73 Gráfico 11. Fed Funds Rate e a lucratividade das instituições de Saving & Loans (%) – 1965-1981 ... 79 Gráfico 12. Evolução da contratação (fluxo) de hipotecas residenciais (single housing

mortgages) por tipo de credor nos EUA – 1970-2000 ... 83 Gráfico 13. Estoque das hipotecas residenciais nos EUA por tipo de detentor (%) - 1968 a 2010 ... 93 Gráfico 14. Evolução do Estoque de Hipotecas nos EUA em % do PIB – 1950 a 2010 ... 100 Gráfico 15. Refinanciamento de hipotecas residenciais e evolução da taxa de juros nos EUA (%) – 1990 a 2010 ... 103 Gráfico 16. Cash-out no segmento de hipotecas prime conventional – 1993 a 2010 ... 104 Gráfico 17. Evolução do estoque de home equity lending – US$ bilhões e em % do PIB... 106 Gráfico 18. Participação dos segmentos subprime, Alt-A e home equity loans no total de hipotecas geradas por ano nos EUA – 2001 a 2006 ... 111 Gráfico 19. Participação das hipotecas Interest Only e Neg-Am no total de hipotecas geradas nos EUA – 2000 a 2005 ... 111 Gráfico 20. Emissões anuais de mortgage-backed securities por tipo de emissor nos EUA– 1995 a 2009 ... 114 Gráfico 21. Evolução do Mercado de Derivativos de Crédito - Valor Nocional - Posição dos Bancos Comerciais dos EUA (US$ trilhões) ... 116 Gráfico 22. Evolução do Mercado Global de Derivativos de Crédito – Mercado de Balcão de

Credit Default Swaps – Valores nocionais e valores brutos de mercado em US$ bilhões ... 117 Gráfico 23. Participação das hipotecas subprime no total das hipotecas securitizadas nos EUA – 2001 a 2006 ... 119 Gráfico 24. Taxa de execução hipotecária nos EUA segundo o segmento de mercado (em % de todas as hipotecas do segmento) – 1998 a 2008 ... 123 Gráfico 25. Valor dos títulos do Tesouro e das Agências americanas em poder de não

residentes – 1978 a 2010 ... 131 Gráfico 26. Evolução dos títulos das Agências americanas em poder de não residentes – 1978 a 2010 ... 132 Gráfico 27. EUA: Orçamento do Departamento de Habitação e Urbanismo (HUD) para construção, modernização e operação do parque público - 1977 a 2003 ... 148 Gráfico 28. EUA: Número de vouchers e certificados acumulados – 1975 a 2004 ... 155

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Gráfico 30. Grandes Construtoras Americanas de Residências Negociadas em Bolsa de Valores – banco de terrenos e unidades construídas – 2000 a 2007 ... 168 Gráfico 31. Decomposição da evolução dos preços dos imóveis residenciais: preço dos

terrenos e custo de reposição das estruturas – 1975 a 2005 ... 169 Gráfico 32. EUA: Evolução do Índice de Preço dos Aluguéis em termos reais – 1995 a 2012 ... 175 Gráfico 33. EUA: Parcela dos imóveis residenciais ocupados por proprietários – 1940 a 2010 (%) ... 177 Gráfico 34. EUA: Evolução da participação das hipotecas garantidas pela FHA/VA no

estoque de hipotecas – 1950 a 2010 ... 179 Gráfico 35. EUA: Evolução da Taxa Marginal Efetiva de Imposto sobre Ganhos de Capital (1)

sobre a propriedade residencial – 1980 a 2000 ... 183 Gráfico 36. EUA: Renúncia fiscal do governo federal associada à habitação, orçamento e desembolsos do Departamento de Habitação e Urbanismo (HUD) – 1976 a 2010 (em US$ de 2002) ... 185

Lista de Tabelas

Tabela 1. Indicadores macroeconômicos dos EUA (média das taxas anuais) em % ... 36 Tabela 2. Ativos financeiros em posse de Fundos de Pensão e Fundos Mútuos nos EUA ... 43 Tabela 3. Ativos financeiros no patrimônio das famílias americanas (em %)... 50 Tabela 4. Taxa de Crescimento Real do PIB e dos Componentes da Demanda Agregada – 1990 a 2010 ... 63 Tabela 5. EUA: Número de falência de thrifts e volume de ativos envolvidos – 1986 a 1995 81 Tabela 6. Canais de distribuição dos empréstimos habitacionais dos 10 maiores credores junto às famílias americanas – 1997-2000 (em US$ bilhões e em %). ... 84 Tabela 7. EUA: Evolução do parque público de habitação – 1940 a 2010 ... 141 Tabela 8. EUA: Características das famílias beneficiárias dos principais programas de

habitação em 2009 ... 147 Tabela 9. EUA: Evolução do custo da moradia para as famílias locatárias – 1960 a 2009 ... 176 Tabela 10. EUA: Formas de renúncia fiscal federal associadas à habitação – 2010 ... 180 Tabela 11. EUA: Distribuição da renúncia fiscal devido à dedução do pagamento de juros sobre hipotecas residenciais por faixa de renda do declarante – 2010 ... 187 Tabela 12. EUA: Distribuição da renúncia fiscal devido à dedução do pagamento de impostos estaduais e municipais sobre propriedade imobiliária (property taxes) por faixa de renda do declarante – 2010 ... 187

Lista de Quadros

Quadro 1. Tecnologia da Informação e Fragmentação do Sistema de Financiamento

Habitacional nos EUA ... 86 Quadro 2. A lei de falência pessoal nos EUA ... 124 Quadro 3. Características do processo de execução hipotecária ... 125

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ABS Asset Backed Securities ARM Adjustable Rate Mortgage AUS Automated Underwriting System

BAPCPA Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act BEA Bureau of Economic Analysis

BLS Bureau of Labor Statistics

CDBG Community Development Block Grant CDO Collateralized Debt Obligation

CDS Credit Default Swap

CMA Cash Management Accounts CRA Community Reinvestment Act DIA Depository Institutions Act

DIDMCA Depository Institutions Deregulation and Monetary Control Act EUA Estados Unidos da América

ERISA Employment Retirement Income Security Act EVA Economic Value Added

Fannie Mae Federal National Mortgage Association FDIC Federal Deposit Insurance Corporation Fed Federal Reserve

FHA Federal Housing Administration FHLBB Federal Home Loan Bank Board FICO Fair Isaac Corporation

FIRREA Financial Institutions Reform, Recovery and Enforcement Act FMI Fundo Monetário Internacional

Freddie Mac Federal Home Loan Mortgage Corporation FRM Fixed Rate Mortgage

FSLIC Federal Savings and Loan Insurance Corporation Ginnie Mae Government National Mortgage Association GSE Government-Sponsored Enterprise

HAI Housing Affordability Index HCV Housing Choice Voucher HEL Home Equity Loan

HELOC Home Equity Lines of Credit HMDA Home Mortgage Disclosure Act HOI Housing Oportunity Index

HUD U. S. Department of Housing and Urban Development IDE Investimentos Diretos Externos

