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Patrimônio festivo: uma análise dos carnavais de Barranquilla (COL) e Salvador (BRA) sob a perspectiva do patrimônio cultural imaterial

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS

PROFESSOR MILTON SANTOS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

CAROLINE FANTINEL

PATRIMÔNIO FESTIVO:

UMA ANÁLISE DOS CARNAVAIS DE BARRANQUILLA (COL) E

SALVADOR (BRA) SOB A PERSPECTIVA DO PATRIMÔNIO

CULTURAL IMATERIAL

SALVADOR

2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS

PROFESSOR MILTON SANTOS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

CAROLINE FANTINEL

PATRIMÔNIO FESTIVO:

UMA ANÁLISE DOS CARNAVAIS DE BARRANQUILLA (COL) E

SALVADOR (BRA) SOB A PERSPECTIVA DO PATRIMÔNIO

CULTURAL IMATERIAL

Tese apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutora.

Orientador: Prof. Dr. Paulo César Miguez de Oliveira

SALVADOR

2019

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Fantinel, Caroline

Patrimônio festivo: uma análise dos carnavais de Barranquilla (COL) e Salvador (BRA) sob a perspectiva do patrimônio cultural imaterial / Caroline Fantinel. - - Salvador, 2019.

327 f. : il

Orientador: Paulo César Miguez de Oliveira.

Tese (Doutorado - Programa Multidisciplinar de Pós- Graduação em Cultura e Sociedade) -- Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, 2019.

1. Patrimônio Cultural Imaterial. 2. Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. 3. Carnaval de Salvador. 4. Carnaval de Barranquilla. I. Miguez de Oliveira, Paulo César. II. Título.

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Ao meu pai e à minha mãe. Inspiração para uma vida com coragem.

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AGRADECIMENTOS

Confesso que dentre os meus tantos planos e desejos de realização nunca havia figurado o ato de escrever uma tese de doutorado. Pois a vida dá voltas e cá estou eu, finalizando esta super etapa da minha vida. Confesso que este trabalho não foi tranquilo, tampouco linear. Foi um longo e profundo processo, repleto de desafios, superações e pequenas conquistas. Não chegaria a esta etapa final não fosse o apoio e a parceria de muitas pessoas e instituições, as quais merecem meu mais sincero agradecimento.

Inicio as honrarias agradecendo ao meu orientador e parceiro de outras tantas ideias, o professor Paulo Miguez. Obrigada por confiar em mim e no meu trabalho há tantos anos, por me incentivar e indicar caminhos. Suas palavras sempre apareceram como fachos de luz a iluminar os períodos mais nebulosos dessa jornada.

Agradeço também ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do IHAC/UFBA e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) que me concedeu uma bolsa através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), apoio fundamental para a minha experiência na Universidade de Barcelona (UB).

Aos professores que compõem a banca, agradeço a generosidade em terem aceitado conhecer e avaliar o meu trabalho. Considero-me uma pessoa de sorte neste quesito, já que cada um dos participantes possui uma importância muito especial para o desenvolvimento deste trabalho e da minha trajetória. A professora Natália Coimbra de Sá, peça fundamental na minha curta vida acadêmica não apenas por ter sido uma excelente co-orientadora no mestrado, mas também e especialmente por me inspirar através de sua postura de professora e pesquisadora extremamente competente, ética e atenciosa. A professora Márcia Sant‟Anna, referência na área do patrimônio cultural imaterial, é uma grande honra contar com a sua avaliação mais uma vez; aproveito e agradeço imensamente, também, pelos comentários primorosos na ocasião da minha qualificação. Ao professor Beto Severino, agradeço a presença na minha qualificação e a acolhida, sempre tão generosa, das minhas dúvidas e anseios acadêmicos. Ao professor Milton Moura,

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um amigo querido que me ensina tanto com sua forma de ler a festa e pela sua própria existência alegre e festiva.

Uma menção especial aos grupos de pesquisa que frequentei durante diferentes períodos desde o meu mestrado e que influenciaram muito os caminhos dessa minha jornada: “O Som do Lugar e o Mundo”, coordenado pelo professor Milton Moura; e o “Memória e Identidade”, coordenado pelo professor José Roberto Severino. Agradeço, ainda, a excelente acolhida do professor Arturo Rodríguez Morató no Centro de Estudios sobre Cultura, Política y Sociedad (Cecups) da UB.

Meu agradecimento às pessoas que entrevistei por disporem de tempo e atenção e por contribuírem com a construção desse trabalho. Da mesma forma, meu muito obrigada a todos aqueles que me auxiliaram fornecendo documentos, bibliografia e apoio técnico.

Agradeço, ainda, aos colegas do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, o nosso querido IHAC, lugar que orgulhosamente trabalho e aprendo tanto. De forma especial, destaco o professor Messias Bandeira, diretor do Instituto, pela compreensão e parceria irrestrita durante toda essa jornada; à minha ex-coordenadora, professora Sônia Sampaio, por ter me incentivado com coragem para adentrar esse “novo mundo”; e à minha querida colega e amiga Pérola Dourado, por ser uma fonte de motivação e de apoio incondicional.

Por último e não menos importante, me sinto imensamente grata a todos os meus afetos, pessoas que sustentaram esse meu caminho com muito amor, paciência e incentivo. Aos meus pais, a quem dedico este trabalho, é uma honra ser a primeira doutora da nossa família. A toda a minha família, representada aqui pelos meus irmãos, parceiros queridos dessa vida, sempre dispostos a apoiar a caçula. Aos amigos que vibraram e sofreram comigo ao longo deste período, obrigada por não me abandonarem e compreenderem todas as minhas ausências. Aos meus sogros, apoio fundamental no amor e nos cuidados diários comigo. Ao meu grande amor, Álvaro, obrigada por segurar a minha mão durante todo esse tempo, por me acalmar nas horas de angústia, por me encorajar nos momentos de desânimo e por festejar comigo todas as pequenas e grandes conquistas. À minha preciosa rede de afetos, meu mais profundo agradecimento.

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Certos temas dão prestígio ao pesquisador, e outros exigem uma prodigiosa retórica para valorizá-los. Um livro sobre educação, finanças, economia, assistência social, higiene, nutricionismo, empresta ao autor um ar de competência severa, de idealismo prático, de atenção aos “altos problemas”. Quem vai se convencer da necessidade de uma pesquisa etnográfica sobre a rede-de-dormir, a rede que nunca mereceu as honras de atenção maior e é olhada de raspão pelos mestres de todas as línguas sábias?

[Luis da Câmara Cascudo, em "Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica", 1959]

Se me presto a falar longamente de fantasmas, de herança e de gerações, gerações de fantasmas, ou seja, de certos outros que não estão presentes, nem presentemente vivos, nem para nós, nem em nós, nem fora nós, é em nome da justiça.

