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O financiamento habitacional ao alcance de todos os credores

Capítulo 2. A transformação do financiamento habitacional e sua integração ao mercado

2.1. O financiamento habitacional ao alcance de todos os credores

Nos EUA, o quadro regulatório que assegurava os contornos de um segmento do mercado de crédito especializado para o financiamento habitacional foi progressivamente desmontado, a exemplo do movimento geral de desregulamentação do crédito, em resposta às crescentes dificuldades apresentadas pelas thrifts (instituições saving & loans – S&L e saving

banks). A partir de meados da década de 1970, e sobretudo nos anos 1980, essas instituições

foram autorizadas a ampliar a gama de produtos oferecidos ao público e a diversificar seus instrumentos de captação de recursos. Sua dificuldade de adaptação ao novo ambiente macroeconômico e financeiro colocava em xeque a oferta de financiamento habitacional nos EUA. Em consequência, as autoridades regulatórias autorizaram os bancos comerciais a oferecer esse tipo de financiamento, incentivando-os, inclusive, a comprar as thrifts insolventes (Guttmann, 1994).

O elevado descasamento de prazos que caracterizava as atividades das thrifts – que utilizavam depósitos de prazo relativamente curto para financiar a oferta de hipotecas, cujas taxas de juros eram fixas44 e de prazos longos – representou uma importante fonte de

desequilíbrio patrimonial desses agentes quando a aceleração da inflação, a partir de meados

44 Desde o desenvolvimento de concessões de seguros ao risco de crédito dos tomadores pela FHA, criada nos

anos 1930 como uma das políticas do New Deal, a grande maioria dos financiamentos habitacionais (sobretudo daqueles contratos securitizados por Fannie Mae, Freddie Mac e Ginnie Mae) apresentam taxas de juros fixas e prazo de 30 anos.

dos anos 1960, começou a pressionar as taxas de juros. Períodos de elevação dos juros implicavam um aumento dos custos de captação, sem que fosse possível obter uma compensação a partir de suas operações ativas, em função das características dos contratos de hipotecas (Guttmann, 1994; Cintra, 1997). Os estreitamentos das margens daí resultantes colocavam em xeque o funcionamento dessas instituições e o próprio financiamento habitacional nos EUA.

Em 1966, na ocasião do primeiro credit crunch depois da Segunda Guerra Mundial, o Congresso americano decidiu responder a essa fonte de vulnerabilidade estendendo a Regulação Q às thrifts. Ao estabelecer um teto às taxas de juros sobre os depósitos dessas instituições, buscava-se limitar o esmagamento de suas margens. Ademais, foi concedida às

thrifts uma vantagem sobre os bancos comerciais, uma vez que os tetos sobre os seus depósitos contavam com um adicional sobre os tetos referentes aos depósitos dos bancos (Guttmann, 1994).

Essas medidas, entretanto, não foram capazes de poupá-las da progressiva perda de depósitos. Como foi mencionado no Capítulo 1, a volatilidade crescente de variáveis macroeconômicas, como a inflação, taxas de juros e de câmbio, que refletiam o processo de esgotamento do regime de crescimento fordista a partir dos anos 1970, incentivaram a adoção de estratégias reativas dos agentes financeiros. Essas estratégias contavam com a introdução de novos instrumentos e novas práticas que resultavam na obsolescência da regulamentação financeira vigente. Dessa maneira, surgiram novos instrumentos de captação, livres da imposição de tetos às taxas de juros, adotados pelos investidores institucionais e pelos bancos45,

que constituíram uma fonte de pressão concorrencial por fundos que as thrifts não conseguiram amenizar. A imposição de limites aos juros pagos por essas instituições, que tinha o objetivo de garantir a viabilidade de suas operações, acabou por se tornar um fator de perda de competitividade na captação de recursos. A complicada gestão de liquidez dessas instituições desencadeou frequentes interrupções na oferta de financiamento imobiliário, afetando drasticamente a indústria de construção e comprometendo o acesso das famílias à residência própria (Grossman, 1991; Guttmann, 1994).

