• Nenhum resultado encontrado

Novas formas de intervenção e a ampliação do setor privado na habitação social

Capítulo 3. O acesso à habitação e a priorização da propriedade residencial

3.2. Novas formas de intervenção e a ampliação do setor privado na habitação social

O breve resumo da política habitacional no regime fordista descrita na primeira seção teve o objetivo de apontar suas limitações e, consequentemente, o já baixo ponto de partida do processo de relativo desengajamento a marcar as décadas seguintes, em que ganhava contornos o regime financeirizado.

De fato, uma nova fase da evolução do parque social de habitação começou a se formar na segunda metade dos anos 1970, vindo a se explicitar plenamente na década seguinte. Além da progressiva transferência de responsabilidades na área para as esferas locais de governo, que

98 O Housing and Urban Development Act de 1965, que criou os rent supplements concedidos aos ocupantes de

novos imóveis, também estabeleceu a Seção 23, que permitia que as Public Housing Authorities arrendassem unidades habitacionais já existentes e de propriedade do setor privado, sublocando-as a famílias elegíveis à public

housing. Uma variante desse programa possibilitava que as famílias alugassem, elas próprias, seus apartamentos, desde que esses respeitassem os padrões mínimos do programa, recebendo, então, o valor referente ao aluguel desse imóvel (Edson, 2003; Olsen, 2003).

será tratada na seção 3.4, desde esse período dois aspectos marcaram a trajetória do parque social.

Por um lado, verificou-se a desaceleração da expansão da public housing, influenciada pelo aprofundamento dos desequilíbrios macroeconômicos, decorrentes do choque de petróleo dos anos 1970 e da elevação das taxas de juros depois de 1979, aos quais seguiram medidas de contenção das despesas públicas de caráter social. Essas medidas afetaram negativamente o apoio do Estado à habitação social. Frente a essas restrições, as intervenções do governo federal na habitação social se deslocaram da necessidade de expandir a construção de novas unidades para a melhoria do parque já existente e às condições de acesso das famílias à moradia. Adicionalmente, buscou-se mobilizar cada vez mais o setor privado para contrabalancear a relativa retração do Estado.

Por outro lado, a desaceleração do crescimento econômico e da geração de emprego implicou, com o tempo, reformas institucionais que colocaram em xeque a relação salarial fordista. A precarização das relações de trabalho e a elevação das desigualdades sociais, resultantes desse processo, traduziram-se em uma concentração adicional no parque social de famílias de baixa renda, muitas vezes em situação de desemprego ou, então, sujeitas a empregos temporários e mal remunerados. Para amenizar o aprofundamento de sua exclusão social e o surgimento de bolsões de pobreza, a gestão do parque social, sobretudo da public housing, se viu, desde então, na obrigação de arbitrar entre dois objetivos cada vez mais incompatíveis: promover o mix social de seus ocupantes ou ampliar a capacidade de acolhimento das famílias mais necessitadas.

O primeiro passo em direção a uma nova política de incentivo à habitação social foi dado pelo governo Nixon, no início da década de 1970. Depois do congelamento da liberação de recursos para a maioria dos programas habitacionais em 1973, o debate sobre as formas de intervenção do governo federal no setor da habitação levou à aprovação do Housing Act de 1974. Data desse período a criação da Seção 8, que viria a ser o principal programa federal para incentivar a ampliação da oferta de habitação social, em substituição à public housing (Tabela 8).

Tabela 8. EUA: Características das famílias beneficiárias dos principais programas de habitação em 2009

Programas unidades Total de ocupantes Total de Aluguel mensal (US$) Renda familiar anual média (US$) Peso do aluguel na renda (%) Renda das famílias (% da renda mediana da região) % das famílias com renda extremamente baixa Habitação Pública 1.181.938 2.258.510 265 13.300 24 24 71 Vouchers 2.233.628 5.183.108 334 12.800 31 21 76 Seção 8 NC/RS 886.032 1.211.495 266 12.000 27 24 73 Seção 236 169.679 217.751 333 13.400 30 23 71 Outros (1) 623.023 855.445 251 11.300 27 20 79 LIHTC (2) 1.672.239 - - - - - -

Fonte: US Department of Housing and Urban Development (HUD)

(http://www.huduser.org/portal/datasets/assthsg.html)

Nota: (1) Inclui todos os outros projetos multi-famílias assistidos: aqueles com seguros da Federal Housing Administration (FHA) e com subsídios do HUD (como, por exemplo, Section 8 Loan Management, Rental Assistance Program (RAP), Rent Supplement).