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RESUMO

O universo do patrimônio cultural protagoniza, a partir da segunda metade do século XX, um processo de expansão e complexificação que culmina em uma compreensão mais inclusiva no que diz respeito aos bens culturais de natureza imaterial. Este trabalho é uma ressonância desse movimento que culminou, a nível nacional, no Decreto 3.551/2000, e no nível internacional, na Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO. Partindo desse contexto, esta pesquisa visa verificar em que medida os marcos regulatórios do patrimônio cultural imaterial influenciam o trabalho dos gestores públicos da cultura de países signatários da referida Convenção. Para tanto, foram selecionados como objetos de análise dois grandes carnavais da América Latina, o de Salvador (Bahia, Brasil) e o de Barranquilla (Departamento do Atlântico, Colômbia). Tendo em vista que apenas um deles possui o título oficial de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, este estudo verificou, de forma complementar ao seu objetivo central, se a obtenção de reconhecimento patrimonial internacional acarreta uma mudança efetiva de conduta no sentido da proteção e promoção do bem em questão; da mesma forma, se um bem cultural não reconhecido oficialmente torna-se mais vulnerável por isso. Para tanto, compreendendo que é dever dos Estados salvaguardar e promover os seus patrimônios, a pesquisa foca a sua análise na atuação dos gestores públicos responsáveis direta ou indiretamente pela gestão dos respectivos carnavais. A condução dos dois estudos de caso se valeu, além de ampla pesquisa bibliográfica, de pesquisa documental e entrevistas dirigidas. Os resultados obtidos confirmam um contexto marcado pelo crescimento exponencial de um mercado que se aproveita e se apropria do ativo de primeira importância que o patrimônio se tornou. Ainda, os avanços no debate e nas políticas de salvaguarda fortalecem e legitimam o discurso dos atores que sustentam simbolicamente os bens culturais, no entanto, o Estado não legitima de forma efetiva esse conjunto de avanços.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural Imaterial; Convenção para Salvaguarda do

Patrimônio Cultural Imaterial; Carnaval de Salvador; Carnaval de Barranquilla.

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ABSTRACT

From the second half of the twentieth century onwards, the universe of cultural heritage has led to a process of expansion and complexification that culminates in a more inclusive understanding of immaterial cultural goods. This work is a resonance of this movement that culminated, at national level, in Decree 3.551 / 2000, and at the international level, in the Convention for Safeguarding the Intangible Cultural Heritage of UNESCO. From this context, this research aims to verify to what extent the regulatory frameworks of intangible cultural heritage influence the work of public managers of culture of signatory countries of the aforementioned Convention. For this purpose, two major Latin American carnivals were selected as objects of analysis: Salvador (Bahia, Brazil) and Barranquilla (Department of the Atlantic, Colombia). Considering that only one of them has the official title of Intangible Cultural Heritage of Humanity, this study, in addition to its central objective, verified if obtaining international heritage recognition entails an effective change of conduct towards the protection and promotion of well in question; likewise, if an unofficially recognized cultural asset becomes more vulnerable by it. Therefore, understanding that it is the duty of States to safeguard and promote their heritage, the research focuses its analysis on the performance of public managers responsible directly or indirectly for the management of their carnivals. The conduction of the two case studies was based, besides the extensive bibliographical research, documentary research and directed interviews. The results obtained confirm a context marked by the exponential growth of a market that takes advantage and appropriates the primary asset that heritage has become. Still, advances in the debate and safeguard policies strengthen and legitimize the discourse of actors who symbolically support cultural goods, however, the State does not effectively legitimize this set of advances.

Keywords: Intangible Cultural Heritage; Convention for the Safeguarding of

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RESUMEN

El universo del patrimonio cultural estrella, a partir de la segunda mitad del siglo XX, un proceso de expansión e complejización que culmina en una comprensión más inclusiva en respeto a los bienes culturales de naturaleza inmaterial. Este trabajo es una resonancia de este movimiento que culminó, a nivel nacional, en el Decreto 3.551 / 2000, y a nivel internacional, en la Convención para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial de la UNESCO. Desde este contexto, esta investigación busca verificar en qué medida los marcos regulatorios del patrimonio cultural inmaterial influyen en el trabajo de los gestores públicos de la cultura de los países signatarios de la mencionada Convención. Para ello, fueron elegidos dos grandes carnavales latinoamericanos como objetos de análisis: Salvador (Bahía, Brasil) y Barranquilla (Departamento del Atlántico, Colombia). Teniendo en cuenta que solo uno de ellos tiene el título oficial de Patrimonio Cultural Inmaterial de la Humanidad, este estudio verificó, de manera complementara su objetivo central, si la obtención del reconocimiento internacional del patrimonio conlleva un cambio efectivo de conducta hacia la protección y promoción del bien en cuestión; asimismo, si un bien cultural no oficialmente reconocido se vuelve más vulnerable por eso. Para ello, entendiendo que es deber de los Estados salvaguardar y promover sus patrimonios, la investigación centra su análisis en la actuación de los administradores públicos responsables directa o indirectamente por la gestión de sus carnavales. La conducción de los dos estudios de caso se basó, además del extenso sondeo bibliográfico, de investigación documental y entrevistas dirigidas. Los resultados obtenidos confirman un contexto marcado por el crecimiento exponencial de un mercado que se aprovecha y se apropia del activo principal en el que se ha convertido el patrimonio. Además, los avances en el debate y en las políticas de salvaguardia fortalecen y legitiman el discurso de los actores que sostienen simbólicamente los bienes culturales, sin embargo, el Estado no legitima de manera efectiva este conjunto de avances.

Palabras-llave: Patrimonio cultural inmaterial; Convención para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial; Carnaval de salvador; Carnaval de Barranquilla.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

1 Mapa Colômbia; localização Barranquilla 127

2 Publicidade das “Muestras Folclóricas” 141

3 Palcos e cadeiras (silleros) na Via 40 144

4 Mapa de palcos e minipalcos Carnaval de Barranquilla

2017 146

5 Carnaval da 44 149

6 Manifestação dos grupos tradicionais do Carnaval de

Barranquilla 167

7 Projeto da fachada do Museu do Carnaval de Barranquilla 185

8 Carro Alegórico Innocentes em Progresso 208

9 Charge Embaixada Africana 216

10 Desfile Batucada (1952) 222

11 Mercadores de Bagdad (década de 1950) 224

12 Escola de Samba Diplomatas de Amaralina (1972) 225

13 Integrante do Ilê Aiyê 236

14 Desenho do carro do Ilê Aiyê em homenagem a Senegal

(Carnaval 1988) 237

15 Carnaval do Olodum 1987 – Tema Egito 240

16 Desfile do Bloco Camaleão 247

17 Desfile de grupo cultural contemplado pelo Ouro Negro 261

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LISTA DE QUADROS

1 Livro Celebrações IPHAN – bens culturais registrados 91 2 Livro Expressões IPHAN – bens culturais registrados 92 3 Bens culturais imateriais registrados pelo IPAC-BA 104 4 Manifestações culturais do Carnaval de Barranquilla 130 5 Plano de salvaguarda, revitalização e proteção do

Carnaval de Barranquilla 2003-2013 158

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AGFA Associação de Grupos Folclóricos do Departamento do Atlântico BAHIATURSA Superintendência de Fomento ao Turismo do Estado da Bahia

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CDC Casas Distritales de Cultura

CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais

CECUPS Centro de Estudios sobre Cultura, Política y Sociedad CHS Centro Histórico de Salvador

COMCAR Conselho Municipal do Carnaval e Outras Festas Populares CNFCP Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular

CNRC Centro Nacional de Referências Culturais

CRESPIAL Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da América Latina

DPI Departamento do Patrimônio Imaterial

EDA Escuela Distrital de Arte y Tradiciones Populares EMTURSA Empresa de Turismo de Salvador

FGM Fundação Gregório de Mattos FNPM Fundação Nacional Pró-Memória FUNARTE Fundação Nacional de Artes

GEIMA Gerência do Patrimônio Imaterial GEPAC Gerência de Patrimônio Cultural

GTPI Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial IBPC Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural

ICANH Instituto Colombiano de Antropología e Historia INRC Inventário Nacional de Referências Culturais

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IPAC Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MondiaCult Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais

ONU Organização das Nações Unidas PCH Programa das Cidades Históricas

PCI Patrimônio cultural imaterial PDS Plano Decenal de Salvaguarda

PDSE Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior PES Plano Especial de Salvaguarda

