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A exacerbação do sistema: o desenvolvimento do mercado subprime

Capítulo 2. A transformação do financiamento habitacional e sua integração ao mercado

2.2. O desenvolvimento do mercado secundário de hipotecas e o avanço da securitização

2.3.2. A exacerbação do sistema: o desenvolvimento do mercado subprime

Se nos EUA a afirmação do regime de acumulação financeirizado foi acompanhada do endividamento crescente das famílias, parece correto afirmar que as famílias proprietárias de um imóvel residencial estão em uma situação mais favorável que as não proprietárias, justamente por terem acesso a uma maior alavancagem sob condições de crédito menos exigentes, com algum grau de flexibilidade na gestão de seu passivo e incentivos tributários.

O problema é que ascender à categoria de proprietário tornou-se cada vez mais difícil com o esgotamento da relação salarial fordista. As características da nova estrutura do mercado de trabalho, tratada no Capítulo 1, encontram-se na origem dessa dificuldade. Em primeiro lugar, a flexibilidade das relações trabalhistas foi aprofundada ao mesmo tempo em que as taxas de desemprego se elevaram sob o regime financeirizado. Com isso, tornou-se mais incerta a capacidade de as famílias conservarem, por um período relativamente longo, um determinado fluxo de renda proveniente do trabalho. Endividar-se a longo prazo, como o financiamento habitacional exige, consequentemente, ficou mais arriscado. Em segundo lugar, a dinâmica de crescimento dos salários reais verificada sob o fordismo foi interrompida, conforme já foi afirmado. Os salários crescem em ritmo lento e perdem participação na renda nacional. Em terceiro lugar, como resultando dos dois primeiros fatores, a desigualdade social se elevou (Kopczuk et al., 2010), em função da destruição de postos de trabalho pelo avanço das tecnologias de informação, da transferência de unidades produtivas industriais para outros países, notadamente para a Ásia, pelas novas formas de remuneração e pelas limitações a um efeito descentralizador da renda promovido pelo Estado de Bem-Estar Social.

Em grande medida, o equacionamento, mas não a solução, dessa contradição entre a importância de tornar-se proprietário e as dificuldades crescentes para a obtenção desse status passou justamente pelas transformações do sistema americano de financiamento habitacional, que reforçaram sua capacidade de introduzir inovações financeiras.

Evidentemente, esse não foi o único fator a operar. A intensificação da jornada de trabalho e o acréscimo do número de pessoas a exercerem atividades profissionais em uma mesma família, que ajudaram a arrefecer a compressão dos salários, também tiveram alguma contribuição para esse equacionamento, bem como as isenções fiscais associadas ao montante dispendido como pagamento de juros hipotecários – ao menos para aqueles com renda o suficiente para declararem seus rendimentos ao fisco (Capítulo 3).

Nos EUA, o desenvolvimento e a forte expansão do segmento de hipotecas subprime71

sugerem que seu sistema de financiamento habitacional, em função do papel das inovações financeiras no processo de concorrência dos agentes financeiros, assumiu uma parcela cada vez maior do equacionamento da contradição acima identificada em troca de retornos julgados adequados.

Soma-se, assim, às transformações estruturais uma tendência conjuntural na primeira metade dos anos 2000, ensejada pelo nível historicamente baixo das taxas de juros, a acirrar a concorrência e impulsionar a introdução de inovações financeiras, a partir das quais foi alargado o mercado hipotecário em direção àqueles até então excluídos do financiamento habitacional e, consequentemente, do acesso à propriedade residencial.

O segmento subprime começa a se desenvolver já na década de 1990, especialmente com a aceleração do ritmo de crescimento da economia americana e as estratégias de ampliação das operações dos bancos junto às famílias. Diante da busca de retorno, os bancos firmaram acordos ou adquiriram seus concorrentes não bancários72 nas redline areas73, desenvolvendo

operações de crédito sob o modelo originate-to-distribute – para o que o avanço das tecnologias

71 O segmento subprime reúne tomadores sem histórico de crédito ou com histórico de inadimplência,

correspondendo, na escala da Fitch Ratings, a scores abaixo de 650 pontos. A título de comparação, o segmento

prime de hipotecas compreendem tomadores com mais de 720 pontos nesta mesma escala. Demais contratos considerados nonprime, tais como os Alt-A (Alternative A), que consistem em empréstimos a tomadores sem comprovação de renda, mas com bom histórico de pagamento apresentam um score intermediário (entre 650 e 720 pontos) (Miller et al., 2006).

