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A economia americana sob o regime financeirizado: 1990-2010

Capítulo 1. Regulação e Configurações do Capitalismo

1.3. O regime de acumulação financeirizado

1.3.4. A economia americana sob o regime financeirizado: 1990-2010

O período compreendido entre o final dos anos 1970 e o início dos 1990 marcou a transição entre o fordismo e seu sucessor, um intervalo em que a economia americana passou por um processo de transformação institucional que alterou a hierarquia das cinco formas institucionais de modo a viabilizar o surgimento de um novo regime de acumulação. Na década de 1990, segundo Vidal (2003), a economia dos EUA retomou uma trajetória de acumulação intensiva sob o modo de regulação capitaneado pelas finanças, com o aumento do investimento

a partir de 1992, aceleração da produtividade do trabalho a partir de 1997, ao que se seguiu uma elevação dos salários reais, mas muito aquém da produtividade (Gráfico 5)30.

Gráfico 5. Crescimento da Produtividade e do Salário Médio Real nos EUA

Fonte: Bureau of Labor Statistic apud Council of Economic Advisers (2014).

O termo “nova economia” foi amplamente utilizado na literatura econômica como referência a esta fase da economia americana, em que se destacam as inter-relações entre os mercados financeiros liberalizados e o surgimento e difusão das tecnologias de informação. Em termos de variáveis macroeconômicas, a nova economia permitiu aos EUA a obtenção de 120 meses de crescimento econômico a uma taxa real de 3,8% ao ano, em média, entre 1992 e 2000. Esta foi a fase expansionista de maior duração segundo o National Bureau of Economic Research (NBER), ainda que o ritmo médio de crescimento do PIB tenha ficado aquém daquele do pós-Guerra, sob o regime fordista. Durante esse período, a inflação se desacelerou e a taxa de desemprego caiu abaixo dos 6%, o que no início da década era convencionalmente considerada como a taxa mínima de desemprego possível em ausência de pressões inflacionárias (NAIRU, non-accelereting inflation rate of unemployment)31 (US, 2001).

As inovações tecnológicas introduzidas ao longo dos anos 1990 levaram sinergias a diferentes setores, como telefonia, informática, serviços financeiros, comércio, indústria de entretenimento, software e internet, abrindo novas oportunidades de negócios cujos resultados

30 Isto é, foi a partir dos anos 1990 que a economia americana apresentou uma evolução macroeconômica que os

primeiros trabalhos regulacionistas apontavam como evidências da operação de um modo de regulação. Por essa razão, a existência de um regime de acumulação financeirizado neste período – o que não ocorre com os anos 1980 – tende a ser mais amplamente aceito entre os autores regulacionistas, observadas as questões levantadas na seção 1.3.2.

31 As estimativas da NAIRU utilizadas pelo Board of Governors do Federal Reserve foram sendo reduzidas ao

longo do tempo como pode ser vista em < https://www.philadelphiafed.org/research-and-data/real-time- center/greenbook-data/nairu-data-set > ou em < https://fred.stlouisfed.org/series/NROU >.

eram difíceis de serem apreendidos a priori. A necessidade que cada empresa via em criar e ocupar um novo mercado rapidamente, de maneira a impor seu padrão tecnológico às empresas seguidoras, alavancou os investimentos (Tabela 4). Esse é um aspecto fundamental nos setores de tecnologia, uma vez que o padrão dominante garante à empresa detentora ganhos extraordinários (Aglietta e Rebérioux, 2005).

Tabela 4. Taxa de Crescimento Real do PIB e dos Componentes da Demanda Agregada – 1990 a 2010

Fonte: Bureau of Economic Analysis (BEA). Nota: 1. Inclui gastos de consumo e de investimento.

