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3 O que torna um patrimônio, Patrimônio? – o caso do Carnaval de Barranquilla

3.6 A construção de um Patrimônio – o conteúdo do Dossiê da candidatura

3.6.2 Cultura tradicional carnavalesca: apropriações equivocadas

Vinte dias depois do reconhecimento oficial da UNESCO, a então Ministra da Cultura da Colômbia, María Consuelo Araújo, esteve em Barranquilla para um encontro com os membros do Comitê Diretivo do PDS, no qual trataria, entre outros assuntos, da articulação do Plano com um investimento recebido do Fundo Japonês. Segundo análise de Angarita e Cueto (2010), através do discurso da ministra nesta ocasião é possível compreender que outros interesses, para além da salvaguarda, estavam em jogo para o Estado com a aclamada titulação.

Ao longo do seu discurso, a ministra, depois de negar que a distinção outorgada pelo organismo internacional tivesse relação alguma com o dinheiro do Fundo, insistiu que “além de um reconhecimento à legitimidade e autenticidade dessa manifestação mestiça da cultura popular do Caribe, o título significa um aval que nos permite abrir portas a nível internacional. É uma benção que a UNESCO nos deu para que chamemos muitos visitantes do mundo e que a Colômbia esteja nas agendas turísticas internacionais.” A contradição continuou, pois a ministra, deixando de lado, aparentemente, o esmero por planificar a distribuição dos recursos econômicos estrangeiros, reconheceu que era necessário demonstrar aos jurados da UNESCO “que esta festa é portadora de tradições e única em seu gênero, [...] deve-se deixar os interesses pessoais de lado para construir um interesse coletivo com o fim de que nossas tradições sigam de geração em geração.” (ANGARITA; CUETO, 2010, p.205, tradução nossa)

A prioridade que a ministra concede à projeção internacional do carnaval e do país como fruto do reconhecimento oficial é um retrato perfeito daquilo que abordamos na primeira seção deste trabalho sobre as distorções problemáticas de uso da Convenção de 2003. Neste caso, ao invés de priorizar uma pauta que dissesse respeito ao desenvolvimento e fortalecimento dos grupos culturais que sustentam simbolicamente a festa, o discurso oficial da ministra falou muito mais diretamente para aqueles empresários que operam e lucram com a ativação dos mercados, em especial do turismo. Por isso é que, como defendemos anteriormente, por mais paradoxal que possa parecer, a ampla visibilidade propiciada pelas inscrições dos bens nas Listas Representativas da UNESCO é considerada o principal motivo para a intensificação das relações entre o mercado e o patrimônio nas últimas décadas.

A antiga denominação de celebração regional caribenha tem dado lugar a um projeto discursivo baseado na identidade cultural nacional que busca romper os limites regionais e nacionais para posicionar o carnaval dentro de uma nova ordem internacional. [...] O projeto atual

165 é ambicioso, já que pretende criar uma imagem de um carnaval com características únicas para o mundo. [...] O carnaval de Barranquilla está sendo utilizado como apresentação para o mundo de um projeto oficial de nação baseado no encontro da multiplicidade de identidades culturais que serve de pano de fundo aos interesses mercantis e econômicos. (DE ORO, 2013, p.49, tradução e grifo nossos)

Alinhado a esta fala do etnógrafo Carlos de Oro, um exemplo pontual protagonizado pelos dirigentes do Carnaval de Barranquilla e do seu PDS demonstra a capacidade que a UNESCO possui para impulsionar e projetar os bens patrimonializados a nível internacional. No ano de 2004 uma delegação com mais de cem pessoas viajou para Paris para apresentar, na sede do referido órgão, aquilo que o Carnaval de Barranquilla, agora Patrimônio da Humanidade, possui de mais tradicional. Noticiado pela imprensa como “um carnaval para deslumbrar a Europa”, o evento contou também com um amplo espaço de exposição e degustação de produtos colombianos, como tendas de café, de cervejas, de sucos de frutas típicas, de aguardente, de flores, coquetéis a base de rum etc. (ANGARITA; CUETO, 2010)

A Convenção de 2003 aspira a afirmação da heterogeneidade e da alteridade, ou seja, daquilo que é diferente da cultura ocidental branca e eurocêntrica. É por isso que no caso do Carnaval de Barranquilla, a UNESCO busca ressaltar o patrimônio oral e imaterial proveniente da influência das culturas tradicionais indígenas, negras e rurais; ou seja, dos grupos subalternos indispensáveis no estabelecimento da diferença com a cultura ocidental. O reconhecimento dos direitos sociais e culturais que essa premissa representa deveria ser o resultado mais desejado para os envolvidos na condução dos patrimônios reconhecidos. No entanto, isso é desvirtuado na medida em que “o tradicional se converteu em um mecanismo de atração do consumidor, tanto nacional como estrangeiro, especialmente este último que se sente atraído pelo diferente.” (DE ORO, 2013, p.42, tradução nossa)

Uma das consequências mais preocupantes dessa deturpação é a conversão das culturas populares e tradicionais em espetáculos de entretenimento, através da criação de alegorias de si mesmas e do fortalecimento de estereótipos. Como já vimos nesse trabalho, essa é a fórmula consumida pela indústria turística.