45 A criação dos fundos monetários (Money Market Mutual Funds) e das Cash Management Accounts pelos bancos

de investimento aliavam aplicações em títulos financeiros à possibilidade de movimentação dos saldos por meio de cheques e cartões de crédito. Por não estarem sujeitos aos limites impostos ao pagamento de taxas de juros, esses novos instrumentos ameaçavam as condições de captação de recursos dos bancos comerciais (e das thrifts) por meio de depósitos a prazo, obrigando-os a reagir com a criação das Negotiable Order of Withdrawal Accounts (NOW Accounts), Money Market Certificates e Negotiable Certificates of Deposit. A discussão em detalhes desse processo de inovação financeira pode ser encontrada em Guttmann (1994), Freitas (1997) e Cintra (1997).

As elevações das taxas de juros em 1979 e depois em 1981, assim como a recessão que se estendeu até 1982, ampliaram os problemas de rentabilidade das thrifts (Gráfico 11), ao mesmo tempo em que se acelerava o movimento de perda de depósitos. Em consequência, diversas instituições foram obrigadas a encerrar suas operações nos anos seguintes – só em 1982, faliram 252 saving & loans (S&L), um número expressivamente superior à média de falência entre 1934 e 1979, que era de 13 S&L (sob tutela federal) por ano (Grossman, 1991).

Gráfico 11. Fed Funds Rate e a lucratividade das instituições de Saving & Loans (%) – 1965-1981

Fontes: Federal Reserve e Federal Home Loan Bank Board apud Garcia et al. (1983).

A gravidade da situação exigiu respostas imediatas das autoridades. O Depository Institutions Deregulation and Monetary Control Act (DIDMCA) de 1980 e o Depository Institutions Act (DIA) de 1982 consistiram nas principais medidas voltadas ao equacionamento desses problemas. Os dois atos resumiram também a natureza da estratégia assumida pelas autoridades: ampliar o conjunto de operações ativas e passivas que as thrifts estavam autorizadas a realizar, aproximando suas atividades daquelas desempenhadas por outros agentes, como os bancos comerciais, autorizados a operar com hipotecas desde a emenda de 1970 do Bank Holding Company Act (1956). Os contornos regulamentares que definiam o financiamento habitacional como um segmento diferenciado do mercado de crédito, exclusivo de um conjunto preestabelecido de instituições financeiras, deixaram, então, progressivamente de existir. A tendência geral de desregulamentação do crédito atingia também o financiamento habitacional como resposta à crescente dificuldade das instituições financeiras encarregadas desse segmento. -20 -15 -10 -5 0 5 10 15 20 1 9 6 5 1 9 6 6 1 9 6 7 1 9 6 8 1 9 6 9 1 9 7 0 1 9 7 1 1 9 7 2 1 9 7 3 1 9 7 4 1 9 7 5 1 9 7 6 1 9 7 7 1 9 7 8 1 9 7 9 1 9 8 0 1 9 8 1 %

A fragilidade da situação inicial das thrifts, em que prevaleciam margens de lucro comprimidas, restrições à captação de recursos e um número crescente de falências, complicava sua capacidade de reação frente ao acirramento da concorrência, condicionado pela desregulamentação do crédito habitacional. A perda de participação dos bancos na contratação de crédito comercial às médias e grandes empresas com boa avaliação de crédito – que costumava representar seu principal negócio –, devido à expansão dos mercados de títulos de dívida, condicionou a formulação de estratégias por meio das quais os bancos pudessem ganhar espaço em outros segmentos do mercado de crédito. Foram privilegiadas operações associadas a uma maior rentabilidade, como o crédito a pequenas empresas e às famílias (Guttmann, 1994; Freitas, 1997). A abertura do mercado de financiamento habitacional atraiu, assim, os bancos que, por meio de suas holdings bancárias, adquiriram instituições de S&L e, sobretudo, bancos hipotecários (mortgage banks)46.