72 Em 1995, sob administração Clinton, o Community Reinvestment Act (CRA) passou por uma reforma que

buscou simplificar os processos de avaliação da oferta de serviços financeiros em regiões de população de baixa renda, composta majoritariamente de grupos étnicos de afro-americanos e hispano-americanos ou nipo- americanos. Desde então, passou-se a exigir o cumprimento das disposições do CRA como condição para a aprovação de fusões e aquisições. Esse aspecto foi relevante devido ao grande número dessas operações a partir de meados da década de 1990, com a aprovação do Riegle-Neal Interstate Banking Act, em 1994, e do Gramm- Leach-Bliley Act, em 1999, que autorizaram a formação de conglomerados financeiros diversificados e de extensão nacional. A importância do CRA na origem e expansão do segmento subprime das hipotecas continua bastante controversa. Belsky et al. (2000) avaliam que na década de 1990 (1993-1998) a maior parte (2/3) da expansão das hipotecas subprime para tomadores de moderado e baixo rendimento, em áreas com rendimento equivalente, foram realizados por agentes não sujeitos ao CRA. Em contraste, apenas 15% do crescimento em empréstimos a esses tomadores e áreas podem ser atribuídos de instituições sujeitas ao CRA e suas afiliadas. Getter (2015) argumenta que apenas 6% das hipotecas de alto custo (sugerindo pertencerem ao segmento subprime) foram contratadas ou adquiridas por bancos em áreas sob o CRA. Entre aqueles que identificam alguma responsabilidade do CRA no desenvolvimento do mercado subprime está Bernanke (2007b), para quem as operações realizadas por filiais não bancárias (que não estão sujeitas ao CRA) de holdings passaram a ser consideradas na avaliação referente ao CRA das filiais bancárias, caso as matrizes assim desejassem. Também assume essa posição Gramlich (2007), que integrou o Board's Committee on Consumer and Community Affairs, quando esteve no Federal Reserve entre 1997 e 2005.

73 As redline areas fazem alusão a métodos de avaliação de riscos adotados pelas instituições oficiais Federal

Housing Association e Home Owners Loan Corporation depois dos anos 1930 que conferiam cores para distinguir regiões consideradas de maior ou menor risco de crédito. O aspecto étnico-racial era um critério fundamental para essa classificação. Onde a maioria da população era branca tendia a ser avaliada como uma área de baixo risco. Já as regiões onde a população afro-americana era expressiva ou em rápida expansão geralmente eram consideradas arriscadas e identificadas em mapas com a cor vermelha.

de informação nos mecanismos de avaliação de risco (credit scoring) foi de grande serventia – , ampliando a concorrência com agentes financeiros não-bancários que haviam ocupado, no passado, o vácuo deixado pelos bancos nessas áreas. É a constatação de que, com alguma inventividade, a pobreza e a desigualdade crescentes puderam criar oportunidades de mercado recompensadoras. Dimsky et al. (2011, p. 19) explicam as conexões estabelecidas entre bancos e diferentes tipos de entrepostos de serviços financeiros, cujo conjunto de operações, inclusive de contratação de hipotecas subprime, vieram a ganhar importância:

O fechamento de agências bancárias em áreas minoritárias, e o afluxo de imigrantes de minorias étnicas para esses bairros, significou grandes aglomerados de famílias carentes. Os bancos tinham baixas participações nesses mercados – apenas três por cento do mercado de remessas a partir de 2000 (Orozco, 2004). E esses mercados – inicialmente, para cartões de débito, remessas, ordens de pagamento – estavam crescendo de forma explosiva. A falta de market share dos bancos nesses mercados ‘bancários marginais’ em expansão, na verdade, proporcionou um ‘empurrão’ competitivo ainda maior: os bancos tiveram que competir com agentes não-bancários para fornecer dinheiro e serviços de crédito aos clientes dessas áreas – esse foi outro ‘empurrão’. Os bancos começaram a competir por negócios ‘bancários marginais’, direta e indiretamente. À medida que as lojas de desconto de cheques começaram a estender o crédito a seus clientes, especialmente por meio de empréstimos de antecipação do dia de pagamento e do reembolso de impostos, eles mudaram de uma base de tesouraria para uma base de financiamento. Eles faziam conexões a montante com bancos, às vezes por meio de suas matrizes, institucionalizando seu acesso a fundos. Assim, as lojas de desconto de cheques operavam cada vez mais como franquias, e – como os bancos compravam suas matrizes – eram cada vez mais subsidiárias de grandes bancos (Tradução própria).