A atuação dos dirigentes do Carnaval de Barranquilla demonstra que eles já compreenderam que a exaltação do tradicional desperta, na contemporaneidade, o

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interesse de uma população em crescimento de turistas interessados no diferente, no distante e no sagrado que as expressões e rituais autóctones representam. O título da UNESCO se configura, nesse sentido, realmente como uma “benção”, utilizando das palavras da ministra. De acordo com o que apresentamos na seção sobre a institucionalização da empresa Carnaval S.A., as manifestações culturais mais tradicionais do carnaval “passam a formar parte de um evento que as visibiliza ao mesmo tempo em que as exotiza e as converte em objetos de consumo.” (DE ORO, 2010, p.406)

Além de impulsionar a exploração econômica da festa, a exotização dessas tradições carnavalescas é um dos elementos utilizados no projeto de construção de uma imagem positiva da sociedade colombiana. Aproveitando a filiação existente entre festas populares e nacionalismo, o Estado se esforça para transformar essas tradições em capital cultural nacional – como parte de uma estratégia para sobreviver em meio à deslegitimidade política e fragmentação social que marca a contemporaneidade. O preço dessa “nacionalidade harmônica” desejada pelo Estado, patrocinadores e dirigentes do carnaval é a simplificação das diferenças entre os setores dominante e subalterno. Lembrando do que vimos com Pollak (1989), projetos como esse possuem um caráter acentuado de destruição, uniformização e opressão e são levados a cabo pela via da dominação e da violência simbólica.

Dentro deste modelo de discurso, os aportes de outras culturas e tradições, especialmente as contribuições africanas e indígenas, determinantes no processo de colonização do carnaval em solo americano, são relegados a um papel meramente decorativo. Sua riqueza simbólica, sua potência festiva e o exotismo de seus costumes são exaltados, mas ao preço de inseri-los pela força em uma leitura histórica purgada de qualquer referência às suas lutas de emancipação e à repressão de que foram sistematicamente objeto. (VIGNOLO, 2010, p.148, tradução nossa)

A forma como esse tema vem sendo conduzido, especialmente após o título da UNESCO, provoca danos profundos na existência dessas culturas tradicionais, na manutenção do universo simbólico dos seus grupos detentores e na sua produção criativa.

De outro lado, como consequência desse panorama que acabamos de apresentar – mas não apenas dele – uma outra apropriação equivocada da festa se acentuou com o reconhecimento patrimonial e pode ser considerada tão

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preocupante quanto a espetacularização excessiva praticada com a cultura carnavalesca. Trata-se da hiper valorização da tradição e o desejo de resgatá-la a qualquer custo. Esse discurso penetrou em todas as camadas de atores envolvidos com a festa – dirigentes, rainhas, diretores e participantes dos grupos culturais, imprensa, sociedade barranquilhense e até pesquisadores –, se configurando como um movimento de resistência à globalização e a tudo que ela representa enquanto risco. Amparado em conceitos como autenticidade e tradição e expresso no desejo recorrente de retorno às origens, esse discurso surge da preocupação com uma hipotética desintegração das identidades locais frente à ocidentalização do planeta. Esse cenário apocalíptico traria como consequência a abolição das diferenças que compõem o quadro da diversidade cultural global. (HALL, 2011; DE ORO, 2010, 2013; GUERREIRO, VLADI, 2005)

A relação entre os elementos tradicionais do Carnaval de Barranquilla e seu caminho até a modernização tem sido continuamente pontuada como problemática. O que os estudiosos, dirigentes e atores da festa mais têm ressaltado é o caráter danoso da modernização sobre a espontaneidade das manifestações tradicionais. O tradicional tem sido associado com aquelas manifestações artísticas provenientes do passado – produto da influência e mescla das culturas pré-hispânicas, negras, rurais e espanhola – que se apresentavam de forma espontânea e sem os efeitos marcados pela mercantilização e pelo controle de comitês dirigentes. (DE ORO, 2013, p.39, tradução nossa)

168 Crédito: Leinad Pájaro (2015)76

Essa compreensão, sabemos, é ultrapassada e só é possível que encontre algum tipo de ressonância em um nível meramente discursivo, já que a sua realização resulta, na prática, impossível. Isso porque, aproveitando da atualização conceitual da noção de tradição proposta pelo pesquisador Gérard Lenclud (2013), não se trata de um “produto do passado [...], [mas] de um „ponto de vista‟ que os homens do presente desenvolvem sobre o que os precedeu, uma interpretação do passado conduzida em função de critérios rigorosamente contemporâneos.” (LENCLUD, 2013) Sendo o tradicional um fato do passado que permanece no presente, o autor ressalta que sempre irá ocorrer, nesse processo, uma filtragem desse arcabouço cultural, já que a tradição não transmite a integralidade do passado, mas sim o que há de mais relevante em períodos determinados.

