• Nenhum resultado encontrado

O avanço restringido da habitação social

Capítulo 3. O acesso à habitação e a priorização da propriedade residencial

3.1. O avanço restringido da habitação social

Nos EUA, as condições necessárias para que intervenções sistemáticas do Estado na habitação fossem praticadas, ao menos no âmbito federal, surgiram em decorrência da Grande Depressão, com a aprovação do Housing Act de 1937. Ao lado da reorganização do sistema americano de financiamento habitacional (Capítulo 2) em torno de agências públicas, como a Federal Housing Administration (FHA) e a Federal National Mortgage Association (posteriormente conhecida como Fannie Mae), que impulsionou o número de proprietários de residências, a legislação de 1937 permitiu a construção de imóveis residenciais para aluguel por agências públicas locais, as Public Housing Authorities (PHA), a partir da transferência de

recursos orçamentários federais93. A public housing, assim instituída, tornou-se a intervenção

mais direta do Estado no sistema habitacional, com o propósito de “aliviar o desemprego presente e recorrente e remediar as condições insalubres e inseguras de habitação e a aguda escassez de moradias decentes, seguras e higiênicas para famílias de baixa renda” (United States Housing Act of 1937 apud Stoloff, 2004; tradução própria).

Integrando o conjunto de políticas do New Deal, a intensificação das intervenções na habitação tinha o objetivo de, por um lado, funcionar como política de estímulo ao crescimento econômico e geração de emprego e, por outro lado, garantir habitação “decente” às frações de menor renda da população americana, sob o status de locatários, sem que a public housing rivalizasse e, muito menos, substituísse formas privadas, por meio do mercado imobiliário, de acesso à habitação. A participação máxima de pouco mais de 1% do parque residencial total dos EUA, atingido no início da década de 1980, ilustra a modéstia com que a construção do parque público encarava seu objetivo de garantir moradia à população americana de baixa renda94 (Stoloff, 2004).

Ao final dos anos 1930, o Housing Act de 1937 havia proporcionado a construção, com recursos federais, de 120 mil unidades habitacionais públicas por meio das Public Housing Authorities (PHA). Todavia, no início da década seguinte, à medida que parecia superada a Grande Depressão e que o setor da construção se mostrava recuperado95, as justificativas

macroeconômicas (geração de emprego e renda) que permitiram a intervenção federal no setor da habitação perderam capacidade de catalisação do apoio político necessário para a continuidade do mesmo ritmo de expansão do programa de public housing. Com isso, o parque viria atingir 170 mil unidades em 1949 (Tabela 7), um aumento de 42%, em grande medida sob

93 A preocupação com as condições de moradia das parcelas menos privilegiadas da sociedade tem sua origem em

movimentos sociais que passavam ao largo das iniciativas da política social dos Estados. Ações filantrópicas, partindo, sobretudo, de instituições religiosas, e a criação de cooperativas de trabalhadores constituíam os principais agentes do segmento social de habitação no final do século XIX e início do século XX. Nos EUA, o desenvolvimento de cooperativas habitacionais ocorreu após a Primeira Guerra Mundial e foi liderado principalmente por organizações formadas por grupos de imigrantes e/ou de membros de sindicatos de trabalhadores, com o objetivo de garantir a oferta de moradias populares (affordable housing). A primeira cooperativa desse tipo foi criada no Brooklyn, em Nova York, em 1918, por um grupo de artesãos imigrantes de origem finlandesa (Finnish Home Building Association). A cidade de Nova York também acolheu a Amalgamated Clothing Workers Union, criada em 1914, que, sob influência de valores socialistas, provia um conjunto diversificado de serviços a seus cooperados, como crédito, algumas formas de proteção social e, inclusive, moradia. As regiões americanas da Nova Inglaterra e do Centro-Oeste foram o principal palco de desenvolvimento de cooperativas de habitação popular, com destaque para o estado de Nova York, que passou oficialmente a incentivar essas cooperativas a partir da aprovação do Limited Dividend Housing Act de 1927 (Sazama, 2000).

94 Em 1979, a participação da public housing no estoque de residências totais nos EUA chegou a 1,4%, segundo

os dados de Schwartz (2006) e do U.S. Bureau of the Census (www.census.gov).