IO Interest-Only Mortgage

IRA Individual Retirement Arrangement LIHTC Low-Income Housing Tax Credit LTCM Long-Term Capital Management LTV Loan-to-Value

MBS Mortgage Backed Securities MMMF Money Market Mutual Funds

NAIRU Non-Accelereting Inflation Rate of Unemployment

Nasdaq National Association of Securities Dealers Automated Quotations System Neg-Am Negative Amortization Mortgage

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NYSE New York Stock Exchange

OCC Office of the Comptroller of the Currency OFHEO Office of Federal Housing Enterprise Oversight OTS Office of Thrift Supervision

P&D Pesquisa e Desenvolvimento PHA Public Housing Authorities PIB Produto Interno Bruto

QHWR Quality Housing and Work Responsability Act REIT Real Estate Investments Trusts

RMBS Residencial Mortgage Backed Securities RTC Resolution Trust Corporation

SAR Suspicious Activity Reports

SEC Securities and Exchange Commission S&L Saving & Loans

SPV Special Purpose Vehicles TI Tecnologia da Informação TIF Tax Increment Financing

WtWV Welfare to Work Housing Voucher VA U.S. Department of Veterans Affairs

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Introdução ... 13

Capítulo 1. Regulação e Configurações do Capitalismo ... 19

1.1. Uma introdução à Teoria da Regulação ... 19

1.1.1. O conceito de regulação ... 19

1.1.2. As cinco formas institucionais ... 22

1.1.3. Regime de acumulação ... 26

1.1.4. Crises e a dinâmica dos regimes de acumulação e dos modos de regulação ... 28

1.2. O regime de acumulação fordista ... 30

1.2.1. Características institucionais do fordismo ... 30

1.2.2. Os fatores de crise do regime ... 35

1.3. O regime de acumulação financeirizado ... 40

1.3.1. Os contornos do novo regime ... 40

1.3.2. Questões a respeito da viabilidade do regime de acumulação financeirizado ... 54

1.3.3. Um esquema do funcionamento do modo de regulação financeirizado ... 60

1.3.4. A economia americana sob o regime financeirizado: 1990-2010 ... 61

1.4. Considerações finais ... 74

Capítulo 2. A transformação do financiamento habitacional e sua integração ao mercado financeiro global ... 76

2.1. O financiamento habitacional ao alcance de todos os credores ... 77

2.2. O desenvolvimento do mercado secundário de hipotecas e o avanço da securitização. 88 2.3. A engrenagem em movimento ... 98

2.3.1. Mobilização da riqueza imobiliária ... 98

2.3.2. A exacerbação do sistema: o desenvolvimento do mercado subprime ... 107

2.4. Integração ao mercado global de capitais ... 128

2.5. Considerações finais ... 135

Capítulo 3. O acesso à habitação e a priorização da propriedade residencial ... 138

3.1. O avanço restringido da habitação social ... 139

3.2. Novas formas de intervenção e a ampliação do setor privado na habitação social ... 145

3.3. Residualização e focalização da habitação social ... 151

3.4. Desengajamento federal e nova governança das cidades ... 156

3.5. O peso dos aluguéis e a dificuldade de moradia da baixa renda ... 173

3.6. A priorização do apoio à propriedade residencial ... 176

3.7. Considerações finais ... 188

Conclusão ... 191

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Introdução

Entre 2007 e 2009, a escalada da inadimplência em um segmento específico do mercado de crédito dos Estados Unidos (EUA), o das hipotecas de alto risco, denominadas subprime, transformou-se em uma crise financeira global de grandes proporções. Por mais que o Federal Reserve (o banco central americano) e demais autoridades monetárias das principais economias já tivessem enfrentado outros episódios de turbulência nos mercados financeiros – que se tornaram mais frequentes na atual fase do capitalismo – estes viram-se forçados a empregar novos instrumentos para injetar liquidez e fazer frente ao aumento do risco sistêmico. O Tesouro americano saiu em auxílio do mercado financeiro com a aprovação, em 2008, de um pacote de socorro de US$ 700 bilhões e com intervenções diretas na Fannie Mae (Federal National Mortgage Association) e Freddie Mac (Federal Home Loan Mortgage Corporation), agências que atuam na securitização de hipotecas, bem como na seguradora America International Group – AIG e mesmo em instituições não financeiras, a exemplo da General Motors. Como resume Braga (2009, p. 96), “na alta da especulação o império do mercado; e na baixa, o socorro do Estado”.

No entanto, nenhuma dessas medidas evitou a recessão econômica, a perda de empregos e o grande número de famílias expulsas de suas residências por processos de execução hipotecária ou por não terem mais recursos para cobrirem suas despesas com habitação. Tais efeitos foram particularmente importantes nos EUA, que se encontravam no epicentro da crise, mas também em outros países, como na Europa. Além disso, os impactos mostraram-se duradouros, dado que, ao menos até 2017, nem a economia americana nem a economia mundial, depois de uma forte deterioração em 2008 e sobretudo 2009, conseguiram restabelecer o ritmo anterior de crescimento1.

A crise das hipotecas subprime, que culminou na crise global de 2008, contrasta, então, com outros episódios de instabilidade financeira nos EUA da virada do século, como o colapso do hedge fund LTCM (Long-Term Capital Management), em 1998; a abrupta reversão da convenção altista que suportava os preços das ações de empresas “pontocom”, em 2000; bem como o impacto do atentado de 11 de setembro de 2001 e dos escândalos contábeis de 2002,

1 Como será visto no capítulo 1, o desempenho do Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA foi negativo em 2008

(-0,3%) e 2009 (-2,8%). Entre 2010 e 2017, houve um retorno ao crescimento econômico (2,1% na média anual), porém inferior ao período anterior à crise (3,1%, em média, entre 2003 e 2006 e 2,9% se incluirmos 2007, um ano já de acentuada desaceleração). O mesmo ocorreu na economia mundial: 3,8%, em média, entre 2010 e 2017, contra 5,1% entre 2003 e 2007 (FMI, 2018).

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com a falência da Enron e da WorldCom. Desta vez, os efeitos foram suficientemente graves para que a crise fosse comparada à de 1929, como lembra Farhi (2014). Por seus desdobramentos sobre o setor produtivo e pelo acirramento de conflitos sociais (Occupy Wall Street, por exemplo), a pressionar por alterações na regulamentação do setor financeiro, a crise das hipotecas subprime parece ter explicitado as contradições da configuração contemporânea do capitalismo americano, como sugere Blackburn (2008).

No capitalismo contemporâneo, os agentes e os mercados financeiros passaram a desempenhar um papel central no processo de acumulação, notadamente nos EUA, berço deste capitalismo financeirizado que, desde cedo, se irradiou para o restante do mundo. Diferentes interpretações convergem nesse sentido, como em Belluzzo e Coutinho (1996 e 1998), Chesnais (1997), Braga (1997), Aglietta (1998), Epstein (2005), entre outros, incluindo aquelas que empregaram uma nomenclatura distinta, como Harvey (1989) ao se referir a uma “acumulação flexível”.