Esse processo foi acompanhado da ampliação do investimento e da produtividade. A taxa de investimento privado bruto cresceu de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1991 para 20% em 2000, sendo que o investimento em equipamentos e produtos de propriedade intelectual (softwares inclusive32) saiu de 8,7% do PIB para 11,4% do PIB, nesse mesmo período. A taxa

de aumento da produtividade do trabalho do setor privado (exceto agricultura), segundo o Bureau of Labour Statistics33, atingiu 2,2% na média do período de 1990 a 2000, sendo inferior

apenas à média de 1947-1973 (2,8%). Na indústria de transformação, a alta foi de 4,1% no mesmo período. Vidal (2003) estima o crescimento da produtividade total de fatores, entre 1989 a 2000, em 2,3%, abaixo apenas ao do período 1957-1966 (3,4%).

A abertura de novas fronteiras de negócios e a escalada dos lucros34, impulsionados pelos

ganhos de produtividade e pela queda do preço relativo de bens de capital, levaram os mercados acionários à euforia. A dificuldade de se definir projeções confiáveis do retorno de negócios até então inexistentes, assim como de aferir o impacto das novas tecnologias sobre os setores mais tradicionais, resultou na proliferação e intensificação do comportamento especulativo nesses mercados. A evolução da inflação permitiu ao Federal Reserve manter estável a taxa básica de

32 A partir de 2013, com a 14ª revisão das contas nacionais, o Bureau of Economic Analysis passou a considerar

gastos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e em entretenimento, literatura e produções artísticas originais como investimento fixo, somando-se aos investimentos em softwares na categoria “intellectual property

products”. Ver a respeito <https://www.bea.gov/national/pdf/flyer_bea_expands_coverage_of_intellectual.pdf>.

33 Dados disponíveis em < http://www.bls.gov/lpc/prodybar.htm>.

34 Plihon (2002), Duménil e Lévy (2002) e Vidal (2003) apontam uma recuperação da rentabilidade das empresas

americanas já a partir de 1982, que se acelera na década seguinte, o que, para Vidal, ocorre devido à elevação da produtividade do capital e à queda do preço relativo dos bens de capital, em função das inovações em tecnologia da informação.

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

PIB 1,9 -0,1 3,6 2,7 4 2,7 3,8 4,5 4,5 4,7 4,1 1,0 1,8 2,8 3,8 3,3 2,7 1,8 -0,3 -2,8 2,5

Consumo das Famílias 2,1 0,2 3,7 3,5 3,9 3,0 3,5 3,8 5,3 5,3 5,1 2,6 2,6 3,1 3,8 3,5 3,0 2,2 -0,3 -1,6 1,9

Investimento Privado -2,6 -6,6 7,3 8,0 11,9 3,2 8,8 11,4 9,5 8,4 6,5 -6,1 -0,6 4,1 8,8 6,4 2,1 -3,1 -9,4 -21,6 12,9

Inv. Fixo Não Residencial 1,1 -3,9 2,9 7,5 7,9 9,7 9,1 10,8 10,8 9,7 9,1 -2,4 -6,9 1,9 5,2 7,0 7,1 5,9 -0,7 -15,6 2,5 Inv. Residencial -8,5 -8,9 13,8 8,2 9,0 -3,4 8,2 2,4 8,6 6,3 0,7 0,9 6,1 9,1 10,0 6,6 -7,6 -18,8 -24,0 -21,2 -2,5

Gasto do Governo¹ 3,2 1,2 0,5 -0,8 0,1 0,5 1,0 1,9 2,1 3,4 1,9 3,8 4,4 2,2 1,6 0,6 1,5 1,6 2,8 3,2 0,1

Federal 2,1 0 -1,5 -3,5 -3,5 -2,6 -1,2 -0,8 -0,9 2,0 0,3 3,9 7,2 6,8 4,5 1,7 2,5 1,7 6,8 5,7 4,4

Estadual e Municipal 4,1 2,2 2,1 1,2 2,8 2,7 2,4 3,6 3,8 4,2 2,8 3,7 2,9 -0,4 -0,1 0,0 0,9 1,5 0,3 1,6 -2,7

Exportações de Bens e Serviços 8,8 6,6 6,9 3,3 8,8 10,3 8,2 11,9 2,3 2,6 8,6 -5,8 -1,7 1,8 9,8 6,3 9,0 9,3 5,7 -8,8 11,9

juros ao longo da segunda metade dos anos 1990. Ademais, a ancoragem das expectativas inflacionárias impediu que movimentos conjunturais de alta dos juros arrefecessem o otimismo prevalecente nas Bolsas de Valores. As baixas taxas de juros e o otimismo em relação à valorização da riqueza acionária incentivaram a expansão creditícia, alimentando ainda mais a especulação nos mercados de ativos35 (Aglietta, 2008; Aglietta e Rebérioux, 2005).