O avanço de outros agentes no seu mercado tradicional levou as thrifts a formularem estratégias com um componente especulativo importante. Buscaram aproveitar a autorização da diversificação de suas atividades para ampliar a parcela de novas operações em seu ativo, como o financiamento de imóveis comerciais e de escritório, crédito ao consumo, saldos de cartões de crédito, títulos de dívida etc. A avaliação dos riscos assumidos se mostrou, entretanto, limitada em função da falta de familiaridade com essas operações (Freitas, 1997). Além disso, a política de resgate das thrifts insolventes, ou à beira da insolvência, implementada pelo Federal Home Loan Bank Board (FHLBB) – principal órgão regulador das thrifts – contou com a adoção, em setembro de 1982, de princípios contábeis que permitiam que as perdas sofridas pelas instituições adquiridas por bancos ou por outras thrifts pudessem ser distribuídas no decorrer de um longo período de tempo. A injeção de capital prevista pelo DIA de 1982 nas S&L fragilizadas também ajudou a manter as instituições que de outra forma seriam obrigadas a encerrar suas operações, procrastinando a contabilização das perdas sofridas. Como argumenta Guttmann (1994), esse fator encorajou a busca por operações de elevada rentabilidade na tentativa de amortecer o impacto da contabilização das perdas nos anos seguintes. Essas estratégias levaram à tomada crescente de riscos, que foram explicitados no final dos anos 1980.

46 Para se ter noção da importância do financiamento habitacional para os negócios bancários, as hipotecas

residenciais respondiam, em dezembro de 1999, por 26% da carteira total de crédito dos 25 maiores grupos bancários dos EUA. Perdiam por pouco do peso do crédito ao comércio e à indústria (28,9%). Em termos mais amplos, pode-se afirmar, contudo, que o financiamento do mercado imobiliário tornou-se a prioridade do crédito bancário: somando-se as participações das hipotecas residenciais, comerciais, agrícolas e o financiamento da construção civil, o setor imobiliário respondia por 39,8% do crédito dos maiores bancos norte-americanos (Calem e Little, 2001).

O uso de regras mais liberais do RAP [Regulatory Accounting Principles] pressupunha que as thrifts com problemas se tornariam viáveis novamente quando a recessão terminasse e as taxas de juros caíssem. Mas a maioria delas nunca se recuperou. Ao manter as thrifts insolventes funcionando em vez de removê-las do mercado, os reguladores permitiram que as perdas operacionais se acumulassem ao longo do tempo. Muitas dessas instituições engajaram-se em estratégias de alto risco, facilitadas pela desregulamentação, na esperança de rapidamente obter seu caminho de saída da falência. Além disso, eles tentaram atrair depósitos intermediados de todo o país, oferecendo taxas mais altas. Essa prática prejudicava a saúde das outras thrifts, porque aumentava o custo dos fundos. Os vários truques contábeis também mascararam a extensão total das perdas das thrifts e, assim, impediram os reguladores de impor as medidas de reorganização necessárias a tempo de evitar eventuais falências. Em 1985 e 1986 muitas thrifts que dependiam fortemente de certificados patrimoniais e outras ajudas da RAP entraram em colapso (Guttmann, 1994, p. 245; tradução própria).

A partir de 1987, a retomada da trajetória de alta das taxas de juros, sobretudo a partir do início de 1988, e a deflação dos ativos financeiros (crash das Bolsas de Valores, em outubro de 1987) impuseram expressivas perdas às thrifts que haviam adotado estratégias agressivas na expansão de operações de alto risco. Inúmeras instituições tornaram-se insolventes, especialmente aquelas que haviam lançado mão de artifícios contábeis para camuflar sua delicada situação financeira. O episódio foi ainda mais grave para aquelas autorizadas a operar pelos estados (state-chartered thrifts), que se envolveram pesadamente na especulação de imóveis comerciais, afetando drasticamente os estados da Flórida, Texas e Califórnia. Entre 1987 e 1988, as perdas somaram mais de US$ 19 bilhões e o custo de resgate ou liquidação de cerca de 500 instituições insolventes saltou de US$ 20 bilhões para US$ 75 bilhões (Tabela 5). O déficit do FSLIC cresceu de US$ 6,3 bilhões para US$ 16 bilhões. Em 1988, o FHLBB apressou-se para assegurar a compra de 205 instituições insolventes sob condições bastante favoráveis aos compradores – bancos, instituições não financeiras e investidores especializados nesse tipo de negócio47 (Guttmann, 1994).