(2) Low-Income Housing Tax Credit (LIHTC) trata-se, na verdade, de um instrumento de isenção de impostos federais criado pela reforma tributária de 1986, e não de um programa do Departamento de Habitação e Urbanismo. Esse instrumento será analisado a seguir.

A legislação de 1974 criou duas modalidades diferentes: a Seção 8 Nova Construção e Reforma Substancial (Seção 8 NC/RS), associada à expansão da oferta de novas unidades, como o próprio nome indica, e a Seção 8 Certificados, voltada para imóveis já existentes. A primeira delas, ao invés de subsidiar as taxas de juros do financiamento dos projetos, como no caso da Seção 236, garantia a cobertura da diferença entre o montante correspondente a 25% (30% depois de 1981) da renda do ocupante e o valor do aluguel de unidades de qualidade semelhante na mesma localidade (fair market rent), por um período contratual (renovável) de 20 a 40 anos. As famílias elegíveis ao programa (low income families) deveriam ter, inicialmente, renda de no máximo 80% da mediana da renda de sua região ajustada pelo número de familiares. A segunda modalidade estava sujeita mais ou menos a essas mesmas condições, à exceção do fato de que estava disponível aos imóveis já existentes99.

A legislação de 1974 implicava, então, o reconhecimento da importância da contribuição do setor privado à habitação social, por um lado, e, por outro, que o problema maior a ser gerido pela política habitacional referia-se mais à questão do acesso do que à oferta insuficiente de imóveis. Na base do fortalecimento dessas diretrizes estavam a retórica da defesa de um maior poder de escolha às famílias e a busca pelo controle do crescimento das despesas orçamentárias com a habitação social, associada ao argumento de que o custo do apoio à

99 Adicionalmente, para se qualificar à Seção 8, os imóveis deveriam cumprir exigências mínimas em relação a

características físicas (qualidade e dimensão) e os proprietários deveriam aceitar a realização de vistorias periódicas de seus imóveis.

construção era consideravelmente superior ao custo de complementação da renda das famílias. À medida que as incorporadoras (ou os proprietários de imóveis existentes) podiam designar algumas unidades de um mesmo empreendimento à Seção 8 e ao mercado privado de aluguel, esperava-se que fosse evitada a concentração de famílias de baixa renda, como havia ocorrido com a public housing (Roistacher, 1990; Schwartz, 2006).

Apesar disso, muito em função da recessão econômica e da pressão exercida pelo lobby do setor da construção, a expansão da public housing voltou a constar no orçamento do governo federal no final dos anos 1970, explicando parte da expansão de 52% do parque entre 1969 e 1979 (Tabela 7) (Stoloff, 2004; Roistacher, 1990).

Sob a administração Reagan (1981-1989), o financiamento orçamentário de projetos de grande envergadura, que havia permitido o crescimento do parque público no pós-Guerra, praticamente deixou de existir. Desde então, a maior parte dos recursos alocados foi para subsidiar a conservação dos imóveis (Gráfico 27). Em consequência, o estoque de unidades da

public housing cresceu apenas 15,5% entre 1979 e 1990.

Gráfico 27. EUA: Orçamento do Departamento de Habitação e Urbanismo (HUD) para construção, modernização e operação do parque público - 1977 a 2003

Fonte: Dolbeare e Crowley (2002).

