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Integração ao mercado global de capitais

Capítulo 2. A transformação do financiamento habitacional e sua integração ao mercado

2.4. Integração ao mercado global de capitais

O desenvolvimento das técnicas de securitização estreitou, de forma inequívoca, os laços entre uma modalidade específica do mercado de crédito, a saber, o financiamento habitacional, e o mercado de capitais. Desde então, bancos em geral, inclusive aqueles sem carteiras comerciais, e instituições financeiras não bancárias, como os investidores institucionais, puderam mais facilmente participar dos ciclos imobiliários por meio da aquisição de títulos lastreados nesses ativos. E isso não ficou restrito às fronteiras americanas, diante do concomitante avanço da liberalização financeira e da internacionalização dos fluxos de capitais. A compra de títulos financeiros em algum nível referenciados a ativos imobiliários foi progressivamente se firmando como forma privilegiada de o capital estrangeiro participar da valorização desses mercados. Essa mediação realizada por ativos financeiros permitiu contornar vários inconvenientes da aquisição direta de imóveis por agentes estrangeiros, especialmente de natureza regulatória e tributária, aos quais os agentes financeiros e estrangeiros estão pouco familiarizados. Dinâmicas locais da ocupação dos espaços urbanos e as assimetrias de informações que costumam caracterizar os mercados imobiliários tampouco facilitam as tomadas de decisões desses agentes. Além disso, existe um custo elevado de carregamento em decorrência da depreciação física do imóvel, custos de transação importantes e baixa liquidez. É por essas razões que títulos financeiros representativos desses ativos ganharam projeção.

85 Enquanto esse tipo de intervenção é conhecido na Grã-Bretanha como “nationalization”, os americanos adotam

o termo “conservatorship”, mesmo no caso em que uma instituição pública assuma o controle de uma corporação privada.

86 Nome dado aos empréstimos realizados pelos 12 Federal Home Loan Banks aos seus bancos associados, como

Para imóveis comerciais e de escritórios existem, desde os anos 1980, fundos especializados no investimento e na gestão de ativos imobiliários, os Real Estate Investments Trusts (REIT)87. À semelhança do que ocorreu com o crédito bancário, esses fundos consistiram

em um mecanismo de transformação dos imóveis em títulos negociáveis (inclusive em bolsa de valores) que forneciam aos seus detentores o direito de apropriação da valorização imobiliária e do recebimento de aluguéis. Trata-se, portanto, de um processo de securitização dos imóveis. Desde então, o investimento nesses ativos imobiliários também pode ser feito indiretamente, em escala global, por meio da compra de títulos referenciados a um portfólio de ativos imobiliários (Aveline-Dubach, 2008).

No caso dos imóveis residenciais, contudo, essa mediação passa pela emissão de

mortgage-backed securities, pelos vários outros títulos emitidos a partir do financiamento habitacional e, mais recentemente, pelos derivativos de crédito, como bem apontou Aalbers (2008 e 2016)88.

No centro desse movimento de internacionalização de ativos referenciados em imóveis residenciais encontram-se Fannie Mae e Freddie Mac. Não poderia ser diferente porque essas instituições eram, e continuam sendo, os pilares do funcionamento do mercado secundário de hipotecas, securitizando a maior parte das carteiras. Mas também existe outra razão, possivelmente de mesma importância: seu status de Government-Sponsored Enterprise implicava, aos olhos dos agentes financeiros nacionais e internacionais, a existência de garantias implícitas do Estado americano que cobrissem seus riscos de crédito. Tudo se passava, então, como se seus títulos de dívida e suas MBS fossem títulos disfarçados do Tesouro americano.

87 Os primeiros REIT surgiram nos EUA já nos anos 1960 como parte do processo de “institucionalização da

poupança”. A crise das thrifts dos anos 1980 e o avanço de novas formas de intermediação financeira deram projeção a esses fundos, mas o impulso maior ocorreu em 1993, quando o governo americano autorizou os fundos de pensão a adquirirem cotas dos REIT. Essa medida possibilitou a ampliação da liquidez desses títulos atraindo novos investidores e incentivando a criação de novos fundos. Dessa maneira, o valor de mercado dos REIT saltou de US$ 8,7 bilhões para US$ 389,3 bilhões entre 1990 e 2010, na esteira da valorização dos imóveis ocorridas nesse período, representando um aumento de 0,3% para 2,9% da capitalização da New York Stock Exchange (NYSE).