A passagem da década de 1990 para os anos 2000 também veio acompanhada de forte concentração da geração de hipotecas subprime e predominância de grandes instituições. Segundo Chomsisengphet e Pennington-Cross (2006), entre 1996 e 2003, a participação dos 25 maiores credores do segmento subprime saltou de 39,3% para 93,0%, figurando entre os maiores o Washington Mutual, Countrywide Financial e a CitiFinancial, filial do Citigroup.

Na base do crescimento do segmento subprime, mas também do segmento Alt-A (Gráfico 18), encontravam-se inovações financeiras no mercado primário de hipotecas (Gráfico 19) que permitiam que os tomadores realizassem pagamentos menores no período inicial de existência da hipoteca (balloon mortgage), possibilitando, assim, uma menor relação entre o serviço da dívida e a renda pessoal. Este foi o expediente por meio do qual os credores conseguiram contornar a saturação do mercado (prime) de hipotecas associadas a patamares mais moderados de risco (e de retorno), ampliando o universo de possíveis tomadores em direção àqueles cujos riscos e fluxo de rendimentos não permitiam um endividamento a partir dos contratos padrões. Entre os principais contratos desenvolvidos, destacaram-se:

- Interest-Only Mortgage (IO), por meio do qual o tomador pode pagar apenas os juros sobre o valor do empréstimo durante um período de tempo predeterminado. A cada vencimento

mensal o tomador tem o direito de decidir se paga apenas os juros ou juros acrescidos da amortização do principal.

- Negative Amortization Mortgage (Neg-Am), cujo tomador tem direito (durante um período definido por contrato) a fazer escolha entre três opções: pagar somente juros ou juros acrescidos da amortização ou realizar um pagamento “mínimo”, estabelecido em contrato, cujo valor é menor que o pagamento dos juros. A diferença entre o mínimo e o montante de juros daquele período é incorporada no principal do empréstimo (amortização negativa). Esse tipo de contrato garante pagamentos reduzidos no início, mas que podem crescer expressivamente passado o período de validade da opção. Dependendo das condições do contrato, os pagamentos mensais podem se elevar em mais de 40%.

- Hybrid-ARM (Adjustable-Rate Mortgage), semelhante às demais, busca reduzir os pagamentos durante os primeiros anos de existência da hipoteca. Nesse contrato, durante o período inicial, geralmente de 2 a 5 anos, o tomador paga taxas fixas de juros, consistindo na verdade numa FRM (Fixed-Rate Mortgage). Após essa fase, as taxas de juros tornam-se flexíveis. Isto é, passa a consistir numa ARM. Vale lembrar que desde o início os pagamentos mensais incluem as parcelas referentes à amortização.

- Hybrid IO-ARM (Adjustable-Rate Mortgage), como no caso da hipoteca hybrid-ARM, esse contrato associa taxas fixas e flexíveis, mas oferece a possibilidade de o tomador realizar pagamentos referentes apenas ao montante de juros, por um período predeterminado.

Gráfico 18. Participação dos segmentos subprime, Alt-A e home equity loans no total de hipotecas geradas por ano nos EUA – 2001 a 2006

Fonte: Inside Mortgage Finance apud HUD (2010).

Gráfico 19. Participação das hipotecas Interest Only e Neg-Am no total de hipotecas geradas nos EUA – 2000 a 2005

Fonte: Loan Performance. Apud Zelman, et al. (2007)

Outra prática que se popularizou no mercado primário foi a segunda hipoteca, conhecida como piggyback, emitida simultaneamente à hipoteca principal pelo mesmo credor ou não. A existência desse contrato isentou muitos tomadores (prime ou subprime) de realizar qualquer entrada no momento de contratação da hipoteca (downpayment). Contratos tradicionais,

2% 1% 4% 6% 25% 23% 29% 0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

geralmente, exigiam um sinal de 20%, ou seja, a hipoteca cobre apenas 80% do valor do imóvel. Caso quisesse uma relação maior entre o valor da hipoteca e do imóvel (loan-to-value), o tomador deveria, na maioria dos casos, fazer um seguro junto a uma instituição privada (ou junto à FHA/VA se cumprisse os requisitos exigidos)74. Além da maior alavancagem, outro

incentivo para se tomar uma segunda hipoteca sobre o valor do imóvel não coberto pela primeira é de natureza fiscal, já que os gastos com pagamento de juros sobre hipotecas são dedutíveis do imposto de renda, enquanto os gastos com seguro não. As operações de home equity lending constituíram a principal maneira de se realizar um piggyback.