PNPI Programa Nacional de Patrimônio Imaterial SALTUR Empresa Salvador Turismo

SECULT-BA Secretaria de Cultura do Estado da Bahia

SECULT-SSA Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador SIPAC Sistema de Informações do Patrimônio Cultural da Bahia SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SUTURSA Superintendência de Turismo da Cidade do Salvador

UB Universidade de Barcelona UFBA Universidade Federal da Bahia

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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SUMÁRIO

Introdução 18

1. Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a

consolidação de um conceito ampliado 33

1.1 Os primórdios do patrimônio cultural 34

1.2 Revolução Francesa: patrimônio como bem público 38 1.3 Consagração do monumento histórico: as primeiras leis

patrimoniais da história 39

1.4 Patrimônio e nacionalismo: simbiose do poder 42 1.5 Expansão do campo patrimonial: da reivindicação por

múltiplas identidades a um novo olhar para o patrimônio 47 1.6 “Tudo-patrimônio”: a década de 1990 e a patrimonialização

galopante 57

1.7

A Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e a consolidação de um conceito ampliado para o campo patrimonial

62

1.8 A salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e os

desafios contemporâneos 66

2 A experiência brasileira no campo do patrimônio

cultural imaterial 73

2.1 De Mário de Andrade a Aloísio Magalhães: pensamentos

que iluminaram a compreensão patrimonial no Brasil 73 2.2 A política de salvaguarda do patrimônio imaterial brasileiro 85 2.3 Os desafios para uma implementação efetiva da política

patrimonial brasileira 93

2.4 O contexto patrimonial na Bahia e em Salvador 97 2.5 Um conceito de patrimônio para seguir conosco 110 2.6 A festa como patrimônio cultural imaterial 113

2.6.1 Por uma compreensão da festa 114

2.6.2 A festa contemporânea 120

3 O que torna um patrimônio, Patrimônio? – o caso do

Carnaval de Barranquilla 126

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3.2 Um carnaval em pleno desenvolvimento 132 3.3 “Carnaval de Barranquilla S.A.”: a institucionalização do

mercado na festa 137

3.4 Organização popular: novos atores na dinâmica da festa 147 3.5 Em busca de reconhecimento: a trajetória até o título da

UNESCO 151

3.6 A construção de um Patrimônio – o conteúdo do Dossiê da

candidatura 154

3.6.1 Resultados do Plano Decenal de Salvaguarda 159 3.6.2 Cultura tradicional carnavalesca: apropriações

equivocadas 164

3.7 Plano Especial de Salvaguarda: um exercício inclusivo e

democrático 170

3.7.1 Resultados do Plano Especial de Salvaguarda 179

4 Carnaval de Salvador em perspectiva patrimonial:

urgência em salvaguardar 189

4.1 Salvador, Cidade da Bahia: simbiose festiva 189 4.1.2 Vigor e exclusão: a invenção do carnaval moderno 199 4.1.3 A Embaixada Africana vai passar: estratégias para a

inclusão da festa negra no Carnaval de Salvador 208

4.1.4 Multiplicidade afro-festiva 220

4.1.5 Explosão afro-festiva 230

4.2 Patrimônio pulsante nas mãos do mercado 242 4.2.1 Os impactos do carnaval-negócio no universo cultural e

patrimonial da festa 252

4.2.2 Avanços na salvaguarda da cultura carnavalesca 259

4.2.3 Nova festa, velhas práticas 268

4.3 Por uma nova compreensão do Carnaval de Salvador: a

urgência por salvaguardar o patrimônio festivo 277

Últimas palavras... 285

Referências 292

Apêndices 306

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INTRODUÇÃO

O patrimônio acompanha as civilizações humanas desde o princípio dos tempos, assumindo um lugar de notória centralidade nos processos de desenvolvimento da história mundial. A compreensão e o uso destinados a ele foram sendo atualizados ao longo dos séculos, acompanhando a história das sociedades e reagindo a cada nova ordem do tempo. Dentre as mudanças que foram lhe redefinindo, apenas um aspecto ficou intocável – a exclusividade pela sua materialidade.

Ficando apenas em uma fase mais recente da história, é fundamental lembrarmos que a consolidação das identidades nacionais demandou, além de uma língua e de um território, uma história. Para tanto, narrativas cuidadosamente elaboradas a partir de um passado pregresso glorioso transformaram essas nações, para além de uma entidade política, em um sistema de representação cultural. O patrimônio figurou como um dos sustentáculos mais importantes desse empreendimento na medida em que atuou como um mediador poderoso na promoção do sentimento nacional, erigindo-se como repositório das memórias e identidades das jovens nações. Por isso todo o esforço dos Estados Nacionais em selecionar, construir e, inclusive, inventar seus próprios patrimônios.

Mas quê patrimônio era esse? Como legado das ideias renascentistas de arte e beleza, foram os bens materiais e os seus valores do excepcional, do belo e do singular os eleitos para representar os traços identitários de uma nação. Assim, os traços nacionalistas que originaram e definiram a natureza do patrimônio na sua concepção moderna e ocidental consagraram de forma absoluta monumentos, igrejas, casarões, praças, museus, bibliotecas e uma serie de outros grandiosos edifícios religiosos e civis. A excepcionalidade e a monumentalidade se configuraram, então, como critérios únicos para a preservação, suprimindo todo o conjunto de sentidos e valores intrínsecos a toda e qualquer produção cultural humana. Na medida em que invisibilizou a dimensão simbólica dos bens culturais, este modelo negligenciou especialmente as culturas produzidas pelos setores subalternos.

No entanto, o conjunto de transformações que marcou a ordem social nas últimas cinco décadas impactou diretamente toda essa conjuntura, impulsionando

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uma mudança de perspectiva radical no que diz respeito ao entendimento clássico de patrimônio cultural praticado no ocidente de forma exclusiva até o fim do século XX. No bojo das décadas de 1970 e 80 ganharam voz as reivindicações de diferentes grupos pelo reconhecimento de identidades até então suprimidas, como as étnicas, ideológicas, religiosas, de gênero etc. Essa ebulição identitária em muito se deve à “equação antropológica da construção da alteridade” (ABREU, 2009, p.35) que floresceu no debate das ciências sociais, compreendendo a cultura de forma processual e sujeitando a identidade nacional à transformações significativas.

A guinada antropológica da cultura faz despontar um sentimento de ausência absoluta de representatividade entre todos aqueles que não se enxergavam refletidos nos patrimônios nacionais consolidados até então. Esses grupos passam a reclamar seus direitos e a demandar a inclusão da sua criação cultural na composição patrimonial. Desse período são emblemáticas as reivindicações de países da América Latina que não se sentiam representados por uma cultura de base material e eurocêntrica; e a inspiração das experiências orientais de preservação dos conhecimentos tradicionais.

Também é possível situar esses acontecimentos na emergência da filosofia do Estado do Bem Estar Social, constituída por valores como a inclusão social e a responsabilização pública e que tem como uma de suas consequências a quebra da hierarquização no campo da cultura através da institucionalização da política cultural. (MORATÓ, 2007) Maria Cecília Londres Fonseca (2009, p.76) lembra que a ampliação do conceito de cidadania contribuiu para que as fronteiras apertadas do imaginário nacional fossem extrapoladas através do reconhecimento dos direitos culturais dos diferentes grupos que compõem uma sociedade – “o direito à memória, ao acesso à cultura e à liberdade de criar”, assim como o de “produzir e consumir cultura”.

A América Latina participa ativamente de todo esse movimento e, durante as últimas duas décadas do século XX, quase todos os países da região passam a reconhecer e a proteger, em suas Constituições, a diversidade de culturas, etnias, línguas, patrimônios. Entra em cena uma cidadania multicultural que coloca em evidência as práticas sociais das diferentes memórias e identidades que compõem estes territórios. Resultado disso, de forma inédita, a figura do sujeito portador de cultura é introduzida no campo das políticas públicas e investida de direitos.