Em pouco tempo, o otimismo dos mercados acionários espraiou-se para os demais segmentos do mercado financeiro, estreitando ainda mais os laços entre os processos de valorização da riqueza mobiliária e a expansão creditícia. O acesso a abundantes recursos financeiros incentivou a ampliação dos investimentos, especialmente nos setores envolvidos nas tecnologias inovadoras, mas também impactou o consumo por meio do efeito riqueza.

O estoque de ativos financeiros, em rota ascendente, tornou-se cada vez mais representativo nos portfólios de empresas e famílias. Ao levar a relação entre sua riqueza e a sua renda (W/Y) a um valor acima do desejado, incitou uma redução da taxa de poupança das famílias e, consequentemente, uma ampliação do seu consumo. Ao lado desse efeito riqueza, também pôde ser verificado um “efeito liquidez” (André, 2010). Esse último diz respeito ao fato de que o fortalecimento do patrimônio das famílias viabiliza uma capacidade maior de endividamento.

Mas não foram apenas os ativos financeiros que se valorizaram nesse período. Apesar de taxas de crescimento menos exponenciais, os preços dos imóveis em janeiro de 2000 eram, na média nacional do índice S&PCaseShiller, 25% maiores do que aqueles do início de 1995, em termos nominais (Gráfico 6). Algumas regiões metropolitanas, contudo, tiveram crescimento de mais de 40% nesse período, como Detroit, Boston, San Francisco e Denver. Pelo fato de a posse desses ativos ser mais difundida entre as famílias americanas, como sugerido anteriormente, e por existirem mecanismos específicos de crédito que os aceitam como garantia real, como será visto no Capítulo 2, o impacto da valorização desses ativos sobre as decisões de consumo mostrou-se consideravelmente maior do que aquele da riqueza financeira. A existência dessa garantia fez com o credor relativize o peso da renda do tomador na análise de crédito, em favor da avaliação da tendência de valorização do imóvel dado como garantia. Dessa maneira, as famílias puderam transformar em poder de compra presente a valorização de seus ativos, sem que com isso fossem obrigadas a se desfazer deles, o que, por sua vez, não

35 O índice Nasdaq (National Association of Securities Dealers Automated Quotations System) saiu de 370 pontos

em dezembro de 1990 (média mensal) para chegar ao pico histórico de 4.802 pontos em março de 2000. O índice Dow-Jones da Bolsa de Valores de Nova York saltou de 2.633 pontos em dezembro de 1990 para 11.490 pontos em dezembro de 1999.

deixou de ter um impacto favorável na manutenção da trajetória altista dos preços nos mercados de ativos.

Gráfico 6. Valorização dos Mercados Acionários e dos Imóveis Residenciais¹ nos EUA – jan./91 a dez./10 (Em número índice – jan./95 = 100)

Fonte: New York Stock Exchange – NYSE; National Association of Securities Dealers Automated Quotations – Nasdaq e Standard & Poor's Case–Shiller Home Price Index.

Nota: 1. Refere-se ao índice nacional CaseSchiller National-US.

De fato, é extensa a literatura que sugere um efeito riqueza a partir dos imóveis maior do que aquele a partir da detenção, direta ou indireta, de ações pelas famílias, como em Case et al. (2001 e 2012), FMI (2002), Benjamin et al. (2004), Bayoumi e Edison (2004), Boucher (2006), Leonard (2010), Zhou (2010) e Carroll et al. (2011), entre outros. Segundo Bostic et al. (2009), cuja estimativa considera o período de 1989 a 2001, o gasto de consumo das famílias americanas cresce seis centavos a cada um dólar de valorização dos imóveis residenciais, o triplo do impacto da valorização da riqueza financeira de mesma magnitude.