88 A dificuldade do avanço da securitização dos imóveis residenciais, por meio de instrumentos do tipo REIT,

repousa sobre diferentes aspectos. Em primeiro lugar, a atividade de locação tem caráter pulverizado, isto é, os contratos de aluguel são firmados com inúmeras famílias, o que eleva os custos de gestão desses ativos. Em segundo lugar, não é rara a existência de uma regulamentação (ou jurisprudência) da relação entre locadores e locatários que se mostre mais favorável a estes últimos, ao menos da perspectiva dos investidores. Em terceiro lugar, a coleta de informações e a produção de dados estatísticos sobre a evolução dos mercados residenciais ainda impõem complicações na maioria dos países – mesmo nos EUA que já avançaram mais nessa questão – e não são homogeneizadas entre eles, o que dificulta a diversificação internacional do investimento nesse segmento. Por isso, o segmento residencial representava algo como 10% a 15% dos fundos imobiliários, certamente influenciado pela valorização mais acentuada desses imóveis a partir dos anos 2000 (Aveline-Dubach, 2008; Nappi-Choulet, 2009; Seeds Finance, 2008).

O caráter implícito dessas garantias decorre do fato de que nunca houve nenhuma instrução legal que obrigasse o governo americano a socorrê-las em caso de insolvência. No entanto, em contrapartida do caráter público de suas missões, tanto Fannie Mae como Freddie Mac gozavam de privilégios que funcionavam como indícios do suporte do governo federal. Entre tais privilégios, além da isenção de pagamentos de impostos locais e estaduais, estão o mesmo tratamento regulatório concedido aos títulos do Tesouro, isentando-as de submeter-se às regras de registro da Security Exchange Commission (SEC); a elegibilidade de seus títulos de dívida e MBS às operações de open market realizadas pelo Federal Reserve; e nenhuma distinção regulamentar entre seus títulos e os treasuries enquanto aplicações de bancos e instituições de depósito (CBO, 1991).

A esse tratamento relativamente equânime entre os títulos do Tesouro e aqueles emitidos por Fannie Mae e Freddie Mac soma-se o apoio tradicionalmente forte do Congresso americano, de maneira a garantir-lhes excelentes avaliações de riscos nos mercados financeiros e custos baixos de captação – em geral muito próximo dos juros pagos pelos títulos de dez anos do Tesouro. Antes da eclosão da crise das hipotecas subprime, o diferencial dos juros pagos por Fannie Mae e Freddie Mac e pelo Tesouro em títulos de 10 anos não excedia 0,5 ponto percentual (CBO, 1991 e 2010).

A regulamentação prudencial, inclusive, ratificava a percepção de risco dos títulos emitidos por essas GSE, exigindo dos bancos menos capital regulamentar em comparação ao carregamento de carteiras de crédito hipotecário. O primeiro Acordo da Basileia, de 1988, impunha um requerimento de capital de 4% sobre essas carteiras em comparação com apenas 1,6% dos títulos emitidos por Fannie Mae e Freddie Mac. Assim, além da flexibilidade conferida pela maior liquidez desses títulos, a arbitragem de capital realizada pelos bancos também funcionou como um grande impulsionador do mercado secundário de hipotecas (Cintra e Prates, 2008).

Assim, apoiados pela aceitação dos mercados, os títulos de dívida e as MBS emitidas por Fannie Mae e Freddie Mac participaram do movimento de internacionalização dos mercados financeiros americanos. Segundo as estatísticas do Departamento do Tesouro dos EUA89, o volume de papéis das GSE em posse de investidores estrangeiros avançou de US$ 5

bilhões para US$ 48 bilhões entre 1978 e 1989, na esteira dos títulos públicos em mãos de não

89 As informações sobre a posição estrangeira em ativos financeiros americanos são acompanhadas pelo U.S.

Treasury International Capital System. Os dados estão disponíveis em: <https://www.treasury.gov/resource- center/data-chart-center/tic/Pages/fpis.aspx >.

residentes que, no mesmo período, saltaram de US$ 39 bilhões para US$ 333 bilhões90 (Gráfico

25).