95 As garantias concedidas pela FHA contra o risco de default dos tomadores de financiamentos habitacionais

permitiram que um número cada vez maior de famílias ascendesse à propriedade residencial, o que redinamizava o setor da construção civil. Veja a respeito na próxima seção.

a influência de programas de defesa nacional após o envolvimento dos EUA na Segunda Guerra Mundial, que buscavam alojar as famílias de trabalhadores da indústria de armamentos em residências que frequentemente tinham um caráter temporário (trailers, dormitórios desmontáveis de madeira etc.) (Lusignan, 2002).

Tabela 7. EUA: Evolução do parque público de habitação – 1940 a 2010 Estoque de

unidades Variação em unidades Variação em %

1940 120.000 1949 170.436 50.436 42,0% 1959 422.451 252.015 147,9% 1969 792.228 369.777 87,5% 1979 1.204.718 412.490 52,1% 1990 1.391.312 186.594 15,5% 1993 1.407.923 16.611 1,2% 1996 1.326.224 -81.699 -5,8% 1998 1.300.493 -25.731 -1,9% 1999 1.273.500 -26.993 -2,1% 2004 1.234.555 -38.945 -3,1% 2010 1.181.484 -53.071 -4,3%

Fontes: Lusignan (2002) para o ano 1940; US Department of Housing and Urban Development para o ano de 2010 (http://www.huduser.org/portal/datasets/assthsg.html) e Schwartz (2006) para os demais anos.

Foi depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com o Housing Act de 1949, que se abriu o período de forte expansão do parque público (Tabela 7). Resultado da discussão realizada entre 1945 e 1949 no Congresso Nacional, a nova legislação buscava prover “a decent home landmark suitable living environment for every American” por meio da extinção de áreas favelizadas. Foi estabelecida uma meta de 810 mil unidades a serem construídas nos 6 anos seguintes96. A renovação urbana passou então a nortear a intervenção pública no setor

habitacional. Como resultado dessa iniciativa, o parque público cresceu 148% entre 1949 e 1959, atingindo o patamar de 422,5 mil unidades (Lusignan, 2002; Stoloff 2004).

A despeito de sua expressiva expansão, a public housing nunca foi capaz de se impor ao parque privado de locação, seja em termos do número de imóveis ou de sua qualidade, seja por estabelecer um parâmetro para os aluguéis privados. Nesse sentido, mesmo no auge da

public housing, o mercado de locação nos EUA tornou-se, no máximo, um dualist rental system, para retomar a expressão de Kemeny (1995), típico de uma desmercantilização muito restringida da habitação. Claramente, a garantia de uma moradia decente para todos os americanos, como pregava a legislação de 1949, reconhecia a eficácia do mercado imobiliário

privado neste sentido, mantendo as intervenções estatais mais explícitas, a exemplo da public

housing, apenas para as menores faixas de renda da população. A delimitação das intervenções estatais na habitação, de forma a não comprometer a existência de um mercado privado, se deu por meio de certos aspectos da própria legislação que permitiu a expansão do parque público.

Em primeiro lugar, houve uma intensificação do direcionamento do parque público para as camadas mais pobres da população (renda abaixo de 50% da renda mediana da região)97.

Essa tendência ocorreu, em parte, como produto da ação intencional do Estado, que reservava o parque público às low-income families, cuja renda se situa geralmente entre 80% e 50% da mediana da renda de uma determinada área. A legislação de 1949 manteve o limite máximo da renda dos ocupantes em até cinco vezes o valor do aluguel, e estabeleceu, adicionalmente, que os maiores aluguéis do parque público deveriam corresponder a um valor 20% inferior aos menores aluguéis do parque privado de locação. Caso a renda da família já residente se elevasse acima do teto definido, o imóvel deveria ser desocupado.