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Fica evidente, então, que a concepção preservacionista praticada no ocidente há mais de um século não daria conta de atender a toda essa mudança social que clamava por uma narrativa amparada pela diversidade. Ao olhar para trás, mesmo que, ainda, com uma pequena distância de tempo, é possível afirmar que esses acontecimentos foram preparando a ruptura do patrimônio com a sua longa história restrita às narrativas memoriais do poder e legitimada unicamente pelos postulados do saber erudito, fechado às subjetividades e limitações do campo intelectual.

Assim, como ressonância e culminância de todo esse movimento, em 2003 a UNESCO aprova a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial com uma proposta mais inclusiva e equitativa no que diz respeito aos bens culturais de natureza imaterial. Ampliando a leitura restritiva e exclusivista do patrimônio material, a partir daqui o conjunto de saberes e fazeres de diferentes grupos sociais passou a ser compreendido como partícipe fundamental dos patrimônios nacionais, assumindo um posto de maior relevância no que diz respeito ao favorecimento pelo campo das políticas públicas estatais.

Foi esse contexto que nos conduziu aos primeiros questionamentos que dariam origem a este estudo. Como esse debate em torno do patrimônio cultural imaterial reverbera na ponta de todo esse processo, ou seja, nos próprios bens da cultura imaterial? Esse novo panorama patrimonial impulsionou mudanças na gestão pública da cultura popular? Os detentores culturais foram deslocados, efetivamente, para uma posição de maior protagonismo social e político e tratados como sujeitos de direitos através do reconhecimento e salvaguarda da sua produção cultural?

A partir dessa problematização elaboramos a questão fundamental desta tese: em que medida os marcos regulatórios do patrimônio cultural imaterial influenciam o trabalho dos gestores públicos de bens culturais imateriais de países signatários da respectiva Convenção?

Tendo em vista a abrangência dessa questão, iniciamos a busca por objetos de análise que tornassem viável a investigação proposta. Como premissa, desde o princípio nosso interesse esteve centrado em analisar duas situações – uma protagonizada por um bem cultural possuidor do reconhecimento oficial da UNESCO e outra marcada por um bem que não possuísse essa chancela. Assim, de forma complementar à nossa questão fundamental, nos interessa verificar se a obtenção

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de um título oficial de Patrimônio Imaterial da Humanidade acarreta de fato uma mudança de conduta no sentido da proteção e promoção do bem em questão. Da mesma forma, se um bem cultural não reconhecido oficialmente torna-se mais vulnerável por isso.

As pesquisas anteriores da autora deste trabalho com festas populares inspiraram diretamente a escolha dos objetos para essa nova empreitada. Assim, decidimos que nossas perguntas seriam respondidas através da experiência de dois grandes carnavais da América Latina, o de Salvador (Bahia, Brasil) e o de Barranquilla (Departamento do Atlântico, Colômbia). A escolha por este recorte se deu por alguns aspectos compartilhados entre estas duas festas – ambas são festividades públicas urbanas de grandes proporções; acumulam um significado cultural relevante para as sociedades que as realizam; compõem a dinâmica da indústria cultural, sendo amplamente midiatizadas; demandam modelos de gestão complexos; e, além disso, os dois países são signatários da Convenção de 2003 da UNESCO. No entanto, mais do que as similaridades, a diferença que arrematou a escolha foi o fato de que enquanto o carnaval de Salvador não possui nenhum título oficial de reconhecimento patrimonial, o carnaval de Barranquilla é reconhecido, desde 2003, como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO.

Definidos os objetos de análise, centramos o objetivo do nosso trabalho em verificar se os marcos regulatórios e todo o debate em torno do patrimônio cultural imaterial influenciam a gestão pública do Carnaval de Salvador e do Carnaval de Barranquilla. Por marcos regulatórios compreendemos a Convenção de 2003 e os documentos que regulam o tema do patrimônio imaterial nestes dois países.

Partindo de uma perspectiva patrimonial, muitas seriam as possibilidades de observação e análise dessas festas populares. Optamos por ampliar o zoom da nossa lente na atuação da gestão pública por entender que é dever dos Estados salvaguardar e promover os seus patrimônios. Diante de um contexto marcado pelo crescimento exponencial de um mercado que se aproveita e se apropria de identidades e lugares de memória, os Estados devem assumir a sua posição de órgãos reguladores e equilibrar as forças externas que se aproximam do universo patrimonial, fomentando o protagonismo e a autonomia das comunidades e seus patrimônios, sejam eles chancelados por um título oficial ou não. Isso ganha ainda mais relevância se lembrarmos que a Convenção de 2003 não se configura como

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um compromisso jurídico obrigatório aos seus países signatários, sendo essencial, assim, vontade política para que as recomendações deste documento sejam traduzidas de forma efetiva em políticas públicas.

Para cumprir com a nossa proposta de trabalho, fizemos uso, essencialmente, de procedimentos metodológicos qualitativos, abordagem que nos permitiu uma compreensão profunda dos fenômenos sociais em suas particularidades. Ainda, a "descrição densa" desses fenômenos configurou-se “como um „mergulho em profundidade‟ dentro de um grupo „bom pra pensar‟ questões relevantes para o tema estudado”. O maior desafio dessa imersão profunda foi não perder de vista que éramos, enquanto pesquisadores, o principal instrumento de todo o nosso trabalho investigativo. Nesse sentido, foi um exercício diário manter a clareza dos objetivos propostos e a coerência na condução de um trabalho acentuadamente subjetivo de análise de dados. (GOLDEMBERG, 1999, p.50)

Nossa estratégia metodológica fez uso dos seguintes procedimentos: (I) pesquisa bibliográfica; (II) pesquisa documental complementada por análise de conteúdo; (III) estudo de caso.

Através de extensa pesquisa bibliográfica adentramos temas variados, concentrando-nos especialmente na revisão da literatura daqueles que eram essenciais para o trabalho – patrimônio cultural imaterial, seu entendimento conceitual e suas aplicações em Salvador e Barranquilla; festa; aspectos históricos e contemporâneos dos dois carnavais analisados.

A pesquisa documental foi o caminho metodológico que nos auxiliou na compreensão e análise de documentos importantes para esta investigação, como foi o caso da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial e de todo o conjunto de leis e decretos envolvendo a temática patrimonial nos países e regiões dos bens pesquisados. Também a utilizamos para uma leitura correta dos materiais de imprensa coletados. Para a avaliação preliminar dos documentos, seguimos as orientações de André Cellard (2008), que sinaliza que, antes mesmo de analisar o conteúdo do documento, é primordial (I) atentar para o contexto em que este foi criado; (II) avaliar a credibilidade do texto através da identidade e da posição de fala do autor; (III) verificar a autenticidade do texto; (IV) analisar a natureza do texto, a fim de não perder tempo com documentos que foram criados em contextos muito

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específicos e que se distanciam dos objetivos em questão; (V) avaliar o sentido dos conceitos-chave empregados, bem como a lógica com que o texto é construído. A partir desta compreensão preliminar, a leitura dos documentos seguiu critérios da análise de conteúdos, técnica que auxiliou na organização, categorização e sistematização das informações, por meio do levantamento de uma série de indicadores que conduziram à compreensão dos seus significados.