O objetivo dessa tese é, à luz dos eventos revelados pela crise das hipotecas subprime, dar um passo atrás e identificar as transformações institucionais que possibilitaram que os imóveis residenciais desempenhassem um papel central no capitalismo financeirizado americano, tanto nas fases de crescimento econômico – especialmente entre 2002 e 2007, mas não apenas – como na crise que se seguiu2. Em outros termos, busca-se mostrar que novas

formas de financiar, gerir e construir esses ativos imobiliários também integraram as transformações ocorridas a partir dos anos 1970 e 1980 que instauraram o capitalismo financeirizado nos EUA.

Pela ênfase dada aos aspectos institucionais em sua abordagem, a escola francesa da Teoria da Regulação (Théorie de la Régulation) foi utilizada como referência teórica deste trabalho. Com isso, busca-se definir a atual configuração do capitalismo americano, o capitalismo financeirizado, como um determinado regime de acumulação no qual as finanças são capazes de “impor sua lógica e suas restrições a todos os outros complexos institucionais” (Lordon, 2000), dando contornos específicos ao processo de acumulação, a se exprimir em uma determinada trajetória macroeconômica. Assim, mesmo que de forma parcial e provisória, suas características são capazes de conter contradições e desequilíbrios gerados pelo próprio processo de acumulação, de modo a diluir os conflitos políticos que possam levar a uma

2 Assim, este trabalho se dedica a analisar dados e o desenrolar os acontecimentos até 2010, consistindo, inclusive

no último ano representado nas figuras elaboradas a partir de dados primários. Figuras com dados secundários, contudo, mostram certa variação dos períodos em tela. Comentários sobre o pós-crise das hipotecas subprime estão concentrados na conclusão do trabalho.

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redefinição dos grupos sociais dominantes e, por consequência, uma alteração da hierarquia institucional que define o regime.

A abordagem regulacionista identifica cinco formas institucionais como estruturantes de um regime de acumulação: as relações salariais (ou de trabalho), as formas de concorrência entre os capitais, as intervenções do Estado na economia, as relações internacionais (ou entre os Estados nacionais) e as relações monetário-financeiras. No regime financeirizado, é esta última, então, que ocupa a posição hierarquicamente superior.

O presente trabalho se organiza em uma trajetória que parte dos conceitos mais abstratos da abordagem regulacionista, que enfatizam a importância da análise da configuração histórica do capitalismo, passa pela caracterização contemporânea desta configuração, isto é, do regime financeirizado, para enfim analisar, a partir das formas institucionais identificadas pelos regulacionistas, as transformações associadas à habitação neste regime. A pretensão, assim, não é realizar uma contribuição teórica, mas de utilizar o arcabouço teórico a fim de avançar na tarefa de desvendar os mecanismos por meio dos quais os imóveis residenciais assumiram um papel central no funcionamento do regime financeirizado.

O Capítulo 1 apresenta, então, os principais conceitos da abordagem regulacionista e as características que particularizam o regime financeirizado nos EUA. Neste capítulo também são analisados dois ciclos de crescimento econômico sob este regime, o dos anos 1990, em que se destacou a valorização da riqueza financeira, notadamente das ações de empresas de tecnologia, e o dos anos 2000, sob influência da elevação dos preços dos imóveis residenciais. Cabe observar que, por mais que a valorização imobiliária tenha ganho destaque só a partir de 2002, seus efeitos dinamizadores sobre o investimento e o consumo já estavam presentes na fase de expansão da década anterior.

No Capítulo 2, são reconstituídas as profundas mudanças no sistema americano de financiamento habitacional, sobretudo ao longo dos anos 1970 e 1980, possibilitando o surgimento de uma estrutura unbundling originate-to-distribute neste segmento do mercado de crédito. Tal estrutura é caracterizada por diferentes atividades desempenhadas por agentes específicos na oferta de crédito hipotecário às famílias e por um amplo recurso à securitização. A transformação das carteiras de hipotecas em títulos negociáveis em mercado secundário estreitou os laços entre o sistema americano de financiamento habitacional e os mercados de capitais, inclusive em escala global, diante da liberalização dos fluxos de capitais entre os países que marca o regime financeirizado. Neste capítulo, são tratadas, então, duas das formas institucionais, as finanças e as relações internacionais, a partir do financiamento habitacional.

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Como resultado dessa nova estrutura, a inovação financeira tornou-se elemento fundamental na concorrência dos agentes do sistema de financiamento habitacional nos EUA. Foi possível, assim, acomodar, em alguma medida, a mudança das condições de endividamento das famílias, dificultadas pela flexibilização dos contratos de trabalho, maior risco de desemprego e queda do ritmo de crescimento dos salários reais, que dificultavam um compromisso de longo prazo, tal como o exigido pelo financiamento habitacional. Igualmente importante, a proliferação de instrumentos capazes de transformar em poder de compra a riqueza imobiliária ampliou a capacidade de alavancagem das famílias proprietárias. Em contrapartida, o recurso à inovação financeira e à securitização, em um ambiente de concorrência acirrada e de busca por rendimento, como o que se observou entre 2002 e 2007, fez com que o segmento de hipotecas de alto risco se expandisse rapidamente.

São essas transformações nos mecanismos de financiamento que levaram alguns autores a identificar um processo de “financeirização dos imóveis”, como Aveline-Dubach (2008), cuja análise prioriza a interação entre agentes financeiros e imóveis comerciais e de escritório, sobretudo nos anos 1980, mas que também dá conta das especificidades desse movimento no caso dos imóveis residenciais. Por sua vez, Aalbers (2008 e 2016) se interessa prioritariamente por este último segmento do mercado imobiliário, dada a amplitude do ciclo de preços desses imóveis não somente nos EUA, mas também em outros países.

Nesta tese, o termo financeirização será reservado para identificar o regime de acumulação em vigor, sendo que o papel a ser desempenhado pelos imóveis residenciais neste regime decorre não apenas de transformações na esfera financeira, mas também em outras formas institucionais, como o Capítulo 3 busca mostrar. Com isso, não se procura negar a posição hierarquicamente superior das finanças, mas ampliar a análise para aspectos frequentemente menos explorados. A hipótese é que, para que a desvalorização dos imóveis residenciais e a crise habitacional nos EUA tenham funcionado como o estopim de uma crise da magnitude que se verificou, é preciso que reflitam o funcionamento e as contradições das configurações das formas institucionais que suportam o regime financeirizado.

No Capítulo 3, discute-se como as intervenções estatais na habitação, como parte do Estado de Bem-Estar Social, que sempre foram relativamente restritas nos EUA, recuaram ainda mais no regime financeirizado. As limitações orçamentárias da política habitacional, diante de uma nova configuração da relação salarial – forma institucional doravante marcada por uma evolução desfavorável dos salários e do aumento da desigualdade social –, impuseram a elevação do custo de moradia a frações cada vez maiores da população, agravada pela valorização dos imóveis. As famílias mais afetadas foram as de renda mais baixa e locatárias –

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por mais que os aluguéis tenham subido menos que o preço dos imóveis nas últimas décadas. Ao mesmo tempo, instrumentos de exoneração fiscal tornaram-se importantes suportes da propriedade de imóveis residenciais, especialmente para as parcelas da sociedade de maior renda, funcionando como uma silenciosa, porém efetiva, política habitacional. Assim, quando o acirramento da concorrência entre os agentes financeiros, nos anos 2000, saturou a potencialidade dos segmentos tradicionais das hipotecas, as inovações financeiras, que intentavam ampliar os limites de suas operações em direção a tomadores de maior risco, encontraram terreno fértil para se desenvolver, em função desse relativo “desengajamento” do Estado no acesso à moradia e da priorização da propriedade em relação a outras formas de ocupação.