Ademais, o próprio crescimento da renda das famílias no pós-Guerra, associado às transformações do sistema de financiamento habitacional, também colaborou para esse processo de focalização da habitação pública nos EUA, à medida que foram facilitadas as condições de acesso à propriedade residencial. As famílias ocupantes do parque público relativamente melhor posicionadas, isto é, unidades bi-parentais formadas especialmente por brancos, com ao menos um indivíduo empregado, recebendo um fluxo regular de rendimento, ainda que baixo, puderam, então, tornar-se proprietárias com o auxílio das garantias concedidas pela Federal Housing Administration (FHA) e deixar o parque público de habitação. Como resultado, a renda média do parque público de habitação caiu de 57% da renda mediana nacional, em 1950, para 41%, em 1960, e para 29% em 1970 (Nenno, 1991; Stoloff, 2004; Listokin, 2003).

Esses dois movimentos – a delimitação do público-alvo com baixa renda e a criação de mecanismos alternativos para o acesso à habitação por meio da propriedade residencial – estiveram associados ao processo de suburbanização dos EUA, intensificando o crescimento ou a formação de novos guetos nas regiões centrais das cidades. Esse processo apresentava uma conotação racial importante, sendo que a população de classe média branca era quem se

97 As famílias americanas costumam ser classificadas da seguinte forma, em relação ao seu nível de renda: famílias

de renda extremamente baixa (menor ou igual a 30% da renda familiar mediana da respectiva área metropolitana), famílias de renda muito baixa (menor ou igual a 50% da renda mediana), famílias de baixa renda (menor ou igual a 80% da renda mediana), famílias de renda moderada (menor ou igual a 120% da renda mediana) e as demais famílias, com renda superior a 120% da renda mediana.

deslocava para os subúrbios, já que as práticas de redlining bloqueavam o acesso da população afro-descendente aos instrumentos de financiamento da aquisição de imóveis residenciais. A pressão política da população branca para impedir a construção de projetos da public housing em seus bairros e a busca por terrenos mais baratos fizeram com que a expansão do parque público se desse no interior de guetos já estabelecidos ou em sua proximidade, reforçando mais do que combatendo a segregação racial das cidades americanas (Florida e Jonas, 1991; Massey e Denton, 1995)

Em segundo lugar, foi vetada a concorrência entre o parque público e o parque privado de locação. Para isso, combinaram-se diferentes aspectos da legislação de 1949: a imposição de um limite máximo para os aluguéis do parque público em função dos aluguéis do parque privado, como foi sugerido anteriormente; a definição da construção de 810 mil novos imóveis em seis anos que, ao mesmo tempo em que dava uma meta, também consistia em um teto à expansão do parque; e, por fim, o próprio objetivo da expansão do parque público que estava restrita à substituição de unidades demolidas pelas ações de renovação urbana.

Nesse sentido, o crescimento do estoque de unidades habitacionais públicas não significava a expansão do parque habitacional americano como um todo; apenas substituía parte das habitações insalubres ou localizadas em áreas de interesse das elites locais (onde havia universidades, fundações, teatros etc.) passíveis de valorização com a retirada dos entornos dos moradores de baixa renda (geralmente negros ou migrantes). Como salientam Florida e Jonas (1991) e Massey e Denton (1995), nem todos os imóveis demolidos foram efetivamente substituídos por unidades adicionais do parque público. Parte das famílias desalojadas foram alocadas em unidades da public housing já existente, colaborando para a concentração cada vez maior de famílias de baixa renda nesse parque.

Ademais, os projetos do parque público apresentavam características físicas (projeto arquitetônico e equipamentos, como elevadores, sistema de aquecimento etc.) inferiores às das unidades do parque privado de locação (Stoloff, 2004). O parque público do pós-Guerra, segundo Stone (2003), “era normalmente em grandes propriedades de blocos monolíticos de apartamentos, muitas vezes de qualidade duvidosa de design e construção” (p. 8); “O design de interiores era geralmente espartano, para transmitir uma certa mensagem psicológica e evitar que as habitações públicas fossem tão atraentes fisicamente quanto as novas habitações de aluguel do setor privado” (p. 7; tradução própria).

Na década de 1960, a expansão continuou no rastro das ações de renovação urbana. A degradação das regiões centrais das cidades levou à intensificação dos movimentos sociais (civil

renovação dessas áreas, sob coordenação e a partir de programas de transferência de recursos do governo federal. Entre 1959 e 1969, o estoque de unidades aumentou 87,5%, chegando ao patamar de 792,2 mil unidades (Tabela 7).