Para a observação e análise dos dois carnavais selecionados, seguimos as diretrizes de Robert Yin para o procedimento de estudo de caso. Segundo o autor (2001, p.32), este método “investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”. Essa escolha nos demandou uma penetração na realidade social dos fenômenos estudados, a fim de selecionar, compreender e sintetizar a complexidade ampla de variáveis que estavam ao nosso alcance. Para tal, procedemos com a observação in loco do Carnaval de Barranquilla (2017) e do Carnaval de Salvador (2015, 2016, 2019); com o acesso a um grande número de documentos e arquivos; com entrevistas em profundidade com gestores e atores sociais que mantêm uma relação direta com as duas festas; e com um acompanhamento, de abril de 2015 ao final desta pesquisa, da cobertura jornalística dos principais acontecimentos que diziam respeito direta ou indiretamente aos objetos de estudo em questão, bem como dos pronunciamentos oficiais e entrevistas concedidas pelos seus respectivos gestores culturais.

Destacamos que este último ponto se configurou de fundamental importância para a condução da pesquisa por dois motivos: (I) a distância do Carnaval de Barranquilla e o contato com um número bastante reduzido de pessoas na região dificultavam o acompanhamento dos debates em torno da festa; (II) durante o período de intercâmbio da autora no Centro de Estudios sobre Cultura, Política y

Sociedad (Cecups) da Universidade de Barcelona (UB) – de abril de 2017 a julho de

2018 – essa distância ficou maior, incluindo, também, o Carnaval de Salvador. Assim, o monitoramento dessas informações auxiliou de forma muito relevante o preenchimento das lacunas causadas pela distância física. Para facilitar esse acompanhamento, fizemos uso de uma ferramenta digital que possibilitou que cada nova notícia publicada fosse imediatamente direcionada à nossa caixa de correio eletrônico.

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Essa longa jornada foi materializada nos quatro capítulos que dão corpo a este trabalho. Através deles mergulhamos profundamente nos temas mais caros ao nosso estudo; também, vez ou outra, mergulhamos de forma mais suave em aspectos que acionamos para iluminar de forma complementar as nossas análises. E tantas e tantas outras vezes ficamos na beira, apenas a observar e aprender com os fluxos e os refluxos das marés desse vasto universo festivo e cultural que nos propomos adentrar.

Uma pequena observação antes de prosseguirmos: a partir daqui e até o final da Introdução alteraremos o tempo verbal para a primeira pessoa do singular. Apesar de todo o trabalho ter contado com o acompanhamento e orientação do professor Paulo Miguez, a jornada percorrida para a construção de cada um dos capítulos constituiu-se como uma experiência extremamente pessoal. Nos parágrafos que seguem optamos, não apenas por apresentar o conteúdo que o leitor encontrará ao longo dos quatro capítulos, mas por compartilhar um pouco do diário dessa viagem, colocando luz, também sobre o processo de construção, os erros, os acertos; conferindo, assim, um pouco mais de humanidade para este trabalho e para a sua autora. Dessa forma, julgamos pertinente conceder ao texto que segue um tom de maior pessoalidade. Vamos a ele.

O texto (ou “O diário da viagem”)

Iniciei meu mergulho já com densidade e profundidade. O primeiro capítulo apresenta um panorama histórico que narra o desenvolvimento do conceito de patrimônio cultural, abordando, especialmente, o processo de expansão e complexificação que a noção protagoniza a partir da segunda metade do século XX, quando passa a englobar toda a diversidade cultural presente nas sociedades.

No entanto, adentrei essa trajetória muito antes, buscando marcos históricos que pudessem ajudar a compreender os motivos pelo qual a materialidade havia se consagrado como prática de preservação exclusiva no ocidente por um período tão extenso de tempo. Dos colecionadores romanos ao utilitarismo medieval, passei pelos novos olhares do quattrocento italiano; dos antiquários iluministas, desembarquei nas tensões revolucionárias da França e nos traumas da industrialização. Essa jornada ao longo de tantos séculos, apesar de cansativa, me

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fez chegar mais madura ao momento de compreender porque os traços nacionalistas que originaram e definiram a natureza do patrimônio na sua concepção moderna foram representados, essencialmente, por bens materiais que acentuavam valores como a autenticidade e a excepcionalidade.

Passando por tantas igrejas, tantos casarões, tanta pedra e tanto cal, finalmente comecei a escutar memórias que até então estavam no plano subterrâneo, clamavam com força para serem ouvidas e representadas. A segunda metade do século XX me trouxe boas novas. Finalmente, as estruturas mudas e pesadas foram oxigenadas, ganharam voz, nomes, histórias. Assim como tantas danças, línguas, festas, objetos, rios sagrados... Os olhos fechados em um imaginário onde o belo não passava de mera ilusão se abriram para um mundo real e cheio de sentido, de símbolos, de significados. Como era de se esperar, essas novas vozes e novas formas não chegaram sozinhas ao universo patrimonial; trouxeram consigo desafios complexos a serem observados e tratados. De onde eu estava, tentei jogar luz, também, sobre eles.

Não seria capaz de contar essa longa história não fosse o encontro com Françoise Choay, Krzysztof Pomian, Françoise Hartog, Carla Cabral, Pierre Nora, Nestor García Canclini, Michel Pollak e tantos outros.

Quando terminei de escrever a primeira versão desse capítulo um aspecto tirou meu sono durante dias a fio – o tom eurocêntrico do texto, das vozes, das experiências escolhidas para estarem ali. Essa sensação foi confirmada pela observação pertinente da professora Márcia Sant‟Anna que, no momento da qualificação deste trabalho, me alertou de que a opção por tomar a UNESCO como fio condutor único e exclusivo para apresentar a trajetória do campo do patrimônio traria esse tipo de consequência. Não demorou muito para conseguir resolver esse impasse e voltar a ter noites tranquilas. O responsável por isso tem nome: Mário de Andrade. Como quase sempre, a solução para a inquietação estava aqui dentro, no coração do Brasil. As ideias desse homem colocaram o nosso país em posição de vanguarda no quesito patrimônio imaterial, cultura popular, diversidade cultural. Ele abriu as mentes e Aloísio de Magalhães abriu as portas. Tenho uma história inspiradora para contar e, mais uma vez, a fiz através de vozes ilustres, como Maria Cecília Londres Fonseca, Márcia Sant‟Anna, Marcia Chuva, Regina Abreu, Reginaldo Gonçalves e Hermano Queiroz.

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Assumo a culpa por uma revisão de literatura tão longa, repleta de pormenores e de caminhos caleidoscópicos. É verdade que muita coisa poderia ter sido sintetizada ou, quiçá, nem aqui estar. Acontece que tenho uma inclinação à visões panorâmicas, detalhes, leituras demoradas...acabei transferindo um hábito bastante pessoal para o meu trabalho. Peço desculpas, então, aos leitores mais ocupados. Também àqueles mais impacientes. Para estes casos, não sendo iniciantes no tema dos dois primeiros capítulos, desembarquem diretamente nas ruas festivas do terceiro.

Melhor dizendo, antes disso a parada na última seção do segundo capítulo é obrigatória. Diante de tantas camadas e tantas matizes que compuseram o panorama histórico e conceitual que apresentei até aqui, julguei por bem estabelecer um conceito de patrimônio para seguir conosco trabalho adentro. Uma missão desafiadora se levarmos em conta que na atualidade o patrimônio protagoniza uma interface dialógica intensa com uma diversidade de atores e de questões, como as que dizem respeito ao campo da arquitetura e urbanismo, meio ambiente, cultura, educação, turismo, comunicação, direito etc. Esse contexto permite que o tema do patrimônio e da sua preservação seja acionado e estudado a partir das mais diversas perspectivas por uma gama imensa de pesquisadores e profissionais, o que o posiciona em um campo multi, inter e transdisciplinar.

Diante de tantas possibilidades, não tive muitas dúvidas em me alinhar ao fato

social total do francês Marcel Mauss. Apesar de amplamente utilizada nas ciências

sociais, essa noção foi pouco teorizada pelo seu próprio criador, nunca tendo alcançado consenso no campo científico, o que a faz acumular diferentes interpretações e possibilidades de leitura. Por isso mesmo o meu trabalho de compreensão do conceito maussiano foi árduo e demorado e não teria sido possível não fosse a colaboração fundamental de Claude Dubar, Naoki Kasuga, Thierry Wendling, Paulo Henrique Martins e, especialmente, Alexander Gofman.