As inovações financeiras e institucionais foram centrais não apenas no desenvolvimento recente das hipotecas subprime, mas também no segmento de menor risco do sistema de financiamento habitacional nos EUA, uma vez que, dadas as características da relação salarial do regime financeirizado, o crescimento da renda da maioria das famílias não foi suficiente para acompanhar a valorização dos imóveis. Ao viabilizar essa compatibilização, contudo, o sistema de financiamento criou condições para que a elevação dos preços das residências se mantivesse, sendo este um mercado de oferta relativamente rígida devido ao longo ciclo produtivo do setor da construção.

A despeito disso, incorporadores e construtoras também desempenharam um papel ativo na escalada dos preços imobiliários, como lembra Fix (2011). Apoiadas pela injeção de recursos realizada pelos mercados financeiros, as empresas de capital aberto capitanearam um processo de consolidação do setor em escala nacional e adotaram estratégias agressivas na formação de bancos de terrenos urbanos ao longo do período de elevação dos preços. Em função do número limitado de estudos sobre a evolução da estrutura de mercado da oferta habitacional nos EUA, o tema, que remete à forma institucional da concorrência intercapitalista identificada pelos regulacionistas, será tratado a partir de sua interação com as intervenções estatais, especialmente na esfera local. Essa abordagem apresenta limitações, já que as estratégias e interações de empresas e setor público podem variar muito de uma área urbana para outra, o que poderia ser superado com a realização de estudos de caso, que vão além do escopo deste trabalho. Apesar disso, a literatura mostra que, em linhas gerais, a nova governança das cidades no regime financeirizado, derivada da queda das transferências intergovernamentais e da maior concorrência pela atração de investimentos, fez com que as intervenções estatais convergissem mais do que se contrapusessem às estratégias adotadas pelas empresas imobiliárias no sentido

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de alavancar os preços dos imóveis. Por fim, a conclusão traz uma síntese dos principais argumentos desenvolvidos na tese.

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Capítulo 1. Regulação e Configurações do Capitalismo

1.1. Uma introdução à Teoria da Regulação

1.1.1. O conceito de regulação

Regulação remete à ideia de ajustamento, produto final da interação de diferentes ações individuais e de grupos que, na busca de seus interesses, geram conflitos que tendem a ser apenas equacionados de forma localizada e transitória, mas que ainda assim criam as condições necessárias à continuidade da acumulação de capital e à reprodução social. Não deriva de nenhuma ação consciente, propositalmente executada para garantir os pré-requisitos do processo de acumulação por um determinado período, mas emerge como um produto ex post dos conflitos sociais que alimentam as ações dos agentes e moldam as instituições.

A partir dessa noção, a abordagem regulacionista3 intenta estabelecer um campo

intermediário de análise, vinculando indivíduos à sociedade, o concreto ao abstrato. A reprodução ao longo do tempo das relações sociais que constituem o capitalismo nunca está garantida a priori. Ela ocorre justamente por meio de transformações específicas de cada momento histórico e em cada localidade, ensejadas pelos conflitos derivados da defesa dos interesses dos agentes.

Aglietta (1997) emprega, por exemplo, a expressão “choque de interesses” e Lipietz (1985) “molde social” para ilustrar a adoção de práticas que viabilizam a emersão da regularidade das relações sociais. Parte importante desse processo passa pelo reconhecimento social da relação. “Para que os agentes reproduzam relações sociais (...) é preciso antes de tudo que eles tenham consciência que esta relação possa existir” (p. 10). Trata-se aqui de como os agentes percebem a relação, “mesmo ilusoriamente, como a ‘venda do trabalho’, e mesmo que pareça normal, natural” (p. 10), porque “certas relações sociais fundamentais não são reconhecidas pelo que são e assumem a forma de outra coisa” (Lipietz, 1985, p. 9-10; tradução própria)4.

3 A Teoria da Regulação (Théorie de la Régulation – TR) estabelece diversos pontos de convergência com muitas

teorias usualmente classificadas de heterodoxas, como por exemplo a teoria keynesiana e pós-keynesiana, kaleckiana e neo-institucionalista (Nadel, 2002; Guttmann, 2002). Mas foi fundamentalmente da análise marxista que a TR se nutriu para fundar suas principais ferramentas conceituais, de maneira a contrapor-se à interpretação marxista do Capitalismo Monopolista de Estado, que, nos anos 1970, era dominante no Partido Comunista Francês, do qual muitos dos fundadores da TR faziam parte.

4 Como alerta Lipietz (1985), as diferentes interpretações teóricas a respeito da natureza de uma relação, como a

especificidade da relação trabalhista no capitalismo, em que o que é vendido é a força de trabalho, tentam influenciar o reconhecimento social da relação e, assim, fazem elas próprias, antes de tudo, parte da relação social a ser reproduzida: “o reconhecimento social da natureza de uma relação faz parte da própria relação (...). Naturalmente, aquilo que ‘reconhece’ o teórico não é necessariamente aquilo que reconhece a sociedade” (p. 9).

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A representação das relações sociais como norteadora das ações individuais aparece muitas vezes sob o vocábulo de ideologia; não como reflexo de uma simples dissimulação da dominação econômica, mas como estruturas de percepção próprias de cada esfera de sociabilidade, como “aquilo que adquirimos, mas que está incorporado de maneira durável sob a forma de disposições permanentes” (Bourdieu apud Boyer, 2003, p. 70; tradução própria). Aproxima-se, assim, do conceito de habitus, retirado da sociologia de Pierre Bourdieu, reconhecido e empregado pelos regulacionistas (Boyer, 1986 e 2003; Lipietz, 1985 e 1988).

Dessa maneira, “a relação social se incorpora nos indivíduos (...) sob a forma de hábitos, de rotinas adquiridas, como regras do jogo aceitas, mesmo que cada um busque melhorar seu jogo”. No entanto, nem todos estão em pé de igualdade: “a capacidade de um grupo dominante impor o jogo que o favorece será designada hegemonia, [que indica] a capacidade de um modelo de relações sociais impor-se como exemplar a uma comunidade e até em comunidades em que ele ainda não organiza” (Lipietz, 1985, p. 11, itálicos no original; tradução própria).

Mas nada disso é capaz de garantir a perfeita harmonia, de eliminar os focos de discordância e conflito:

(...) a autonomia, a criatividade, ou a insatisfação dos indivíduos ou dos grupos sociais (...) fazem com que eles proponham novas normas, novas relações, ou simplesmente, no interior de relações hegemônicas, que reivindiquem outra maneira de ‘jogar o jogo’, uma nova partilha da rodada. O ‘hábito’, as normas incorporadas não excluem as divergências, podendo se acumular até o desvio. Logo, não asseguram jamais, por si só, a reprodução: os subgrupos colocados em cena pelas relações sociais entram necessariamente em conflito (Lipietz, 1985, p. 11; tradução própria)5.