Gráfico 25. Valor dos títulos do Tesouro e das Agências americanas em poder de não residentes – 1978 a 2010

Fonte: U.S. Department of the Treasury (https://www.treasury.gov/resource-center/data-chart- center/tic/Pages/fpis.aspx)

Obs.: Os dados são de estoques (foreign holding) e não de fluxos de títulos de longo prazo, incluindo o total de

agências com apoio governamental (Government Sponsored Enterprise) – sobretudo Fannie Mae e Freddie Mac – e agências federais, como a Ginnie Mae.

A despeito disso, o grau de internacionalização desses ativos associados ao financiamento imobiliário manteve-se restrito em relação àquele dos treasuries americanos. Enquanto no caso destes últimos a proporção em poder de estrangeiros do estoque total de títulos em negociação chegou a 22%, em 1989, não passou de 4,1% no caso dos primeiros. De fato, como muitos já chamaram atenção anteriormente, a exemplo de Plihon (1996), a globalização financeira nutriu-se da importante expansão da dívida pública desde os anos 1980, ensejada pela deterioração das finanças do Estado em um ambiente de desaceleração do crescimento econômico e de taxas de juros reais mais altas.

O grau de internacionalização dos papéis das GSE apresentou, contudo, relativo alinhamento com aquele de outros ativos financeiros privados. Em 1984, por exemplo, apenas 2,5% dos títulos de dívida corporativa estavam em mãos de estrangeiros, praticamente a mesma proporção dos títulos das GSE (2,6%). Dez anos depois, a convergência se deu em relação às ações, cujo grau de internacionalização era de 5,1%, inferior àquele dos títulos emitidos por Fannie Mae e Freddie Mac (5,6%) (Gráfico 26).

90 Os dados referem-se apenas a títulos de longo prazo, ou seja, com vencimentos superiores a 1 ano, ou então

àqueles títulos em que a ideia de maturidade não se aplica, como as ações. Foi somente a partir de 2002 que o Tesouro americano passa a divulgar informações a respeito de títulos de curto prazo (inferior a 1 ano) em posse de não residentes.

Gráfico 26. Evolução dos títulos das Agências americanas em poder de não residentes – 1978 a 2010

Fonte: U.S. Department of the Treasury (https://www.treasury.gov/resource-center/data-chart- center/tic/Pages/fpis.aspx)

Obs.: Os dados são de estoques (foreign holding) e não de fluxos de títulos de longo prazo, incluindo o total de

agências com apoio governamental (Government Sponsored Enterprise) – sobretudo Fannie Mae e Freddie Mac – e agências federais, como a Ginnie Mae. Internacionalização do Mercado significa a participação do portfólio de estrangeiros no valor total desses mercados.

Mudança substantiva viria a ocorrer apenas nos anos 2000. A expansão do crédito que ajudou a impulsionar a valorização dos ativos imobiliários residenciais na maior parte desta década e a busca por rentabilidade, dados os patamares historicamente baixos das principais taxas de juros do mundo, atraíram crescentemente o capital estrangeiro. A internacionalização dos papéis das GSE saltou de 7,3% em 2000 para inéditos 20,8%, em 2008 (Gráfico 26). Neste ano, o peso de não residentes nos mercados acionários (10,4%) ficou bastante aquém desse patamar, que por pouco não ultrapassou aquele das dívidas corporativas (21,8%).

Em termos absolutos, o volume de títulos das GSE classificados como de longo prazo foi de US$ 1,46 trilhão, em 2008. Somados os títulos de curto prazo, esse montante chega a US$ 1,63 trilhão. Do portfólio total de não residentes, 14% estava alocado nesses títulos em 2008, o que não é nada desprezível considerando que os títulos do Tesouro americano respondiam por 22% desse portfólio.

Entretanto, esses valores não conseguem dar conta do quadro geral. A parcela dos MBS emitidos por bancos privados – que caracterizam em boa medida a expansão do financiamento

habitacional nos anos 2000, especialmente do segmento subprime – a integrar as aplicações de investidores estrangeiros em ativos financeiros americanos ainda não está contemplada nesses montantes. Tais papéis só passaram a ser identificáveis nas estatísticas do Departamento do Tesouro dos EUA a partir de 2006. Foi no ano seguinte que atingiram seu máximo, US$ 902 bilhões em poder de não residentes, caindo para US$ 760 bilhões já em 2008, diante dos sinais de crise.