A contribuição do efeito riqueza produzido seja pelos ativos imobiliários, seja pelos ativos financeiros não foi desprezível para o dinamismo da economia americana na segunda metade dos anos 1990. Chataignault et al. (2001) sugerem uma contribuição de 1,5 ponto percentual para o crescimento anual do consumo entre 1995 e 2000, cuja média anual no período foi de 4,33%.

A outra face desse processo foi o crescimento do endividamento, sobretudo das famílias, e sua fragilização patrimonial. O estoque de dívida das famílias chegou a 69% do PIB em 2000,

superior ao patamar de endividamento das corporações (não financeiras)36 de 51,4% do PIB no

mesmo período.

O setor público, por outro lado, apresentou tendência de redução de sua necessidade de financiamento a partir do ano de 1992. Em 1998, conseguiu obter um superávit de US$ 37,9 bilhões, que foi ampliado para US$ 159 bilhões em 2000. Esse resultado foi obtido tanto pela contenção de gastos, inclusive os sociais, como pelo aumento da arrecadação.

A convenção altista das bolsas americanas conseguiu digerir os picos de aversão a risco dos mercados ao longo dos anos 1990, decorrentes das sucessivas crises financeiras nos países emergentes do México em 1994, passando pela Asiática em 1997 e como da Rússia e do Brasil em 1999. Evidentemente, o sistema financeiro americano não passou incólume a essas turbulências, como mostrou o colapso do hedge fund Long-Term Capital Management (LTCM) em 1998, mas pôde contar com a pronta atuação do Federal Reserve, que, ao orquestrar o resgate do fundo, impediu a explicitação do risco sistêmico e garantiu que a normalidade dos negócios fosse restaurada. O otimismo com o florescimento da “nova economia”, contudo, começou a se enfraquecer no início de 2000 (Gráfico 6).

Os administradores de carteiras de ações reavaliaram a pertinência de sua tolerância com novos negócios, típicos da era digital, mas que não conseguiam apresentar a rentabilidade esperada. Ao longo da década, algumas das novas empresas de tecnologia ou de internet (“pontocom”) que abriram seu capital, aproveitando o comportamento especulativo dos agentes financeiros, nunca conseguiram obter lucro; outras nem sequer sabiam como iriam fazê-lo. Ademais, em alguns setores, especialmente os vinculados às novas tecnologias, a capacidade ociosa verificada era alta, sinalizando um desempenho aquém do esperado. Em março de 2000, a convenção altista foi revertida. Entre março e dezembro desse ano, o Índice Nasdaq caiu quase 50%.

O processo de reavaliação das carteiras se generalizou entre os mercados financeiros. As operações de alavancagem, montadas nos anos anteriores, e que em grande medida tinham a riqueza acionária dos agentes tomadores como garantia, precisaram ser desmontadas. A busca por liquidez, necessária para fazer frente às exigências das obrigações assumidas, levou à liquidação de posições e à queda dos preços em diferentes mercados (Cintra e Cagnin, 2007b). O impacto da desvalorização dos ativos sobre o PIB foi sentido já no primeiro trimestre de 2000, quando a taxa real de crescimento registrou valor de apenas 1,2% (com ajuste sazonal), puxada pela retração de 3,6% dos investimentos privados. À exceção do segundo trimestre,

36 Inclui o estoque de títulos e de empréstimos no passivo das empresas não financeiras, segundo as estatísticas

quando a baixa base de comparação do primeiro trimestre desencadeou uma expansão de 7,8%, o desempenho dos outros dois últimos trimestres também foi desalentador. Novas contrações nos investimentos privados aliadas à desaceleração do consumo levaram a essa conjuntura, bem como ao crescimento do PIB de apenas 1%, em 2001, o pior desde a recessão de 1991.