Esses conflitos se dão no campo político, por meio do embate de grupos de indivíduos aglutinados em torno de diferentes interesses6, cujas ações podem implicar estratégias distintas,

inclusive com algum grau de violência. O equacionamento desses conflitos não está assegurado; nem é possível saber ex ante a natureza de seus resultados. Mas na ausência de uma assimetria de poder tal que confira uma plena dominação de uma das partes, deles emergem instituições que expressam “compromissos institucionalizados”.

Na origem do compromisso, encontramos uma situação de tensão e de conflito entre grupos socioeconômicos. A oposição de interesse varia segundo o problema (...). Na medida em que nenhuma das forças presentes consegue dominar as forças adversárias a um grau que permitiria impor totalmente seus próprios interesses, o compromisso acaba por surgir, [representando uma]

5 O reconhecimento do potencial dinâmico do conceito de habitus é defendido por Boyer (2003).

6 Segundo Aglietta (1997), “a teoria da regulação (...) insiste na capacidade de se constituir e de se perseguir

interesses coletivos organizados. A ação criativa de instituições é essencialmente política e a política jamais é uma prática individual. A intervenção dos governos, as lutas sociais conduzidas ou exploradas por organizações representativas de grupos e a formalização de compromissos pelo legislador devem ser considerados ao mesmo tempo para dar conta da transformação das instituições e para descrever a hierarquia de suas relações” (p. 425). A reunião de indivíduos em grupos políticos e a relação entre eles são analisadas, mais recentemente, por Palombarini (2001), Amable e Palombarini (2005) e Amable (2005).

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solidificação das posições e dos interesses conquistados (...) propenso a se tornar objeto de tensões crescentes com o passar do tempo (Delorme e André, 1983, p. 672; tradução própria). É preciso insistir no caráter transitório da regulação desses conflitos, pois:

[a] estrutura de interesses sociais, políticos e econômicos (...) é repleta de heterogeneidade e de visões contraditórias, o que implica que (...) Nenhum sistema político pode satisfazer o conjunto de demandas sociais nem levar em consideração todos os pontos de vista concorrentes: o conflito político pode ser arbitrado, neutralizado, regulado, inscrito em um regime de ordem, mas jamais superado (Palombarini e Théret, 2001, p. 4; tradução própria).

Na sociedade moderna, o Estado aparece como o locus privilegiado do conflito político, por meio do qual os compromissos são institucionalizados. “Qualquer que seja a aparência privada do ‘estabelecimento de uma relação’, é a soberania [o Estado] que define a legitimidade e a perenidade das relações. É ela que institui o mercado, a moeda, que codifica a relação salarial” (Lipietz, 1985, p. 12; tradução própria).

O Estado é visto, ele próprio, como uma instituição, produto de um conjunto de conflitos institucionalizados, mas também como um mecanismo institucionalizador, à medida que se coloca como árbitro de vários outros conflitos. Do ponto de vista regulacionista, a lógica política e, por conseguinte, as ações do Estado, não são redutíveis à lógica econômica. Ainda que estejam em constante interação, a política e a economia são esferas autônomas, com práticas, regras e objetivos distintos (Théret, 1992; Palombarini e Théret, 2001). Assim, os interesses econômicos de indivíduos e grupos sociais não são diretamente expressos politicamente, precisam ser traduzidos e, não raras vezes, travestidos de “interesses coletivos”, sob ação das ideologias7 e do próprio ambiente institucional em vigor.

Essas mediações que se fazem necessárias permitem a emersão de blocos dominantes, mas, ao mesmo tempo, abrem a possibilidade do surgimento de divergências no seio desses mesmos blocos e, consequentemente, de seu esfacelamento, de sua recomposição, de sua transformação (Palombarini e Théret, 2001; Amable, 2005; Amable e Palombarini, 2005).

O “conjunto dos habitus e das formas institucionais concorrendo à reprodução” (Lipietz, 1987) é o que se denomina de modo de regulação, que, nos termos da formulação clássica de Boyer (1986), pode ser definido da seguinte maneira:

Todo o conjunto de procedimentos e de comportamentos, individuais e coletivos, que possuem a tripla propriedade de [1] reproduzir as relações sociais fundamentais por meio da conjunção de formas institucionais historicamente determinadas; [2] sustentar e “pilotar” o regime de

7 “Assim como a formação de grupos sociais, as demandas políticas não são simplesmente o reflexo de interesses

econômicos ‘objetivos’ dos agentes em questão. A expressão de uma demanda política depende do que é percebido como ‘legítimo’ pelos grupos sociopolíticos. Essa percepção e a própria expressão da demanda política tomam forma sob a influência das ideias dominantes. As ideias, ou as ideologias, se nos referirmos a um corpo organizado de ideias, fornecem os parâmetros dentro dos quais os interesses dos agentes podem ser coletivamente expressos sob a forma de demanda política. Essas, por sua vez, influenciam a percepção de seus próprios interesses pelos agentes, bem como a formação de grupos sociais e a expressão de suas demandas” (Amable, 2005, p. 70; grifos no original; tradução própria).

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acumulação em vigor; [3] assegurar a compatibilidade de um conjunto de decisões descentralizadas, sem que seja necessária a interiorização pelos atores econômicos dos princípios do ajustamento do sistema como um todo (Boyer, 1986, p. 54-55; tradução própria).

1.1.2. As cinco formas institucionais

A abordagem regulacionista busca analisar as regularidades do processo de acumulação de capital no arranjo institucional em que este se opera. Mas quais instituições são relevantes? Justamente aquelas que representam a codificação das relações sociais sobre as quais se baseia o sistema de produção capitalista, segundo a tradição marxista: a relação salarial, em que o valor do trabalho se distingue daquele pago à força de trabalho – determinado pela relação entre a taxa de exploração necessária à acumulação de capital e as condições de reprodução da força de trabalho (da “norma de consumo”, para empregar o termo utilizado por Aglietta (1976)) – e a relação concorrencial estabelecida pelas unidades independentes de produção, em que o acesso à moeda é o objetivo último.

A manifestação concreta, ou ainda, a identificação das características dessas relações fundamentais, tais como se apresentam na realidade histórica, constitui formas institucionais (ou estruturais, nos primeiros trabalhos regulacionistas). O estudo dessas formas permite “esclarecer a origem das regularidades que canalizam a reprodução econômica ao longo de um dado período histórico” (Boyer, 1986; p. 86; tradução própria). São cinco as formas institucionais identificadas pela abordagem regulacionista: a moeda e o crédito; as condições de concorrência, as relações salariais, as intervenções do Estado na economia e as formas de integração na economia mundial.

A moeda assume um papel essencial no sistema capitalista, primeiro porque é condição necessária para a generalização das relações mercantis e depois porque é a forma privilegiada de cristalização da riqueza. A abordagem regulacionista partilha, assim, do conceito keynesiano de economia monetária da produção, em que a moeda não representa apenas uma mercadoria em particular, mas sim uma instituição social que coordena as relações entre os centros de acumulação, os assalariados e demais agentes do mercado: “a dinâmica cruzada do crédito e da moeda age sobre o curso da acumulação, da produção e do emprego e não apenas sobre o nível geral dos preços” (Boyer, 1986; p. 49; tradução própria).