A partir da leitura de Mauss e dos seus intérpretes fui tecendo a compreensão do meu próprio conceito e nenhum outro além dele explicou tão bem o que eu queria dizer sobre os patrimônios imateriais que estudaria ao longo desta investigação. Fenômenos que penetram em todos os aspectos do sistema social, afetam e são afetados por tudo o que mobilizam. A profundidade simbólica que os constitui lhes permitem atravessar e colocar em relação todas as dimensões da sociedade onde

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estão inseridos, estabelecendo-se, assim, como motores do seu sistema social. Tal e qual as nossas festas.

De igual maneira, antes de colocar o pé nas tramas festivas de Barranquilla e de Salvador, senti necessidade de maturar a compreensão sobre o universo festivo, observando o fenômeno em perspectiva – o que pode ser visto no fechamento do segundo capítulo. Não hesitei em concordar com a defesa de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2013) de que as festas são portas de entrada privilegiadas para a compreensão das sociedades humanas. Esse foi o meu fio condutor. E para tal segui as contribuições de Émile Durkheim e Roberto DaMatta com o intuito de acessar uma leitura da festa a partir dos elementos simbólicos do ritual. As obras dos dois autores foram essenciais para tecer a compreensão da festa enquanto repositório de imaginários sociais; no entanto, cabe a ressalva de que não compactuo com algumas das análises de ambos, especialmente aquelas que flertam com uma ideia universalizante e, por vezes, até conciliadora da festa. Na via oposta, reconheço-a como um espaço profundo de tensões, disputas, negociações e resistências – uma dimensão que sempre acompanhou o território festivo e que se acentua com a consolidação das sociedades urbano-industriais e a consequente interface com novos atores e seus interesses.

A forma como a festa está posicionada neste trabalho – a partir do seu potencial simbólico, mediador e representativo – faz com que ela assuma posição de destaque no universo do patrimônio cultural imaterial. Sendo, ainda, uma via de acesso para visualizar tanto os problemas em torno da conceituação patrimonial como as questões relacionadas à salvaguarda e aos desafios contemporâneos do campo, tais como preservação, intervenção, participação dos atores, atuação do mercado etc.

Segui minha viagem contando com todo este campo teórico inicial para dialogar com os dados empíricos de campo. Passemos, então, de um debate de ordem mais conceitual à análise da prática propriamente dita, “na esperança de que as experiências venham, como de costume, enriquecer a reflexão, numa dialética do processo de produção do conhecimento e de transformação da realidade.” (FONSECA, 2009, p.77)

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Cheguei ao capítulo 3 já sentindo a brisa quente do Caribe colombiano. Aportei em Barranquilla, uma cidade ao norte da Colômbia que se orgulha por ter o maior carnaval do seu país. Ao finalizar este capítulo, mais do que os resultados esperados, cheguei a uma conclusão não prevista no início da jornada: como é difícil capturar um objeto à distância! Ainda mais um objeto acentuadamente denso, complexo e com tantas tensões em jogo como é o caso do Carnaval de Barranquilla. Muito provavelmente tenha sido o período mais extenuante desta tese. Apostaria que não me escapou nenhum texto dos mais importantes, nenhuma notícia na imprensa, nenhuma declaração oficial ou entrevista dos gestores da festa. Mergulhei profundo, durante meses a fio, no universo festivo barranquilhense. E foi dessa forma que consegui relativizar o peso da distância, reunindo um mar de informações valiosas.

Refleti muito sobre como apresentar os dois carnavais em foco. Diante da multiplicidade de possibilidades de análise e de perspectivas de significados que as festas carregam consigo, eu tinha consciência de que precisava evidenciar um aspecto que fosse coerente com o objetivo do trabalho, ou seja, que contribuísse com a análise desses fenômenos segundo as diretrizes do campo do patrimônio cultural imaterial. Essa perspectiva deveria, em linhas gerais, propiciar um ponto de vista não apenas da diversidade e profundidade simbólica que constitui essas festas, mas acima de tudo, um ponto de vista que permitisse visualizar a posição ocupada pelos atores sociais que sustentam simbolicamente esses bens culturais – para o caso desta pesquisa, me interessava observar, especialmente, as relações e as atitudes que os gestores da festa estabelecem com esse coletivo. E assim foi.

Estudando a história do Carnaval de Barranquilla, observei que um aspecto era constante e proeminente ao longo dos seus mais de cento e quarenta anos de existência – o caráter classista presente nos grupos e nas estruturas dirigentes da festa. Consequência disso, o povo – a matriz criadora do carnaval de rua e de todas as suas expressões populares – teve, desde o princípio, a sua participação negada nas questões relacionadas à gestão da festa e a sua presença nas ruas controlada por hierarquias superiores, situação esta que fomentou um cenário tenso e marcado por disputas contínuas por espaço e representatividade. Bingo! Adentrei o Carnaval de Barranquilla tendo esse aspecto como fio condutor. O leitor vai perceber que o reconhecimento da festa como Patrimônio Imaterial da Humanidade, longe de ter

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abolido essas tensões sociais, provocou uma complexificação e, em larga medida, uma ampliação das mesmas.

Para compor o quadro histórico e, também, as análises contemporâneas que apresentam o Carnaval de Barranquilla neste trabalho, acessei uma infinidade de autores e obras. Destacamos aqui os mais recorrentes, sinalizando que não foram os únicos – Martha Lizcano Angarita, Danny Cueto González, Adolfo Henríquez, Jaime Olivares e, especialmente, os trabalhos primorosos de Edgar Rey Sinning, Carlos de Oro e Paolo Vignolo.

Outro ponto a ressaltar, a minha presença in loco para conhecer e cumprir com a tarefa metodológica de observar a festa. Era fevereiro de 2017 e eu já acumulava alguma informação acerca do Carnaval de Barranquilla, no entanto, não foi o suficiente para me livrar de tamanha surpresa ao deparar-me com a magnitude da festa e da sua organização racional. Ingressos caríssimos, estruturas de camarotes e arquibancadas que cobriam toda a via dos desfiles, impossibilitando qualquer visão para aqueles que não tinham a chave de acesso aos espaços pagos. Não tive outro jeito senão pagar e me sentar para ver as maravilhosas cumbias, garabatos, paloteos e uma infinidade de outros grupos tradicionais. Se quando escrevi o meu projeto de doutorado, ensaiei como hipótese inicial a ideia de que um carnaval reconhecido oficialmente como patrimônio teria os atributos necessários para configurar-se como um modelo ideal a ser seguido por outros, esta caiu por terra justo nesse instante. Uma estranheza imensa comprovou, ali, a minha ingenuidade e imaturidade com relação às experiências práticas do que eu vinha estudando, os patrimônios reconhecidos como da humanidade. Este em específico só dava acesso a uma pequeníssima e exclusiva parte da humanidade.

Demorei um bom tempo para me curar dessa experiência. O choque foi tamanho que cheguei a pensar em abandonar o objeto. Felizmente não o fiz. Entendi que o que estava considerando como contradição e incoerência, tratava-se, na verdade, da matéria-prima mais valiosa para as minhas análises.