O crescimento da participação de contratos não tradicionais, em que geralmente estavam presentes balloon payments, assim como a maior facilidade de ampliar a relação loan-to-value, marcou o desenvolvimento do sistema de financiamento residencial nos EUA entre 2001 e 2006, ao custo do acúmulo crescente de riscos implícitos. Muitos tomadores desconheciam frequentemente os termos dos contratos assumidos75, em parte devido à sua complexidade, em

parte devido ao desinteresse dos credores ou seus intermediários (brokers) de enfatizá-los. As instituições credoras, bem como muito dos tomadores esperavam, então, ao contratar hipotecas com essas características, que a tendência de valorização do imóvel se mantivesse ou que as taxas de juros futuras fossem reduzidas ou mantidas, de maneira que pudessem refinanciar as hipotecas em condições favoráveis.

74 A Federal Housing Administration (FHA), criada em 1934, constitui-se em uma das formas de apoio público à

aquisição de imóveis residenciais pelas famílias americanas por meio da concessão de seguros a hipotecas contratadas por tomadores de pior avaliação de riscos e com menor capacidade de aportar recursos próprios como entrada do financiamento. Os seguros, cujos prêmios são pagos pelos tomadores, são emitidos em favor dos credores credenciados junto à FHA. É preciso, contudo, que os contratos cumpram certos requisitos (FHA Mortgage Guidelines), entre os quais, por exemplo, que o imóvel seja avaliado abaixo de determinado teto (o mesmo utilizado por Fannie Mae e Freddie Mac e que define as conventional mortgages, conforme visto na seção 2.2) e que o tomador necessariamente ocupe o imóvel, isto é, estão vetados os financiamentos à aquisição de imóveis como investimento ou segunda residência. Em contrapartida, o tomador pode obter um financiamento mesmo com credit score de 500 pontos (abaixo de 650 pontos costuma-se falar em subprime) e contribuir com até 3,5% do valor do imóvel como entrada do financiamento. O pagamento do prêmio ocorre no momento da contratação do financiamento (upfront premium) e mensalmente até a liquidação do contrato. O U.S. Department of Veterans Affairs também concede seguros que permitem um elevado LTV, podendo chegar a 100%, mas neste caso está restrito aos militares. Além dessas instituições, seguradoras privadas, como a United Guaranty Corporation (UGC), a maior dos EUA e até 2016 controlada pela AIG, concedem seguros a contratos de hipotecas convencionais com downpayment inferior aos habituais 20%, a exemplo do 97% LTV Program (https://www.fanniemae.com/singlefamily/97-ltv-options) e do HomeReady Mortgage (https://www.knowyouroptions.com/homeready) da Fannie Mae. O private mortgage insurance (PMI) está disponível a tomadores de menor risco, cuja avaliação influencia diretamente no custo do seguro, diferentemente do seguro da FHA. Assim que o LTV do contrato atinge 80% (devido aos pagamentos do financiamento ou à valorização do imóvel financiado), o seguro é automaticamente cancelado bem como o pagamento mensal de seu prêmio.

75 Em entrevistas com conselheiros de processos de execução imobiliária, Smith et al. (2009) encontraram

testemunhos do completo desconhecimento dos termos dos contratos por tomadores subprime. Bucks e Pence (2008) mostram, por sua vez, que os tomadores de hipotecas a taxas de juros flexíveis contavam com uma eventual possibilidade de elevação dos juros de seus empréstimos em magnitude de duas a três vezes menor que seus credores (Wilse-Samson, 2010).

Conforme já mencionado, umas das características do financiamento habitacional nos EUA é a de possuir alguma flexibilidade por meio do seu refinanciamento, cujo recurso é difundido devido à ausência de multas ao pré-pagamento. Mas, diferentemente do segmento

prime, essa característica se apresentava de maneira limitada aos tomadores subprime. Em função do maior risco de default ou de pré-pagamento dessas operações à ocasião do balloon

payment, os contratos subprime costumavam contar com penalidades ao pré-pagamento da dívida, especialmente em seus anos iniciais, e consequentemente de seu refinanciamento. Isso garantiria uma defesa, mesmo que parcial, da margem de retorno esperada nessas operações se o tomador viesse a ser obrigado a rever as condições da hipoteca justamente naquele momento em que as taxas de juros viriam a se tornar importantes e, com elas, a rentabilidade auferida pelos bancos. Em troca disso, muitos dos tomadores eram atraídos pela redução das taxas de juros cobradas oferecida pelos credores (O’Neill, 2005).