Entretanto, com o foco na baixa renda e as restrições sobre a localidade onde essas novas unidades deveriam ser construídas, a concentração de famílias pobres no parque público avançou progressivamente, suscitando críticas cada vez mais contundentes a esse tipo de intervenção estatal, vista como pouco efetiva para mudar a realidade de seus ocupantes. Em razão disso, novas formas de apoio à habitação voltada para as parcelas menos favorecidas começaram a ser experimentadas já nos anos 1960. Nesse período, a novidade foi o recurso a programas que se apoiavam no incentivo à iniciativa privada, funcionando como precursores do que viria a se generalizar a partir da década de 1970 (Listokin, 2003).

A Seção 202 do Housing Act de 1959 criou um programa específico para a população idosa, que foi posteriormente expandido para o atendimento de deficientes físicos, pertencentes a faixas de renda superiores àquelas atendidas pela public housing, mas inferiores à renda necessária para ter acesso ao parque privado de locação ou à propriedade residencial. O programa consistia em empréstimos do governo federal a taxas de juros abaixo do mercado concedidos a organizações sem fins lucrativos envolvidas no desenvolvimento habitacional. Esse aspecto refletia as pressões contrárias à intervenção direta do governo federal (operada por meio de instituições locais) na oferta de imóveis residenciais, isto é, à public housing. O apelo ao setor privado – inicialmente sem fins lucrativos, mas que passou a incluir, posteriormente, empresas for-profit – associava a vontade de apoiar a expansão do parque residencial para a população de renda média e baixa à criação de um espaço de valorização dos capitais privados do setor imobiliário.

Um novo programa – de caráter amplo, porque não estava restrito a idosos e deficientes físicos – foi criado pelo Housing Act de 1961: a Seção 221(d)(3), que vigorou entre 1961 e 1968. O programa garantia a incorporadores imobiliários, com e sem fins lucrativos, o acesso a hipotecas com taxas de juros abaixo do mercado e com seguros da FHA tomadas junto a credores privados. Em seguida, tais hipotecas eram vendidas à Fannie Mae. As unidades assim construídas tinham seus aluguéis (cerca de 27% abaixo do mercado) definidos em função dos custos (financeiros e operacionais) do projeto, e estavam voltadas a atender a população de renda moderada (próxima ao valor da renda mediana de cada região).

Em 1968, o programa foi substituído pela Seção 236 do Housing Act desse mesmo ano. Desde então, ao invés de adquirir a hipoteca por meio da Fannie Mae, o governo federal provia um subsídio anual de maneira a reduzir o serviço da dívida. Com isso, o custo orçamentário do

programa desenvolvido pela Seção 236 era inferior àquele da Seção 221(d)(3). Os aluguéis dessas unidades correspondiam ao necessário para compensar o custo financeiro de 1% sobre as hipotecas mais os custos operacionais e previa uma remuneração de cerca de 6% para as incorporadoras responsáveis pelos projetos (basic rents). Contava, ademais, com a mesma regra para a public housing dos 25% da renda do ocupante (elevado para 30% em 1981). Entre essas duas formas de definição dos aluguéis, deveria prevalecer, contudo, no caso da Seção 316, o maior valor. Para um número limitado de ocupantes de baixa renda, a diferença entre o valor referente aos 25% de sua renda e o aluguel calculado a partir dos custos mais remuneração da incorporadora (basic rent) era coberta por suplementos (rent supplements) criados em 196598.

Desde meados da década de 1960, estava presente, então, o embrião da principal forma de intervenção estatal no setor da habitação para a baixa renda no regime financeirizado, os

voucher programs, a partir dos anos 1980 (ver seções 3.2 e 3.3).

O setor privado com fins lucrativos só veio, contudo, a se envolver mais sistematicamente na construção de moradias para os segmentos de baixa renda com a possibilidade de ganhos tributários importantes, aberta após o Internal Revenue Service ter acelerado a contabilização da depreciação dos imóveis de aluguéis em 1967. Os imóveis fazendo uso dessa regra tributária deviam alojar famílias de renda moderada e baixa por 15 a 20 anos; findo esse período, o proprietário desse imóvel ganhava o direito de exigir aluguéis de mercado.

3.2. Novas formas de intervenção e a ampliação do setor privado na