[A] moeda é o vínculo social primordial das economias mercantis. (...) Na concepção do vínculo social, a moeda é o polo coletivo da relação indivíduo-social. A relação entre dois indivíduos pode ser dita mercantil porque é mediada pela moeda. Os indivíduos podem exprimir seus interesses de forma independente e, eventualmente, conflituosa porque suas ações devem respeitar uma restrição social, a de ter de saldar suas dívidas em moeda. Assim, a moeda é o princípio de pertencimento à sociedade mercantil dos indivíduos livres para perseguir seus próprios fins sem ter de coordenar seus atos (...). Transformar a moeda em capital é aprofundar a oposição entre os bens produzidos pela atividade individual e a moeda. (...) a moeda que se acumula como capital é moeda que não desaparece no pagamento das dívidas. A contrapartida

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da acumulação do capital é necessariamente o desenvolvimento do endividamento. Procurar acumular moeda por ela mesma, como finalidade da atividade econômica, é buscar o poder sobre o outro, uma vez que a moeda é o vínculo social de base (Aglietta, 1997, p. 415-417; tradução própria).

As configurações específicas do conjunto de normas monetárias compõem o que os regulacionistas denominam de regimes monetários e incluem a gestão da criação de moeda pela autoridade monetária, o conjunto de regulamentação do sistema bancário, as formas de atuação dos bancos centrais como emprestadores de última instância e as restrições aos fluxos financeiros entre países (Guttmann, 2002).

Diversas também são as formas que podem assumir as relações de trabalho, uma vez que devem acomodar seus conflitos inerentes. Fiel à tradição marxista, os regulacionistas consideram que o trabalho não é uma mercadoria como as outras devido à distinção entre trabalho, empregado na produção de mercadorias e coordenado pelos capitalistas, e força de trabalho, cujo custo de reprodução é a base da definição do salário. A diferença entre essas duas categorias é apropriada pelo capitalista sob a forma de mais-valia (Boyer, 2004)8.

A relação salarial é a separação que torna um conjunto de indivíduos livres incapazes de se constituir em produtores privados no quadro da economia mercantil. Os assalariados também são indivíduos livres para perseguir seus próprios fins, mas sob a restrição da privação da propriedade. Seu acesso à moeda passa pelo contrato de trabalho que é uma venda de horas de trabalho contra um salário. A subordinação aos capitalistas se exerce na produção, que não é um lugar de troca porque o contrato de trabalho dá o direito aos capitalistas de fazer os assalariados executarem o trabalho sob o controle deles. As empresas são então organizações específicas, uma vez que nelas se exerce um poder hierárquico para produzir mercadorias em vista de acumular dinheiro. (...) Coletivamente, o modo de acesso às suas [dos assalariados] condições de existência é o trabalho sob a autoridade dos proprietários dos meios de produção. Individualmente, os assalariados são livres para alugar sua capacidade de trabalho a não importa qual capitalista. Eles são igualmente livres para dispender seu salário como eles bem entendem. Há, então, uma dupla mobilidade que pode ser um regulador da acumulação do capital: aquela dos próprios assalariados que leva ao desemprego e aquela de seus modos de consumo (Aglietta, 1997; p. 418-419; tradução própria).

A relação salarial diz respeito, então, às diferentes formas de organização do processo de trabalho e do modo de vida dos trabalhadores. Segundo Boyer (1986; p. 49; tradução própria) “cinco componentes intervêm para caracterizar as configurações históricas da relação capital-trabalho: tipos de meios de produção, forma da divisão social e técnica do trabalho, modalidade de mobilização e de incorporação dos assalariados à empresa, determinantes da renda salarial,

8 É preciso dizer que a “interpretação regulacionista” de Marx está longe de ser aceita por outras correntes

marxistas, mas tampouco é consensual no seio dos próprios regulacionistas. Seria mais oportuno, talvez, falar no plural, de interpretações ou apropriações de conceitos e ideias dos escritos de Marx. Exemplo disso é discordância entre a defesa da teoria do valor por Lipietz (1983) e o seu abandono por Aglietta e Orléans (1982), que, inclusive, parece ter só se fortalecido com a proximidade entre regulacionistas e convencionalistas, como em Aglietta e Orléans (2002) e Orléans (2011). A agenda de pesquisa de Frédéric Lordon sobre a conexão indivíduo-sociedade a partir de Spinoza e Marx segue a mesma linha de rejeição do valor-trabalho (Lordon, 2010). O leitor interessado na questão pode encontrar uma via de entrada em Montalban (2012).

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direta ou indireta; enfim o modo de vida assalariada, mais ou menos vinculada à aquisição de mercadorias ou à utilização de serviços coletivos não mercantilizados”.

A terceira forma estrutural se refere ao tipo de relação entre as unidades de produção – ou ainda, centros de acumulação – cujas decisões são a priori independentes umas das outras (Boyer, 1986). As formas de concorrência se referem às estratégias adotadas por cada unidade produtora para se assegurar da existência de mercado para os bens que ela produz e ultrapassar o desempenho de outras unidades com quem entram em concorrência. Compreendem um processo de transformação técnica e organizacional, de precificação e de diferenciação das mercadorias produzidas. Nesse sentido,

[Os capitalistas] estão em concorrência para acumular capital. Seu enriquecimento é privado no sentido em que suas dívidas são apostas sobre o futuro (...). Para acumular capital, cada capitalista busca superar as restrições da divisão do trabalho existente. É o que dá ao capitalista seu dinamismo direcionado à mudança técnica, que altera profundamente a divisão do trabalho. Como a validação ou invalidação dessas apostas pela sociedade se prolonga no tempo, a avaliação a todo momento do capital implica um processo específico de compra e venda das dívidas privadas e dos direitos de propriedade capitalista. O capital dos capitalistas individuais é avaliado por uma circulação financeira. Essa avaliação é ela própria uma especulação sobre o futuro. São as apostas da comunidade financeira, isto é, dos outros capitalistas sobre a aposta dos capitalistas individuais (Aglietta, 1997, p. 419; tradução própria).

Dentre as diferentes formas de relação entre as unidades capitalistas de produção, são identificados três grandes regimes de concorrência canônicos. Um concorrencial, tendo na concorrência por preço a principal forma de relação entre os produtores; um do tipo monopolista, em que o preço é definido a partir de uma margem sobre o custo unitário de produção, assegurando assim uma determinada rentabilidade previamente definida pelo produtor; e um regime de concorrência administrada, em que é frequentemente verificado algum tipo de intervenção do Estado sobre o processo de determinação de preços, limitando assim as margens de lucro, mas, ao mesmo tempo, dificultando uma guerra de preços (Boyer, 1986 e 2004).

O esforço de precisar as formas institucionais exigiu considerar, entretanto, o espaço sobre o qual elas operam. O estudo sobre a história de sua constituição sugeriu que a formação dos Estados-nação teve um papel central, se apresentando como o espaço de circulação de uma moeda e o palco de conflitos de classe.