Juntos, os títulos de longo e curto prazo das GSE e os MBS privados somaram US$ 2,1 trilhões em 2008, representando uma fatia de 20,3% do portfólio de não residentes, valor não muito distante daquele dos títulos públicos (25%) e dos títulos de dívida corporativa (25,8%).

Isso decorre do fato de que muito dos fluxos de capitais que os EUA atraíram nos anos 2000 se destinaram à compra desses títulos. Atendo-se apenas aos ativos financeiros, as compras líquidas de papéis de longo prazo das GSE atingiram o pico de US$ 286,5 bilhões em 2006, superando as de títulos do Tesouro e de ações.

Neste período, os fluxos de capitais recebidos pela economia americana tinham, em grande medida, origem nos países asiáticos, especialmente na China, com quem os EUA passaram a nutrir relações comerciais estruturalmente deficitárias em função da internacionalização produtiva de suas empresas – um dos aspectos do regime financeirizado nos EUA, conforme visto no Capítulo 1. Os dados do U.S. Treasury International Capital System sugerem que a compra de ativos financeiros americanos pela China priorizou crescentemente os títulos associados ao financiamento imobiliário, com destaque àqueles emitidos pelas GSE, apoiados em boas avaliações de riscos produzidas pelas agências de rating e pelo consenso reinante nos mercados acerca de suas garantias implícitas.

Do total de títulos de longo prazo emitidos pelas GSE em poder de investidores estrangeiros, a participação da China progrediu de 12% em 2002 para 25,9% em 2006 e finalmente para 36% em 2008. Esses ativos, que representavam 32% do portfólio chinês em ativos financeiros dos EUA, chegaram a atingir 43,7% em 2008, o mesmo patamar ocupado pelos títulos do Tesouro (43,3%).

Como a progressão chinesa nesse mercado foi acompanhada de parcelas cada vez maiores desses títulos nas carteiras de investidores oficiais, tais como de bancos centrais, é provável que tenha sido influenciada pela alocação das reservais cambiais da China91. Entre

2002 e 2008, o peso dos investidores oficiais na posição de não residentes em papéis das GSE saltou de 27% para 66%.

91 Como alerta o FMI, a China, dentre outros países, não revela a composição de suas reservas. Ver mais a respeito

Entretanto, a crise das hipotecas subprime revelou que os canais comunicantes entre o financiamento habitacional nos EUA e os mercados financeiros internacionais eram muito mais complexos e diversificados do que a aquisição por estrangeiros dos títulos da Fannie Mae e Freddie Mac e daqueles emitidos pelos bancos privados, como foi exposto na seção anterior. Não é por outra razão que a escalada da inadimplência neste segmento do financiamento habitacional levou rapidamente à turbulência os mercados financeiros internacionais.

A busca por rentabilidade, dado o ambiente de taxas de juros baixas e elevada liquidez internacional, tinha impulsionado fundos de investimento e bancos internacionais a assumirem posições nos inúmeros instrumentos financeiros emitidos a partir da expansão do mercado hipotecário americano. As classificações de baixo risco que as agências de rating conferiam a esses títulos tranquilizavam os agentes e reforçavam a convenção favorável à sua aquisição.

O aumento da inadimplência para níveis não esperados e o downgrade dos títulos que as agências se viram forçadas a realizar impuseram, num primeiro momento, perdas importantes a muitos agentes americanos e estrangeiros. Diante da dificuldade de se avaliar os riscos e de identificar os agentes mais expostos a eles, a situação produziu forte incerteza nos mercados. As operações com derivativos de crédito realizadas nos mercados de balcão tiveram um papel fundamental na elevação da incerteza entre os agentes, devido tanto às características desses derivativos (que, como dito anteriormente, envolvem o principal do montante a que se refere e não apenas o ajustamento de margens como em outros derivativos), como às características desses mercados em que foram negociados – pouco regulamentados, de baixa transparência e sem um responsável pela compensação das posições e pela transferência de ganhos e de perdas92. Com isso, a liquidez dos mercados interbancários e de commercial papers, em âmbito

global, foi bastante restringida, inviabilizando a atuação daqueles agentes mais alavancados (Cintra e Farhi, 2008; Prates e Farhi, 2011).