Nos anos 1980, as novas diretrizes foram aprofundadas paralelamente à redução geral dos gastos federais com habitação (seção 3.6, Gráfico 36). Já em 1981, o acesso à Seção 8 foi restringido com a mudança do seu público-alvo das famílias de renda baixa para as famílias de

0 5000 10000 15000 20000 25000 1 9 7 7 1 9 7 8 1 9 7 9 1 9 8 0 1 9 8 1 1 9 8 2 1 9 8 3 1 9 8 4 1 9 8 5 1 9 8 6 1 9 8 7 1 9 8 8 1 9 8 9 1 9 9 0 1 9 9 1 1 9 9 2 1 9 9 3 1 9 9 4 1 9 9 5 1 9 9 6 1 9 9 7 1 9 9 8 1 9 9 9 2 0 0 0 2 0 0 1 2 0 0 2 2 0 0 3 U S $ m ilh õ es ( d o la r d e 20 02 )

renda muito baixa. O limite máximo da renda dos beneficiários foi reduzido, assim, de 80% para 50% da renda mediana. Dois anos mais tarde, por meio do Housing Act de 1983, a Seção 8 NC/RS foi extinta, resultado da radicalização do posicionamento, que já vinha se fortalecendo desde a década anterior, segundo o qual o papel da política habitacional deveria privilegiar a complementação da renda das famílias. Segundo a Comissão Presidencial sobre Habitação de 1982, “hoje (…) o maior problema não é a qualidade das residências nas quais a maioria da população vive, mas o acesso a elas [affordability] (...) O propósito dos programas federais de habitação deveria ser ajudar as pessoas, não construir projetos [residenciais]” (Listokin, 2003; p. 166; tradução própria).

Sob essa concepção, a public housing apresentava, de fato, pouca chance de se expandir. Segundo Dolbeare e Crowley (2002), os recursos do Departamento de Habitação e Urbanismo (HUD) orçados para o desenvolvimento de novas unidades, que já tinham caído de US$ 16 bilhões (a dólares constantes de 2002) em 1978 para US$ 7,6 bilhões em 1980, chegaram a US$ 2,6 bilhões em 1981, persistindo, desde então, em sua trajetória de queda (Gráfico 27).

O espaço liberado pela extinção da Seção 8 NC/RS e pelo baixo crescimento do parque público pôde ser ocupado pelo maior envolvimento do setor privado na oferta de habitação às famílias de baixa renda. O instrumento de incentivo utilizado passava, entretanto, ao largo dos programas habitacionais do HUD. Tratava-se, na verdade, de um instrumento tributário criado pelo Tax Reform Act de 1986, nomeado Low-Income Housing Tax Credit (LIHTC), que persiste como um dos principais instrumentos de apoio à ampliação do parque social de locação.

Em contraste com outros incentivos fiscais, a redução no pagamento de impostos federais por meio do LIHTC não era obtida diretamente pelo incorporador imobiliário, mas, sim, concedido por agências estaduais designadas para essa função (geralmente, Housing Finance Agencies – HFA). O montante (10% devem ser alocados para instituições sem fins lucrativos) que cada estado estava autorizado a conceder como LIHTC era definido de acordo com o tamanho de sua população. Esse mecanismo permitia que as incorporadoras descontassem do total do imposto de renda devido ao Tesouro Nacional o valor do LIHTC recebido, por um período de 10 anos. Em contrapartida, elas se comprometiam a direcionar as unidades habitacionais do projeto desenvolvido a famílias de baixa renda por no mínimo 15 anos. O setor público, no âmbito federal ou no local, tornou-se, assim, sobretudo um incentivador indireto de projetos de habitação social, enquanto a iniciativa, propriamente dita, em relação a esses projetos coube cada vez mais às decisões do setor privado (Schwartz, 2006). Obtidos os LIHTC, eles eram, então, vendidos nos mercados financeiros, convertendo- se assim em capital. O amadurecimento desses mercados ao longo dos anos 1990 fez cair a taxa

de desconto imposta pelos investidores de cerca de 30% no final dos anos 1980 para menos de 10% nos anos 2000, chegando a algo como 5% em 2006. Os maiores compradores desses créditos eram as Government Sponsored Enterprises (Fannie Mae e Freddie Mac), bancos comerciais e instituições de poupança e empréstimo (saving & loans), que os utilizavam para cumprir as exigências do CRA (Community Reinvestment Act). Esses agentes mais as companhias de seguro compreendiam 90% dos compradores de LIHTC em 2002 (Schwartz, 2006 e 2013)