A tendência de baixa parecia ter se esgotado quando, após os atentados de 11 de Setembro de 2001, as cotações das ações voltaram a subir. Predominava a percepção de que a economia americana tinha saído da recessão e estava se recuperando com força. Entretanto, as sucessivas quedas nas cotações nos mercados de ações levantaram inúmeros problemas que haviam passado despercebidos na euforia dos lucros corporativos, durante o longo ciclo de valorização dos ativos produtivos e financeiros dos anos 1990. Quando a exaltação baixou, apareceram logros, a exemplo da Enron, que acabaram provocando novas e acentuadas quedas dos preços das ações suscetíveis de profundas repercussões macroeconômicas, inclusive o de prejudicar a incipiente retomada do crescimento e provocar novo processo recessivo (Farhi e Cintra, 2002). Não há nada de novo no fato de que revelações de fraudes cometidas em períodos de euforia tenham determinado a ocorrência de uma reviravolta nas avaliações dos investidores sob a forma de um crash (Kindleberger, 1992)37. No entanto, como apontam Cintra e Cagnin

(2007), o inusitado foi sua ocorrência após um longo período de quedas dos preços e, portanto, de correção dos excessos cometidos durante a fase altista do ciclo de ativos. Tal peculiaridade aprofundou o movimento de queda dos preços das ações. A crise de confiança dos investidores nas ações americanas repercutiu nas Bolsas de Valores mundiais, configurando momentos de extrema tensão. De acordo com os dados divulgados pela Federação Internacional de Bolsas de Valores, as perdas nas bolsas mundiais ultrapassaram US$ 11,5 trilhões, sendo mais de US$ 5,4 trilhões apenas nos EUA, entre março de 2000 e junho de 2002. A crise de confiança originou-se da convergência de diversos escândalos e disfunções no funcionamento dos mercados de capitais dos EUA, tais como as avaliações das empresas de classificação de riscos de crédito, as recomendações dos analistas de valores, problemas contábeis nos balanços das empresas e o papel das empresas de auditoria e de consultoria (Cintra e Cagnin, 2007b).

Em suma, as causas da desaceleração e recessão da economia americana estiveram associadas à reversão do circuito expansivo composto pela valorização dos ativos financeiros,

37 Ver também, Galbraith (1929: p.119): “em um determinado momento existe um rosário de desfalques não-

descobertos, nas empresas e bancos do país – ainda que não precisamente fora deles. Esses desfalques – talvez melhor denominados desvios – atingem, em qualquer instante, a muitos milhões de dólares. Seu montante varia de conformidade com o ciclo econômico. Em épocas de prosperidade todo mundo se sente tranquilo, confiante, e há dinheiro a rodo. Mesmo, porém, com dinheiro abundante há sempre quem precise mais um pouco. Nessas circunstâncias, o ritmo dos desfalques se acelera, o das descobertas se desacelera e o desvio aumenta rapidamente. Na depressão, tudo se inverte”.

crédito, consumo e investimento, que caracteriza os ciclos econômicos sob regime financeirizado. O ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001 e os escândalos envolvendo práticas contábeis agressivas em 2002 colaboraram para aprofundar as tendências deflacionistas nos preços dos ativos e recessivas da economia americana.

Como a expansiva, a fase contracionista do ciclo também foi marcada por características próprias, refletindo a capacidade de ajustamento do modo de regulação vigente. Por um lado, a recessão de 2001 revelou-se uma das mais breves e brandas já enfrentadas pela economia americana; por outro lado, não ocorreu nenhuma grande crise financeira que colocasse a higidez do sistema em risco. Muitas dessas características estiveram relacionadas com a agilidade de resposta da autoridade monetária e do Tesouro e com a acentuação da tendência de valorização da riqueza imobiliária americana.

A redução da taxa básica de juros (federal funds rate) pelo Federal Reserve (Gráfico 7) ao longo de 2001 (queda de 70%) possibilitou que o nível de endividamento público fosse mantido ao longo da expansão fiscal. A queda nos juros e a expansão das despesas fiscais ajudaram na preservação dos gastos em consumo, essenciais na dinâmica da recuperação (Tavares, 2005; Teixeira, 2015). O consumo contou ainda com a ampliação do endividamento das famílias, lastreado na valorização de seus ativos imobiliários. A elevação dos preços dos imóveis residenciais se manteve enquanto as ações despencaram e, devido a seu efeito de maior monta sobre as decisões de consumo, pôde funcionar como um colchão amortecedor da reversão do ciclo econômico, compensando os desdobramentos da queda da riqueza acionária (Benjamin et al., 2004). Assim, o circuito de valorização de ativos, dívida e consumo foi preservado, ao mesmo tempo em que aumentavam os investimentos em imóveis residenciais. Enquanto o endividamento das famílias mantinha sua rota ascendente, as corporações iniciaram um processo de rápida redução de seus passivos (Cagnin, 2007; Cintra & Cagnin, 2007b; Cagnin, 2009b).