Tabela 5. EUA: Número de falência de thrifts e volume de ativos envolvidos – 1986 a 1995

Número de

falências Ativos (US$ milhões)

1986 54 16.264 1987 48 11.270 1988 185 96.760 1989 327 135.245 1990 213 129.662 1991 144 78.899 1992 59 44.197 1993 9 6.148 1994 2 137 1995 2 435

47 Segundo Guttmann (1994), os compradores receberam entre US$ 8 e US$ 10 em ativos por cada dólar

Fonte: Federal Depository Insurance Corporation (FDIC) apud Curry e Shibut (2000).

Em resposta à gravidade da situação, o governo americano aprovou o Financial Institutions Reform, Recovery and Enforcement Act (FIRREA), em 1989. A lei dissolveu o FHLBB e o substituiu pelo Office of Thrift Supervision (OTS); a FSLIC, por sua vez, foi substituída pelo Savings Association Insurance Corporation, sob a gestão do Federal Deposit Insurance Corporation – FDIC, e foi capitalizada com empréstimos do Tesouro. O Ato também estabeleceu o Resolution Trust Corporation (RTC), a fim de liquidar 600 S&L insolventes e incentivou os bancos a comprar S&L ainda solventes. Com o objetivo de reduzir a tomada excessiva de riscos pelas S&L, a lei estipulou, ainda, uma elevação das exigências de capital mínimo, proibiu as operações com títulos de dívida corporativa de alto risco (junk bonds), ampliou as penalidades em caso de fraudes na contratação de empréstimos e restabeleceu limites à diversificação de suas operações (70% dos empréstimos deveriam ser direcionados ao financiamento habitacional) (Guttmann, 1994; Cintra, 1997).

O espaço liberado pelas thrifts no financiamento habitacional foi ocupado pelos bancos hipotecários (mortgage banks) (Gráfico 12). Entre 1976 e 1996, a participação das primeiras no agregado de novos contratos de financiamento habitacional caiu de 60,6% para 19,8%, ao mesmo tempo em que a participação dos últimos saltou de 14% para 57%. A expansão desses bancos esteve diretamente associada ao desenvolvimento de um mercado secundário para as hipotecas residenciais, a ser analisado na próxima seção. Como não são instituições de depósito, os bancos hipotecários precisam recorrer constantemente aos mercados de capitais para levantar recursos para suas operações (por meio do refinanciamento de suas carteiras). Paralelamente, esses bancos também tinham acesso a linhas de crédito junto a bancos comerciais (muitas vezes pertencentes a uma mesma holding bancária), que ocupavam um papel importante na gestão de liquidez de suas atividades correntes (Colton, 2002; Jacobides, 2005).

Gráfico 12. Evolução da contratação (fluxo) de hipotecas residenciais (single housing

mortgages) por tipo de credor nos EUA – 1970-2000

Fonte: U.S. Department of Housing and Urban Development (HUD) e Fannie Mae. Apud Colton (2002) Observações: Em 1985, existe mudança de metodologia no tratamento dos dados do HUD, não sendo recomendável, assim, a comparação com dados anteriores. Entre 1970 e 1977, os dados são provenientes do HUD; entre 1980-2000, referem-se a estimativas realizadas pela Fannie Mae a partir de dados do Home Mortgage Disclosure Act (HMDA), que cobre cerca de 75% do mercado hipotecário para o segmento

single family.