Dada a mutação do sistema de financiamento habitacional dos EUA analisada nas seções 2.1 e 2.2 deste capítulo, a expansão do segmento subprime não seria possível sem o desenvolvimento de instrumentos de securitização dessas carteiras. As operações desse segmento, baseada em contratos “exóticos”, não eram elegíveis nem à garantia pública concedida pela FHA/VA nem à securitização por Fannie Mae e Freddie Mac, por não respeitarem os parâmetros exigidos por essas instituições. Foram os grandes bancos que se responsabilizaram pela transformação dessas carteiras de crédito em títulos, recorrendo crescentemente a técnicas complexas de securitização. Entre 2003 e 2007, cerca de 90% das hipotecas subprime foram securitizadas (Wilse-Samson, 2010).

A emissão de mortgage-backed securities (MBS) a partir de hipotecas subprime constituiu, contudo, apenas a etapa inicial de construção de uma pirâmide de ativos financeiros que, à medida que se intensificava a criação de novos contratos, tornavam-se cada vez mais tênues seus vínculos diretos com este segmento específico do financiamento habitacional (Gráfico 20). Diante de uma conjuntura de baixas taxas de juros, a concorrência entre os agentes financeiros reforçava a busca por ativos de maior rentabilidade e incentivava a sua criatividade. Conforme visto na seção 2.2, tornaram-se, assim, prática corrente a securitização de hipotecas já securitizadas, por meio de collateralized debt obligation (CDO) e a retirada de riscos do balanço dos credores por meio de derivativos, o que levou ao boom dos derivativos de crédito.

Gráfico 20. Emissões anuais de mortgage-backed securities por tipo de emissor nos EUA– 1995 a 2009

Fontes: Securities Industry and Financial Markets Association, Fannie Mae, Freddie Mac, Federal Housing Finance Agency, Ginnie Mae e Inside Mortgage Finance. Apud CBO (2010).

A composição do pool de ativos ao qual um CDO estava vinculado foi realizada de maneira a obter a melhor classificação de risco possível, o que não significou a ausência de participação de ativos arriscados. A cooperação entre as agências de rating e os emissores de CDO, bem como o fato de que ambos utilizavam os mesmos modelos de avaliação de riscos, permitiram que uma classificação AAA fosse obtida atingindo as condições mínimas exigidas para essa nota76. Dessa maneira, hipotecas e MBS do segmento subprime – além de outros

ativos como recebíveis de cartão de crédito, financiamento à aquisição de automóveis etc – foram adicionados ao conjunto de ativos subjacentes até o limite máximo que garantia a avaliação do CDO desejada pelo emissor (Bhatia, 2007; Mason e Rosner, 2007; Cintra e Farhi, 2008).

76 As agências de rating estavam sujeitas a conflitos de interesse: como as agências eram pagas pelos emissores

de CDO e MBS, elas eram impelidas a realizar uma avaliação que fosse ao encontro dos interesses dos emissores, garantindo, assim, o pagamento de seus honorários (Eichengreen, 2008).

Os CDO eram divididos em diferentes categorias (tranches) de forma a refletir, cada uma delas, um nível específico de riscos e, consequentemente, de retorno. As tranches de menor risco, denominadas Senior, eram adquiridas por investidores institucionais, como os fundos de pensão, além de muitos bancos estrangeiros, notadamente europeus e asiáticos. O fluxo de rendimento dessas tranches só seria comprometido caso todos os detentores das demais

tranches já tivessem incorrido em perdas totais. Já as tranches de risco médio, conhecidas como

Mezzanine, eram remuneradas logo após as Senior e antes das tranches mais arriscadas, denominadas Equities, cujos rendimentos eram os primeiros a serem atingidos pela elevação da inadimplência dos contratos que integravam o pool de ativos do CDO (FMI, 2008).

Essas tranches de maior risco foram adquiridas por agentes de perfil mais especulativo, como os fundos hedge, em geral com linhas de crédito oferecidas pelos bancos emissores. Diante da agressividade dos credores na ampliação do segmento de hipotecas subprime e do desejo dos bancos de continuar ampliando sua receita por meio de operações de securitização dessas hipotecas, as tranches de maior risco, mais difíceis de serem transferidas a outros agentes do mercado, passaram cada vez mais a ser direcionadas para Special Purpose Vehicles77,