A partir dessa constatação, os regulacionistas adicionaram outras duas formas institucionais à sua matriz analítica: as formas de intervenção do Estado na economia e as formas de relação entre os Estados-nação. As intervenções do Estado na economia são produtos da interação entre a esfera econômica e a esfera política, em que não existe autonomia absoluta entre elas, tampouco a subordinação da última à primeira. À medida que os conflitos políticos, em geral, são localizados, isto é, se dão em torno de uma ou outra questão relativamente isolada

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frente a outros conflitos, não raras vezes os compromissos assim resultantes, sob o arbítrio do Estado, podem assumir um caráter contraditório entre si.

Por um lado, as intervenções estatais são parte importante da codificação das relações sociais em formas institucionais. Como Boyer (2004) ressalta, a história sugere que a escolha de um regime monetário é, em grande medida, uma escolha política, dada a importância de um banco central, sem o qual as moedas privadas não existiriam por muito tempo. No que diz respeito à concorrência, é justamente a intervenção estatal que busca limitar estratégias que visam à criação de poder de mercado e à concentração, garantindo dessa maneira um ambiente concorrencial. Já nas relações de trabalho, ainda que a presença da ação estatal não seja uma condição necessária, o Estado tende a funcionar muitas vezes como árbitro dos conflitos entre empregadores e assalariados, institucionalizando acordos e zelando para que eles sejam respeitados. Ademais, ao assegurar direitos conquistados pelos trabalhadores relativos ao bem-estar social, o Estado delineia o conceito de cidadania e interfere de maneira importante no modo de regulação da economia.

Por outro lado, essas intervenções também assumem uma natureza conjuntural, agindo sobre as flutuações econômicas de curto prazo. Igualmente deste ponto de vista, deve-se ter em mente a interação entre o econômico e o político. Ainda que a política econômica tenha, sobretudo, efeitos econômicos, ela deve responder a uma lógica intrinsecamente política, no sentido em que precisa ser compatível com a continuidade da estrutura administrativa e fiscal do Estado e reproduzir assimetrias de poder, de maneira a favorecer a preservação do governo de determinado grupo social. A tradução de interesses econômicos em interesses políticos e sua conveniência à sustentação do governo pode fazer com que a política econômica adote ações ineficazes do ponto de vista econômico (Palombarini e Théret, 2001).

A quinta forma estrutural identificada pela TR consiste na relação entre Estados nacionais, ou ainda, na adesão de um país ao regime internacional. Ela pode ser expressa da seguinte forma: “essa adesão se define pela conjunção das regras que organizam as relações entre o Estado-nação e o resto do mundo, tanto em matéria de trocas de mercadorias como da localização das produções, via investimento direto ou de financiamento dos fluxos e dos saldos externos” (Boyer, 1986; p. 51; tradução própria).

O regime internacional é capaz de criar janelas de oportunidades que impulsionam a acumulação em uma dada economia, mas também pode limitá-la ao lhe impor restrições cambiais ou de acesso a mercados. Um mesmo regime internacional pode, inclusive, gerar oportunidades para alguns países e restrições para outros. A discussão proposta pela abordagem regulacionista não se limita, então, apenas ao grau de abertura das economias, mas se debruça

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sobre as características de sua inserção na economia internacional. Tal inserção é o resultado da interação entre formas estruturais nacionais e o regime internacional. É importante ressaltar que a determinação dessa interação não é unidirecional, no sentido de que tanto as formas estruturais nacionais respondem a uma determinada configuração internacional, como o próprio regime internacional é influenciado pelas estratégias de inserção de cada país. Tal influência está vinculada à posição hierárquica de cada país no regime internacional, de acordo com sua importância na acumulação de capital tomada em âmbito global.

1.1.3. Regime de acumulação

A interação dessas cinco formas institucionais ou estruturais sob configurações específicas em um determinado período histórico, constituindo um modo de regulação, pode fazer emergir coerências que assegurem, por algum tempo, certa regularidade ao processo de acumulação de capital, reduzindo as tensões que ele próprio produz. Neste caso, emprega-se o termo “regime de acumulação”, um período em que a acumulação de capital ocorre em um ambiente de relativa estabilidade institucional, representando uma continuidade da relação de força dos grupos sociais, e gera uma evolução macroeconômica sem grandes sobressaltos.

Um regime de acumulação se estabelece quando o processo de acumulação se associa a um modo de regulação que se mostra eficaz à reprodução de seus traços característicos.

Em seu movimento, o capitalismo desencadeia conflitos e disfunções que colocam obstáculos a seu próprio desenvolvimento. Mas também suscita forças que se opõem a seu desejo de acumulação e que acabam por inscrever essa oposição dentro de mediações sociais (p. 420-421). Um modo de regulação é um conjunto de mediações que mantêm as distorções produzidas pela acumulação de capital dentro de limites compatíveis com a coesão social no seio das nações (p. 412) (Aglietta, 1997; tradução própria).

Em sua definição, Boyer (1986) chama atenção para cinco conjuntos de regularidades socioeconômicas que viabilizariam um processo de acumulação ao longo de tempo:

[1] um tipo de evolução da organização da produção e de relações dos assalariados com os meios de produção; [2] um horizonte temporal de valorização do capital sobre o qual se aplicam os princípios de gestão; [3] uma divisão do valor que permite a reprodução dinâmica das diferentes classes ou grupos sociais; [4] uma composição da demanda social que valida a evolução tendencial das capacidades de produção; [5] uma modalidade de articulação com as formas não capitalistas, desde que essas tenham um papel determinante na formação econômica estudada. Donde a definição de um regime de acumulação. Será designado sob esse termo o conjunto das regularidades que asseguram uma progressão geral e relativamente coerente da acumulação do capital, isto é, que permite resolver ou estender no tempo as distorções e desequilíbrios que nascem em permanência do próprio processo (p. 46; tradução própria).

Nos primeiros trabalhos regulacionistas, como em Aglietta (1976), tendo em vista que o objetivo era compreender as características e o funcionamento do capitalismo do pós-Segunda Guerra Mundial nos países desenvolvidos, bem como sua crise, o conceito de regime de acumulação (também denominado, no início, de regime de crescimento) acabou por incorporar aspectos próprios dessa etapa do capitalismo, que foi denominado de fordismo. Assim, muitas

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vezes associa-se, implícita ou explicitamente, à ideia de regime de acumulação a existência de uma acumulação intensiva de capital, melhora das condições de vida dos trabalhadores, em específico, ou da população de um país, como um todo, bem como a baixa frequência de crises, inclusive aquelas de caráter mais conjuntural. Como argumenta Clévenot (2008), essa confusão é uma das causas da dificuldade em se identificar um regime de acumulação a suceder o fordismo.

Esse não é um problema totalmente superado, como será discutido na seção 1.3.2. Os autores pioneiros da abordagem ainda se apegam à ideia subjacente às primeiras formulações do conceito, a exemplo de Aglietta (1997):

O capitalismo é uma força movida pelo desejo individual de acumular dinheiro. Essa força se converte em um dinamismo que transforma a divisão do trabalho. Sendo intrinsecamente criador e destruidor, o capitalismo só pode levar o progresso à sociedade se conjuntos de mediações, formando um modo de regulação, estabelece uma coerência entre os desequilíbrios inerentes a seu movimento. O efeito global dessa coerência, quando realizada, é um regime de crescimento (p. 426, grifos do original; tradução própria).