Para obter acesso a esses créditos tributários algumas exigências em relação ao imóvel e seus ocupantes eram estabelecidas: ao menos 20% das unidades habitacionais do projeto deveriam ser accessíveis a famílias com renda máxima igual à mediana da renda da região ou, então, ao menos 40% àquelas famílias com, no máximo, 60% da renda mediana. Os aluguéis máximos para as unidades que gozavam desses créditos tributários eram definidos como 30% das rendas máximas das famílias aceitas – 50% ou 60% da renda mediana da região de acordo como a proporção de unidades beneficiárias. Isso não descartava, contudo, a possibilidade de que famílias com renda menor que esses máximos arcassem com um peso dos aluguéis muito superior a 30% de sua renda, o que não ocorria em outros programas de habitação social como a public housing (Schwartz, 2006).

Por essa razão, as unidades LIHTC geralmente não eram ocupadas pelas famílias mais pobres. Segundo Wallace (1995), apenas 28% dos ocupantes de unidades LIHTC tinham renda familiar inferior a 50% da renda mediana de sua área, contra 90% no caso das unidades Seção 8 NC/RS, 81% do parque público e 77% para unidades Seção 236 e 221(d)(3) (Olsen, 2003; p. 374).

O Housing Act de 1983 também criou uma versão adicional ao programa, estabelecido pela Seção 8 Certificados, de complementação de renda para o pagamento de aluguel: o Freestanding Voucher Program. Esses dois programas diferiam especialmente em dois aspectos. Em primeiro lugar, o diferencial entre 30% da renda das famílias e o cálculo de um aluguel médio ponderado pelas características do imóvel, que funcionava como base de cálculo dos certificados, foi substituído pela definição de um valor máximo para o aluguel a ser coberto pelo voucher, consistindo, assim, em um payment standard. Em segundo lugar, sob o programa de voucher, seus beneficiários estavam “livres” para assumir um custo com aluguel superior ou inferior a 30% de sua renda, sem que isso implicasse em variações no valor recebido. Fica, então, evidente que o programa de voucher favorecia uma blindagem dos gastos federais com o programa frente à evolução dos aluguéis e da renda das famílias, porque passava a depender apenas da atualização do payment standard realizada pelo próprio governo. Ademais, sob o

pretexto da maior liberdade de escolha conferida às famílias estava implícito o reconhecimento de que um custo de habitação maior que 30% da renda das famílias tornava-se, desde então, aceito, não acionando nenhum gatilho de compensação por parte da política habitacional. De fato, como será visto na seção 3.5, a valorização dos imóveis nos anos 2000, ainda que não tenha sido acompanhada na mesma velocidade pela elevação dos aluguéis, levou a uma escalada do peso dos pagamentos de aluguel na renda das famílias, especialmente daquelas de menor renda, sugerindo as limitações desses programas de vouchers para assegurar o acesso à moradia dessas parcelas da sociedade.

Com o objetivo de reduzir os gastos com a Seção 8 Certificados – que se expandiu rapidamente desde sua criação, passando a beneficiar de 100 mil famílias, em 1976, para um pouco mais de 624 mil famílias, em 1980 – foi alterado o cálculo do fair market rent (FRM). Em 1974, esse parâmetro consistia no valor da mediana dos aluguéis dos imóveis recentemente alugados em uma determinada região metropolitana; em 1984, esse valor foi reduzido para o equivalente ao 45º percentil. Em outros termos, após 1984, o FRM consistia em um valor tal que garantia que 45% dos imóveis alugados naquele ano apresentassem aluguéis inferiores. Essa variável de ajuste voltaria a ser utilizada em 1995, quando se passou a usar o 40º percentil. Foi somente em 2001, diante do aquecimento dos mercados imobiliários, que 39 das áreas metropolitanas (entre elas, San Diego, Washington, Atlanta e Chicago) sujeitas às maiores escaladas dos preços imobiliários, foram autorizadas a definir o FMR a partir do aluguel mediano (50º percentil)100.