Gráfico 7. Taxas de Juros dos Treasuries de 10 anos, das Hipotecas Convencionais de 30 anos e da Fed Funds Rate – 1999 a 2010

Fonte: Federal Reserve.

A política de baixas taxas de juros do Federal Reserve, a partir do ano de 2001, ao reduzir o custo do endividamento, estimulou, por um lado, a demanda por crédito residencial, expandindo o sistema cada vez mais em direção às famílias de menor renda. Por outro lado, levou também à redução da aversão ao risco nos mercados financeiros, expandindo a oferta de crédito e facilitando a securitização de hipotecas, inclusive daquelas com contratos não tradicionais. A expansão do circuito totalmente privado do sistema, isto é, dos segmentos sem nenhum tipo de garantia pública (implícita ou explicita), é que criou as condições para o aumento da participação desses contratos não tradicionais (Capítulo 2).

À medida que a disponibilidade de financiamento se expandia, a demanda por imóveis também se aquecia. Uma vez que a oferta de residências é relativamente inelástica no curto prazo, o resultado foi uma forte elevação dos preços (Gráfico 6). Entretanto, como será argumentado no Capítulo 3, a resposta da oferta de imóveis novos tampouco ajudou a arrefecer a subida dos preços. Ao contrário, estratégias especulativas na aquisição de terrenos urbanos, adotadas por empresas imobiliárias alavancadas pelos mercados financeiros e apoiadas pelos governos locais, contribuíram para este resultado em muitas cidades.

Diferentemente do que ocorre com ativos financeiros, cujos mercados são centralizados e organizados, a valorização dos imóveis não ocorreu na mesma intensidade nas diversas regiões dos EUA. Diferenças qualitativas entre os imóveis, como sua localização e suas características físicas, da capacidade de endividamento dos compradores e das estratégias das empresas construtoras, entre outros fatores, geraram heterogeneidades no ritmo de valorização

imobiliária entre as regiões (Gráfico 8). A escalada dos preços esteve mais concentrada nas regiões metropolitanas e em alguns estados, tais como Flórida e Califórnia. A relação entre esses mercados imobiliários regionalizados e a política monetária foi mediada pelo sistema de financiamento. Mesmo que não tenha sido generalizada na mesma magnitude entre as regiões, a valorização da riqueza imobiliária, por se concentrar em áreas densamente povoadas, apresentou impactos que puderam ser percebidos na economia americana como um todo (Angell, 2004; Greenspan, 2005; Goodhart e Hofmann, 2007).

Gráfico 8. Evolução dos preços de imóveis residenciais - Regiões Metropolitanas com Maiores Altas CaseSchiller/S&P - jan/00 = 100

Fonte: S&P/CaseSchiller.

Sobre o consumo das famílias, os efeitos se deram tanto direta como indiretamente. À medida que o preço mais elevado das residências reforçou o patrimônio das famílias, os gastos em consumo foram ampliados e a formação de poupança reduzida, seguindo o efeito-riqueza

strictu sensu (Mishkin, 2001; Goodhart e Hofmann, 2007).

Os efeitos indiretos (“efeito liquidez”), por sua vez, dependeram da estrutura de financiamento, que nos EUA demonstrou grande habilidade de converter valorização patrimonial das famílias em poder de compra por meio do crédito. Dois mecanismos, que serão analisados com mais profundidade no Capítulo 2, permitiram que as famílias tomassem crédito em função do ganho patrimonial de suas residências: a extração de home equity por meio do

refinanciamento das hipotecas (cash-out) e os empréstimos do tipo HEL (home equity lending), que possibilitam a alavancagem das famílias a partir de seus imóveis residenciais, dados como