Apesar de todas as distorções de uso que tanto me incomodaram à primeira vista, adentrar a experiência patrimonial do Carnaval de Barranquilla foi de uma riqueza sem fim. Das metodologias participativas utilizadas com os atores culturais, à construção de inúmeros programas e projetos, à avaliação dos mesmos, à tensão

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com tantos e tão diferentes atores concentrados em torno desse bem cultural... a aproximação com cada um desses aspectos (e, ainda, muitos outros) ampliou significativamente a minha visão sobre o extenso processo de reconhecimento patrimonial, bem como sobre as tantas tensões que se formaram e se acumularam com o recebimento do título. Além do processo em si, a minha análise esteve centrada nas propostas e resultados do Dossiê para a candidatura da UNESCO, de 2002, e do Plano Especial de Salvaguarda, elaborado em 2015.

Antes de seguir, recordamos, ainda, que as entrevistas que fizemos – especialmente a com a gestora da festa e com o gestor do carnaval alternativo mais popular da cidade – nos propiciaram avançar acentuadamente nas análises. A riqueza de detalhes, a paciência em explicar aspectos que, apesar de serem comuns para os barranquilhenses, não o são para uma brasileira; a generosidade no compartilhamento de documentos e imagens. Não conseguindo entrevistá-los pessoalmente no verão de 2017 (por conta dos compromissos de ambos com a festa), optei por correr o risco de deixar essa tarefa para o último semestre do trabalho. Minha ideia foi ter análises mais avançadas para conseguir entrevistas mais profundas. Por um lado, a estratégia se mostrou exitosa – o nível das entrevistas pode, seguramente, ser considerado avançado. Por outro lado, deixando para o último momento, não me sobrou o tempo necessário para explorar o conteúdo coletado como gostaria ao longo do texto já pronto. Uma tarefa para artigos futuros. Ainda no tema das entrevistas, infelizmente não conseguimos, apesar de muito tentar, entrevistar o secretário de cultura da cidade. Para cobrir essa lacuna, monitoramos suas entrevistas e as atividades da Secretaria que se relacionavam com o tema do carnaval.

O Carnaval de Salvador é abordado no quarto e último capítulo. Da mesma forma que fiz com Barranquilla, busquei apresentá-lo a partir de uma perspectiva que contribuísse de forma objetiva ao tema central da nossa análise. Adentrando a sua história, não é necessário muito esforço para perceber que um aspecto salta logo à vista – uma trajetória marcada pela desigualdade, exclusão e tensão étnica e cultural. A história do Carnaval de Salvador nos possibilita verificar que o profundo quadro de desigualdade social que a cidade enfrenta acarreta uma profunda desigualdade de direitos também no território festivo, com o uso sistemático de repressão, controle e silenciamento culturais e identitários. E, sabemos, a cultura

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perseguida e silenciada tem cor – e é negra. Me guiei, então, por esse conflito étnico-simbólico que se desenrola no universo carnavalesco soteropolitano há mais de um século.

Nesse sentido, fiz questão de colocar em evidência o princípio da história moderna da festa. Voltando tantas décadas no tempo, busquei mostrar que o Carnaval de Salvador tem na exclusão a justificativa para a sua própria criação (ou invenção, como queiram). Para isso fui longe, revisitei a passagem forçosa do entrudo para um modelo de carnaval civilizado, busquei os significados de tanto luxo nas grandes sociedades carnavalescas e me fascinei com a ebulição negra nas ruas do final do século XIX... embaixadas e pândegos, filhos, netos, sobrinhos, guerreiros e caçadores da África. Que cena! Compondo-a, de maneira quase surreal, aparece, em 1905, uma portaria municipal que proibiu que nas ruas da Cidade da Bahia se tocasse tambor. Esse quadro histórico me marcou muito desde que eu o conheci, há anos atrás. Por um motivo que para mim sempre foi muito evidente – as suas tantas camadas de significado refletem todo o contexto social denso e complexo que a cidade atravessava. Está tudo ali. E a continuidade dessa história nos revela que os aspectos essenciais dessa cena inaugural estão mantidos e consolidados nas estruturas mais profundas da festa e da cidade até os dias de hoje.

Uma cidade em processo de transformação vertiginosa, recriações e inovações estético-musicais, novos arranjos organizativos de grupos culturais e negócios da festa – são alguns dos aspectos que conduziram o Carnaval de Salvador ao patamar de grande evento, um dos maiores do país e até do mundo. O capítulo apresenta esse conjunto de mudanças e a consolidação de um modelo mercantilizado de festa. Me esforcei, aqui, para manter o foco da observação centrado na posição dos atores culturais, especialmente aqueles que foram subalternizados sistematicamente desde o princípio da história da festa. Os estudos e interpretações de Paulo Miguez, Milton Moura, Antônio Godi e Osmundo Pinho foram fontes indispensáveis para o capítulo que fecha este trabalho.

Diferente do caso de Barranquilla, em Salvador não tive planos de salvaguarda ou outro documento similar que reunisse informações como objetivos, propostas, políticas e resultados. Através da história do carnaval buscamos identificar as ações que privilegiaram e desprivilegiaram o substrato cultural e patrimonial da festa, bem como observar a posição dos atores culturais e as interfaces da gestão pública com

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eles. Ainda, dentro do frágil quadro das políticas culturais para a festa, analisamos iniciativas recentes que representam avanços iniciais no sentido da reparação e democratização cultural, especialmente da cultura de matriz afro. O monitoramento da imprensa, as entrevistas com os gestores culturais e as pesquisas acadêmicas recentes foram fundamentais para a composição desse quadro.

Ressalto, ainda, que o meu acesso ao Carnaval de Salvador, diferente da experiência barranquilhense, sempre foi facilitado pela proximidade e pela imediatez com que as informações em torno dele me chegavam. Além, é claro, da minha vivência carnavalesca propriamente dita. Em alguns casos, inclusive, foi necessário forçar um rápido afastamento entre pesquisador e pesquisado a fim de desfazer cegueiras passageiras que relações desse tipo podem causar.

Por fim...

Desejo que a leitura deste trabalho abra ainda mais caminho para debatermos os avanços alcançados pelo campo do patrimônio cultural imaterial. Que esse debate prospere na gestão pública da cultura, materializando-se em experiências que garantam dignidade aos atores culturais que sustentam simbolicamente nossos bens culturais. Que eles passem a ser reconhecidos e tratados como devem ser – como sujeitos portadores de cultura e de direitos. A existência deste trabalho se justifica por essa esperança.

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1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação

de um conceito ampliado

A diversidade de usos que a palavra “patrimônio” recebe faz com que ela ocupe um espaço de relevância na contemporaneidade. Tratamos cotidianamente de patrimônios econômicos, arquitetônicos, ambientais, genéticos, virtuais, culturais e tantos outros que ganham destaque a cada momento. Para este trabalho, dentre as diversas possibilidades de uso deste “conceito nômade” (CHOAY, 2001), nos interessa compreender o universo em torno de uma de suas mais populares acepções – a de patrimônio cultural. Esta é uma categoria-chave para as políticas de preservação cultural e, como veremos ao longo deste capítulo, ela foi historicamente construída, transformando-se continuamente ao longo do tempo. Compreender as diferentes fases que marcam essa cronologia nos auxiliará no entendimento das razões pelas quais esta noção ocupa um lugar de notoriedade nas reflexões sobre as sociedades contemporâneas.