A maior presença desses agentes no financiamento habitacional americano desencadeou mudanças importantes no funcionamento desse mercado. Enquanto as thrifts sofriam fortes desequilíbrios patrimoniais com a elevação das taxas de juros e a recessão econômica do período de 1979-1981, os bancos hipotecários conseguiram ampliar sua participação nos novos financiamentos habitacionais, recorrendo a reestruturações internas de suas atividades que pudessem promover uma racionalização de custos. Uma dessas estratégias foi a redução de pessoal e a externalização da atividade de contratação dos financiamentos. Escritórios independentes, conhecidos como mortgage brokers, passaram a desempenhar as funções de busca de clientes, recolhimento de documentos e encaminhamento da proposta de crédito aos bancos (loan application). Estes escritórios pertencem, frequentemente, a corretoras de imóveis e não são considerados instituições financeiras. Até a celeuma criada pela crise das hipotecas

subprime em 2007, suas atividades eram pouco regulamentadas e exigências legais variavam

de estado para estado. A regulamentação ora recaía sobre os escritórios de mortgage brokerage, ora sobre os indivíduos que neles trabalhavam; ora consistiam em pré-requisitos educacionais ou tempo de experiência (Flórida, Califórnia, Massachussets, Nova York, Nevada etc.), ora exigiam recursos financeiros mínimos (Nova Jersey, Carolina do Norte e do Sul, Texas, Tennessee, Washington etc.). Cinco estados (Alabama, Alaska, Colorado, Montana e

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 1 9 7 0 1 9 7 2 1 9 7 4 1 9 7 6 1 9 7 8 1 9 8 0 1 9 8 2 1 9 8 4 1 9 8 6 1 9 8 8 1 9 9 0 1 9 9 2 1 9 9 4 1 9 9 6 1 9 9 8 2 0 0 0

Wyoming) não tinham nenhum tipo de regulamentação sobre os mortgage brokers48. As

barreiras à entrada nesse segmento eram, em consequência, baixas, condicionando sua evolução aos ciclos imobiliários (Jacobides, 2005; O’Neill, 2005).

Com a recuperação da economia americana e do financiamento habitacional, a partir de 1982, a atividade dos mortgage brokers foi crescentemente se firmando como parte integrante do sistema americano de financiamento habitacional. Uma função semelhante passou a ser desempenhada por correspondentes hipotecários, que consistem geralmente em pequenos credores que vendem integralmente suas carteiras de hipotecas a instituições financeiras (sobretudo bancos hipotecários) de maior porte. Em 1997, 65% da contratação de novas hipotecas passaram pelas mãos de correspondentes e mortgage brokers (Tabela 6), proporção que mal chegava a 10%, em 1988. O restante dos contratos era firmado diretamente nas agências das instituições credoras (S&L, bancos hipotecários ou bancos comerciais)49 (Duncan, 2001;

Jacobides, 2005).

Tabela 6. Canais de distribuição dos empréstimos habitacionais dos 10 maiores credores junto às famílias americanas – 1997-2000 (em US$ bilhões e em %).

Ano Agências Broker Correspondente

Volume % Volume % Volume %

1997 106,3 35,0 73,3 24,2 123,7 40,8

1998 243,9 39,0 166,5 26,6 214,8 34,4

1999 204,8 38,5 137,4 25,8 189,4 35,6

2000 186,9 36,6 138,6 27,1 185,0 36,2

Fonte: Inside Mortgage Finance. Apud Duncan (2001).

Outro fator importante para o surgimento da atual organização do financiamento habitacional nos EUA teve origem na gestão dos ativos remanescentes das thrifts que foram à falência no final dos anos 1980. O Resolution Trust Corporation de 1989 vendeu separadamente os empréstimos e os direitos de recolhimento dos pagamentos periódicos desses empréstimos (servicing rights) que compunham os ativos das thrifts em liquidação. O RTC criou, assim, as condições para o desenvolvimento de um mercado para esses direitos, ao formular uma metodologia para sua precificação. As instituições que adquiriram esses direitos desenvolveram

48 Para maior detalhamento, ver Bankrate Monitor (2004) em

http://www.bankrate.com/brm/news/mtg/20010104b.asp.