Outros, contudo, buscam utilizar o conceito fora de suas heranças fordistas. Lordon (2000, 2008) o define como uma questão de hierarquia entre as formas institucionais, associada ao acúmulo de poder político de determinados grupos sociais. A cada momento histórico, uma determinada forma institucional pode passar a ocupar o topo hierárquico “que lhe permite impor sua lógica e suas restrições a todos os outros complexos institucionais constituintes de um modo de regulação”.

Dessa forma, à diferença das formulações iniciais, a existência de um regime de acumulação não implica necessariamente uma trajetória econômica que produza melhora na vida dos trabalhadores ou da sociedade como um todo. Basta que o modo de regulação a ele associado seja capaz de conter, sempre de forma parcial e passageira, as contradições e desequilíbrios gerados pelo processo de acumulação de capital, de maneira a diluir os conflitos políticos potenciais que possam levar a uma redefinição dos grupos sociais dominantes e, por consequência, uma alteração da hierarquia institucional que marca o regime de acumulação. É desta forma que é compreendido um regime de acumulação nesta tese.

Um regime de acumulação poderia, inclusive, existir com níveis distintos de eficácia de seu modo de regulação, em função da maior ou menor coerência estabelecida entre as formas institucionais. Se a mudança de regime é provocada pela alteração na hierarquia dessas formas, em que aquela a se tornar superior tende a alterar as demais, isso não ocorre instantaneamente nem integralmente. Isso porque existe certa resistência à transformação, uma inércia decorrente das características do passado (path dependence) das instituições, bem como das interações entre elas, que tendem a reforçar mutuamente seus formatos (complementariedade

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institucional). Tal inércia é operada pela resistência dos grupos sociais que se veem diretamente prejudicados pelas transformações derivadas da nova hierarquia institucional9.

A emersão de um novo regime, a depender do seu antecessor, ou melhor, das configurações institucionais que suportavam o regime precedente, pode contar com um modo de regulação mais eficaz, se as transformações institucionais vindas da nova hierarquia encontrarem menor inércia ou maior compatibilidade com as formas anteriores, ou menos eficaz, se elas romperem as coerências precedentes sem conseguir colocar novas no lugar. Pode haver, então, crises com alguma frequência e uma diversidade de desempenho econômico entre países sob um mesmo regime, desde que não coloquem em xeque a hierarquia institucional que o caracteriza10 (Amable, 2005).

Um último aspecto a ser destacado em relação ao conceito de regime de acumulação é que não há necessidade de uma acumulação de capital intensiva. Como sintetiza Boyer (2004), a compreensão da história do capitalismo como uma sucessão de regimes mostra a ocorrência tanto de processos extensivos (economia inglesa entre os séculos XVIII e XIX) como intensivos (economia americana após a Segunda Guerra Mundial) a predominarem em um ou outro período.

1.1.4. Crises e a dinâmica dos regimes de acumulação e dos modos de regulação

Se a noção de regulação privilegia os mecanismos por meio dos quais os conflitos e as contradições são contornados e/ou amenizados de forma a permitir a continuidade da acumulação de capital, dando a ela características específicas a partir das quais é possível falar de um regime de acumulação, não é negada a inevitável ocorrência de crises. Vale lembrar, que a regulação é sempre parcial e temporária: “a crise é apenas a outra face da regulação: uma exprime, a outra contém a conflitualidade originária das reações sociais” (Lipietz, 1985, p. 14; tradução própria).

Dois tipos de crise ganham importância na abordagem regulacionista. Em primeiro lugar, aquelas decorrentes das flutuações conjunturais da economia, reflexos das tensões produzidas pela acumulação de capital, mas que são contidas pelo modo de regulação em vigor. São as chamadas “petites crises”. Em segundo lugar, estão aquelas que colocam em xeque o próprio modo de regulação, abrindo um período de acirramento dos conflitos sociais e políticos

9 Os conceitos de complementaridade e inércia institucional, bem como de path dependence, são analisados em

uma perspectiva regulacionista em Amable (2000), Amable, Ernst e Palombarini (2002) e Boyer (2005).

10 Este argumento é utilizado para explicar o desempenho econômico (ritmo de crescimento do PIB, sobretudo)

inferior de países da Europa, a exemplo da França, em comparação ao dos EUA a partir dos anos 1990. A respeito, ver Amable (2005).

(29)

que podem levar a transformações institucionais importantes de maneira a desestabilizar o regime de acumulação vigente. Desse processo é possível emergir um novo regime e um novo modo de regulação a ele associado. São as “grandes crises”.

As crises de ambas naturezas guardam, entretanto, uma relação entre si. As crises que “cabem” no modo de regulação não são equacionadas sem consequências. É possível, nesses episódios, uma maior concentração e centralização financeira, alterações na gestão das empresas, mudanças na distribuição da renda etc., bem como transformações institucionais localizadas, de menor monta, que alteram apenas de forma muito lenta e imprevisível o modo de regulação.

A esse processo de transformação “silencioso” e endógeno ao modo de regulação, os regulacionistas denominam endometabolismo (Lordon, 1993). Os ajustamentos produzidos pelo próprio modo de regulação vão cumulativamente dificultando os novos ajustamentos no seio de uma mesma forma institucional ou, então, restringindo os ajustamentos em outras: “de alguma maneira, o sucesso do passado contribui para a gênese da crise de hoje, para seu desencadeamento e para sua forma exata” (Boyer, 1986, p. 64; tradução própria).

Entretanto, uma crise do modo de regulação também pode ser desencadeada por outras circunstâncias, como por perturbações de caráter inédito, para as quais o modo de regulação em funcionamento não apresenta mecanismos de ajustamento. Choques externos podem desencadear esse tipo de perturbação, mas aqui a ameaça ao modo de regulação estaria menos vinculada à amplitude do choque do que à incapacidade de acomodá-lo. Um segundo fator de desestabilização pode ter origem na interação entre as esferas política e econômica, na tradução dos interesses econômicos dos grupos sociais dominantes em interesses políticos a serem mais ou menos reconhecidos enquanto interesses coletivos. As dificuldades nessa passagem podem levar à contestação dos compromissos institucionalizados sobre os quais a regulação foi construída.

Em geral, é difícil identificar uma única causa para a crise de um modo de regulação, justamente porque as formas institucionais apresentam diversas interações e os fatores geradores da crise podem se desenvolver em mais de uma delas. A diversidade de explicações para uma crise é interpretada pelos regulacionistas como exemplo da complexidade da crise de um modo de regulação.

O esfacelamento da regulação pode ser ainda resultado de uma crise mais profunda afetando diretamente o regime de acumulação, que:

[...] se define pela elevação das contradições e pela chegada aos limites no seio das formas institucionais mais essenciais, as que condicionam o regime de acumulação (...). Ao longo de tal episódio, são questionadas as regularidades mais essenciais, que são subjacentes à organização

Referências

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