Como forma de introduzir antecipadamente um dos eixos centrais deste trabalho, o patrimônio imaterial, nos parece coerente recordar a diferenciação proposta pela historiadora Françoise Choay (2001) entre o sentido original do termo monumento, de um lado, e o de monumento histórico, do outro. A autora explica que o primeiro remete a uma prática comum a todas as sociedades humanas de instituir um objeto com a finalidade de rememorar, comemorar ou representar as suas memórias coletivas. Estes construtos, que se assemelham a universais culturais, desempenham esta função ao “tocar, pela emoção, uma memória viva”. (CHOAY, 2001, p. 18) Isso é possível graças à forma com que grupos selecionam e destacam seus passados para, em torno de uma produção simbólica, promover a manutenção e a preservação das suas identidades, ou seja, os monumentos se configuram a partir da sua relação com o tempo vivido e pela forma como atuam sobre a memória. O monumento opera, assim, no sentido de acalmar e tranquilizar, já que ao desafiar a ação destrutiva do tempo, “constitui uma garantia das origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos.” (CHOAY, 2001, p.18)

No entanto, especialmente a partir do Renascimento, essa função memorial do monumento vai cedendo lugar a um ideal cada vez mais marcado pela autonomização da história como disciplina e da arte como atividade autônoma –

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fatores decisivos para a instituição do monumento histórico. (CHOAY, 2001; FONSECA, 1997) Assim, diferente do monumento que existe como suporte mnemônico de uma coletividade, o monumento histórico é constituído a posteriori, eleito entre uma serie de outras construções que não foram pensadas, na sua origem, em servir a uma destinação memorial. Como uma invenção datada do ocidente, ele vai figurar, de forma cada vez mais definitiva, como um poderoso instrumento legitimador dos grandes feitos públicos, representando todo o poder, grandeza e beleza que isso implica. Serão estes construtos que irão desempenhar um papel fundamental na perpetuação das grandes narrativas.

Para este trabalho é importante ressaltar que essa progressiva extinção da função memorial do monumento acaba por esvaziar a sua nova forma de existência, o monumento histórico, de sentido. E dissociá-lo de uma visão de mundo, afastando-o de seu referencial históricafastando-o e simbólicafastando-o “é tão desprovido de sentido quanto praticar a cerimônia do chá ignorando o sentimento japonês da natureza”, como bem ilustrou Choay (2001, p.25). É exatamente essa destituição de sentido que vai garantir que a materialidade seja consagrada como única categoria aceitável para definir o que venha a ser considerado patrimônio cultural. Essa compreensão limitada vai perdurar por alguns séculos até que seja problematizada e, finalmente, ampliada.

Ressaltamos, ainda, que este capítulo se justifica e ganha importância tendo em vista que serão os postulados do patrimônio que guiarão a análise do Carnaval de Salvador e do Carnaval de Barranquilla. Consideraremos aqui o desenvolvimento do conceito, abordando, especialmente, o processo de expansão e complexificação que a noção protagoniza a partir da segunda metade do século XX, quando passa a englobar toda a diversidade cultural presente nas sociedades. Longe de esgotar as várias nuances que compõem a cronologia histórica do conceito de patrimônio, optamos por trazer os seus principais marcos a fim de contribuir com um corpus analítico que conduza o leitor a um melhor entendimento do contexto patrimonial contemporâneo que abordaremos na sequência.

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Em todos os usos da palavra patrimônio, direta ou indiretamente, nos referimos à ideia de “propriedade”, seja ela individual ou coletiva, envolva, ela, trocas simbólicas ou monetárias. Esta associação pode ser melhor compreendida ao desvelarmos a raiz etimológica da palavra, composta pelos vocábulos latinos –

pater, que significa pai, chefe de família; e monium (que origina-se de monius),

sufixo que indica estado, função ou papel, bem como uma qualidade pessoal ou tipo de comportamento1. Assim, seu significado original, procedente de “patrimonium”, remete a tudo aquilo que pertence ao pai, por conseguinte, à herança paterna. Em uma leitura mais ampla, pode ser compreendido como qualquer tipo de bem material ou moral, pertencente a uma pessoa, instituição ou coletividade2.

Dito isso, ressaltamos que o patrimônio histórico manteve-se cunhado nesse âmbito do direito privado de propriedade, com fortes raízes aristocráticas, até o final do século XVIII. Funari e Pelegrini (2006) explicam que na Roma Antiga, por exemplo, os magistrados colecionavam esculturas gregas em suas casas, fato que ilustra a tratativa patriarcal, individual e privativa que este tipo de patrimônio recebia da aristocracia. O historiador Krzysztof Pomian (1984) sinaliza, ainda, que no Império Romano o ato de colecionar se difundiu de tal forma entre os mais poderosos que espaços especiais para quadros e esculturas eram previstos ainda na planta das casas. No entanto, como alerta Choay (2001), é importante ressaltar que, até este momento, a maioria dos colecionadores mantinha esta prática por motivos outros que o prazer próprio da arte, como o “prestígio para os conquistadores, esnobismo para os novos-ricos, lucro ou prazer do jogo para outros”. (CHOAY, 2001, p.34) Ou seja, o objetivo da atividade de colecionismo, aqui, era “demarcar domínio subjetivo em oposição ao outro”, já que o resultado desta prática era exatamente a constituição de patrimônios particulares. (GONÇALVES, 2009, p.26)

Na Idade Média soma-se a este caráter aristocrático o religioso. Destaca-se aqui a decisão do clero europeu de não destruir as obras e edifícios pagãos da Antiguidade por conta de um interesse utilitário nessas criações. Apesar do fascínio

1 Informação coletada no site de etimologia “Origem da Palavra”. Disponível em

http://origemdapalavra.com.br. Acesso em 28 out. de 2016.

2 Significado retirado do dicionário Michaelis. Disponível em

http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/patrim%C3%B4nio/. Acesso em 22 mar. de 2018.

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e curiosidade que despertam nos clérigos medievais, seria precoce considerar essas construções como monumentos históricos, já que a sua preservação se deu única e exclusivamente pelo objetivo da reutilização. Em um tempo em que “a alteridade de uma cultura estranha não poderia ser assumida”, esses edifícios, despidos de qualquer perspectiva histórica, são “investidos de inocência” para, assim, serem assimilados pelas práticas cristãs. (CHOAY, 2001, p.40) A propagação do cristianismo desencadeou, então, um processo extenso de “monumentalização das igrejas e criação de catedrais, que passaram a dominar as paisagens do mundo físico e espiritual”, configurando-se como “um patrimônio coletivo, mas [ainda] aristocrático.” (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p.12, grifo nosso)

Já o quattrocento italiano foi um período bastante profícuo para o universo patrimonial. Diferente do sucedido na Idade Média, aqui a alteridade foi investida de importância por conta do que revelavam os textos clássicos acerca de uma Antiguidade que foi ignorada ao longo dos séculos do ocidente cristão. Petrarca, o primeiro grande representante do humanismo renascentista, ao propagar a Antiguidade como santa e sagrada, forçou um novo olhar para os monumentos greco-romanos, agora com base em uma dimensão histórica fundamentada nas obras literárias clássicas. É isso que torna possível transformar um conjunto de “antiguidades” em objetos com novas perspectivas de reflexão e contemplação. Contudo, a preocupação central dessa abordagem literária não se fixava nos monumentos em si, mas em confirmar o que os textos relatavam sobre o passado. A isso se somou uma abordagem sensível, marcada pelo interesse de escultores e arquitetos nas formas dessas construções antigas. De acordo com Choay (2001), os artistas formam o olhar dos humanistas, “ensinando-lhes a ver com outros olhos”; enquanto que os humanistas revelam aos artistas “a perspectiva histórica e a riqueza da humanitas greco-romana, cujo conhecimento faz que sua visão das formas antigas adquira uma acuidade e profundidade inéditas.” (CHOAY, 2011, p.49) É com base nesse processo de troca entre artistas (pela demarcação do campo da arte) e humanistas (pela dimensão histórica) que a autora defende ser possível datar aqui o nascimento do que entende por monumento histórico, mesmo que ele só tenha recebido essa nominação três séculos depois. Apesar de estar reduzido apenas às antiguidades e movimentar uma audiência limitada a eruditos, esse novo pensamento inspira uma serie de medidas de conservação voltadas tanto

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