49 Existem ainda dois outros canais de distribuição de financiamento habitacional nos EUA: telemarketing e

internet. No primeiro, o contato e toda negociação são realizados por telefone até o ato de fechamento do contrato que é feito “face-to-face”; tem sido usado com grande frequência pelos maiores credores como meio de fidelização do cliente e venda de produtos adicionais (como crédito para melhorias e ampliações dos imóveis, seguros etc.). O segundo canal encontrava-se limitado na primeira metade dos anos 2000, sendo que a maior parte das informações fornecidas pelos credores em relação a contratos fechados pela internet consistia, na verdade, em loan

know-how nesses mercados, especializando-se na atividade de recolhimento e transferência dos pagamentos aos proprietários das hipotecas (mortgage servicers) (Jacobides, 2005).

O segmento de servicing é composto por grandes instituições financeiras que, em geral, também possuem uma participação importante na contratação das hipotecas residenciais. Essa característica decorre dos ganhos de escala que existem na atividade. Além disso, grandes instituições apresentam maior capacidade de oferta de produtos adicionais (cross-selling) ao tomador da hipoteca, o que as atrai para a ocupação desse mercado. Por essa razão, instituições independentes, especializadas apenas em servicing, não representam mais do que 5% do mercado (Prendergast, 2000). De acordo com a National Mortgage News50, no final de 2010,

Bank of America, Wells Fargo e Co. e Chase ocupavam, respectivamente, as posições dos três maiores mortgage servicers dos EUA, representando 62% do mercado. Essas mesmas instituições apareciam como os três maiores credores hipotecários, sendo que nessa categoria a participação da Wells Fargo Co. (24%) superava a do Bank of America (16%).

O crescimento das atividades dos correspondentes hipotecários, dos mortgage brokers e dos mortgage servicers significou o fracionamento da atividade de concessão de financiamentos habitacionais nos EUA. Esse fracionamento foi influenciado pelo desenvolvimento de um mercado secundário de hipotecas (ver seção 2.2.2), cada vez mais alicerçado na securitização das carteiras de crédito, de maneira a incentivar o avanço dos bancos hipotecários, e pelo desenvolvimento e barateamento da tecnologia da informação (Quadro 1).

Quadro 1. Tecnologia da Informação e Fragmentação do Sistema de Financiamento Habitacional nos EUA

A progressiva fragmentação do financiamento habitacional em diferentes atividades, que apesar de inter- relacionadas são desempenhadas por agentes distintos, ainda que por vezes pertencentes a um mesmo conglomerado financeiro, só pôde se generalizar diante do desenvolvimento de mecanismos que garantissem uma padronização das informações e uma coordenação entre os agentes relativamente simplificada, de tal forma que as assimetrias de informação emergentes da própria fragmentação da cadeia pudessem ser reduzidas (Van Order, 2001; Jacobides, 2005).

Nesse sentido, foi central o desenvolvimento da tecnologia da informação (TI). A década de 1990 tem como característica o florescimento da aplicação de TI ao financiamento habitacional americano, por meio da utilização de credit scores na avaliação de risco e do desenvolvimento de sistemas automatizados de subscrição de hipotecas (automated underwriting systems – AUS) (Colton, 2002).

A ampla utilização da metodologia de credit scoring, desenvolvida pela Fair Isaac Corporation (FICO) nos anos 1980, tornou mais simples e mais homogênea a descrição da qualidade do crédito. Esse instrumento de avaliação de risco só veio a ser utilizado na contratação de hipotecas residenciais a partir de 1992, quando a Freddie Mac atestou sua capacidade de previsão de default para o crédito habitacional. O recurso ao FICO como forma de avaliar e expressar o risco de crédito do tomador tornou mais claros os parâmetros exigidos pelos credores para a aceitação de loan applications trazidas pelos brokers, ou então, os parâmetros exigidos pelas securitizadoras em relação ao risco de crédito das carteiras adquiridas dos credores.

Os sistemas de credit scoring tornaram-se parte integrante dos AUS desenvolvidos, em meados da década de 1990, pelas instituições securitizadoras Freddie Mac (Loan Prospector em 1994) e Fannie Mae (Desktop Underwriter em