Não é surpreendente, então, que os primeiros rumores de prejuízos causados por hipotecas subprime a hedge funds administrados por bancos americanos de investimentos, tal como o do Bear Stearns, em junho de 2007, também tenham sido ouvidos do outro lado do mundo acerca de fundos administrados por bancos australianos. Em agosto, o francês BNP- Paribas suspendeu os saques em três de seus fundos de investimento devido à impossibilidade

92 Esse aspecto é uma das principais diferenças entre os mercados de balcão e os mercados organizados, onde

câmaras de compensação são responsáveis pela garantia da transferência dos recursos entre os agentes perdedores e ganhadores do mercado. Por essa razão, é importante o risco de contraparte, isto é, o risco de o agente perdedor não ser capaz de honrar seu compromisso junto a agente vencedor, segundo os termos do contrato de derivativo estabelecidos por eles, nos mercados de balcão. Outro aspecto que distingue esses mercados é a existência de contratos padronizados e de normas de negociação nos mercados organizados. Ver mais a respeito em Farhi (2009).

de avaliar seus ativos, no início de setembro, o banco de investimentos alemão IKB relevou perdas devido a produtos estruturados envolvendo hipotecas subprime. A partir daí, a crise se alastrou como um rastilho de pólvora, ameaçando o sistema bancário internacional. Já em meados de setembro, por exemplo, as dificuldades de acesso ao interbancário enfrentadas pelo britânico Northern Rock levaram, pela primeira vez em 140 anos, a uma corrida bancária no Reino Unido (Freitas e Cintra, 2008; Bloxham e Kent, 2008).

2.5. Considerações finais

O processo de esgotamento do regime de acumulação fordista, que se consubstanciou na ruptura dos Acordos de Bretton Woods, foi acompanhado por aceleração da inflação e ampliação da variação de preços macroeconômicos importantes, como as taxas de juros e de câmbio, que colocaram em xeque o funcionamento do arranjo institucional do sistema financeiro americano herdado do New Deal.

As estratégias de adaptação à mudança do ambiente macroeconômico e a permanente busca de maiores retornos privados levaram à intensificação da criação de novos processos e instrumentos financeiros que resultaram não apenas na profunda transformação das operações de muitos agentes financeiros, tais como os bancos, mas também no surgimento de novos agentes. Esse movimento era seguido pelos órgãos oficiais, que regulamentavam e, por isso, reconheciam e legitimavam as novas práticas financeiras ou, então, ajudavam a criá-las em decorrência do equacionamento de crises e distúrbios que acompanharam o período.

Datam desse período, como vimos no Capítulo 1, subseção 1.3.1, o surgimento dos fundos de investimento, a profissionalização e expansão dos fundos de pensão e o desenvolvimento de novos mercados de dívidas e de derivativos financeiros. Os bancos americanos inventaram um amplo conjunto de novos instrumentos de captação de recursos e se lançaram em operações com títulos. As fronteiras entre bancos comerciais, de investimentos e, como vimos, hipotecários foram progressivamente desconstruídas, dando origem a verdadeiros supermercados financeiros.

Este capítulo buscou mostrar que as transformações do sistema de financiamento habitacional também foram profundas. A contratação de créditos hipotecários junto às famílias foi esfacelada em diferentes atividades desempenhadas por agentes específicos. O avanço dos grandes bancos sobre os segmentos do mercado de crédito voltados às famílias, como forma de arrefecer a perda de receita com seus clientes tradicionais decorrente do desenvilvomento dos mercados de capitais, conferiu lugar de destaque ao financiamento habitacional em suas estratégias. A criação de um mercado secundário de hipotecas pelo governo dos EUA e a adoção

da prática de securitização de hipotecas aliaram-se às mudanças do negócio bancário na direção de flexibilizar suas estruturas passivas e ativas, inclusive como forma de arbitragem regulamentar, e de elevar suas receitas com emissão de títulos, estreitando os laços entre o sistema americano de financiamento habitacional e os mercados de capitais. Uma vez que a mobilidade de capitais entre os países retirou seus bloqueios regulamentares, os títulos emitidos a partir das carteiras de crédito hipotecário dos EUA passaram a compor o portfólio dos principais agentes do sistema financeiro internacional.

Como resultado dessa nova estrutura unbundling originate-to-distribute, o sistema pôde diversificar os contratos disponíveis e tornar a oferta de recursos mais elástica ao longo do ciclo econômico. Foi possível, então, acomodar a mudança das condições de endividamento das famílias decorrente do surgimento de uma nova relação salarial no regime de acumulação financeirizado, caracterizada pelo avanço da flexibilização dos contratos de trabalho,