Somado a isso, deve-se considerar que o tradicional, esse fato passado que existe no presente, convive com toda a complexidade que marca a contemporaneidade. Isso quer dizer que o que é tradicional no Carnaval de Barranquilla se relaciona e se transforma a partir de tudo que o circunda – interesses políticos e econômicos, novas influências culturais e artísticas, uma nova configuração de cidade e de público, meios de comunicação de massa, internet etc. Como fato social total que é, a festa barranquilhense mobiliza e é mobilizada por tudo que lhe atravessa – instituições, sujeitos sociais, valores e ideias. É indispensável que se reconheça, então, que os tão aclamados elementos tradicionais do Carnaval de Barranquilla compõem o contexto modernizante em que estamos todos imersos e isso impõe à dinâmica da festa uma transformação constante.

A fim de ilustrar o tema abordado, chama a atenção, por exemplo, a preocupação extrema da organização do “Carnaval da 44” em concentrar suas ações naquilo que consideram verdadeiramente tradicional. Segundo o diretor geral do evento, Edgar Blanco, não é permitido que as atrações amplifiquem o som que acompanha as suas apresentações. Tal imposição é sustentada por um imaginário de que, assim – e só assim, é possível visualizar estes grupos manifestando-se de forma tradicional. A amplificação, técnica amplamente utilizada em ocasiões como

76 Disponível em https://www.elheraldo.co/local/queremos-un-verdadero-carnaval-tradicional-

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essa, onde milhares de pessoas assistem aos desfiles em espaço aberto, é considerada uma via em potencial para a descaracterização. Seria um comportamento exageradamente prudente, uma espécie de reação às descaracterizações causadas pelo modelo espetacularizado do “carnaval oficial”? Ou uma compreensão desatualizada sobre o lugar da tradição na contemporaneidade?

Nós nos diferenciamos do outro carnaval, da Via 40, porque, primeiro é gratuito, não precisa pagar nenhum peso para desfrutar o carnaval; e segundo porque mantemos um selo tradicional porque os grupos folclóricos que participam em nossos eventos o fazem com música ao vivo, não se aceita amplificação ou equipes de som. Isso permite garantir a música e essa nota patrimonial dos grupos tradicionais no nosso carnaval. Então os nossos grupos folclóricos veem este espaço como um espaço para mostrar toda a riqueza do nosso folclore colombiano. Aqui é muito difícil ver, por exemplo, outras penetrações, outros bailes de outras regiões ou de outros países porque, repito, a música ao vivo nos permite ver essa riqueza folclórica que tem nosso país. (Edgar Blanco, informação verbal, 2019)

A insistência em colocar o mais valioso da sua coletividade em um passado distante, omitindo a complexidade de um presente e de um futuro que exigem mudanças, configura-se como uma estratégia equivocada daqueles atores do carnaval que agem segundo essa lógica. (DE ORO, 2010) Agindo dessa forma, estes indivíduos, grupos e organizações estão, inclusive, incorrendo contra a essência da própria Convenção de 2003 e de todos os avanços conceituais da nova legislação patrimonial nacional. Com isso queremos dizer que a hiper valorização de elementos como autenticidade, tradição e excepcionalidade submete o Carnaval de Barranquilla às mesmas premissas do patrimônio material, impossibilitando a dinâmica natural que dá vida ao seu denso universo espiritual, cultural e simbólico. De acordo com o que já abordamos na primeira seção deste trabalho, a consequência inevitável desse deslocamento forçoso do patrimônio para longe de tudo que é contemporâneo é a retirada de todo o seu sentido real de existir e a sua transformação em atração, espetáculo, mera mercadoria.

Carlos de Oro (2013) problematiza ainda mais o debate ao defender que foi justamente a capacidade de mudança e adaptação dos elementos tradicionais do Carnaval de Barranquilla que permitiram a sua sobrevivência em meio aos desafios impostos pela contemporaneidade.

170 Não se pode culpar a modernização por ser responsável pelo suposto deterioro e exclusão das manifestações tradicionais. Melhor seria perguntarmo-nos “O que seria das manifestações tradicionais por fora do contexto modernizante do carnaval de Barranquilla? Teriam, elas, a importância e o reconhecimento que têm atualmente? Teriam sido capazes de se preservarem com o decorrer do tempo ou teriam sido condenadas à desaparição e à falta de reconhecimento?” O caráter excludente que se estabelece entre o tradicional e o moderno se dá pelo desejo de manter a exaltação das tradições dentro de um campo exclusivamente cultural e por desconhecer que os elementos culturais funcionam em conjunto com os interesses políticos e econômicos. (DE ORO, 2013, p.41, tradução nossa)

Concordando com De Oro (2013), obviamente não se pode esperar que o Carnaval de Barranquilla volte a ser uma festa completamente espontânea, como quando a cidade era um pequeno vilarejo, e, tampouco, restrita apenas às criações dos detentores das culturas carnavalescas tradicionais, sem nenhum contato com as novidades do mundo contemporâneo. De igual forma, compreendendo que o carnaval é um motor de investimentos e geração de riquezas, é importante que o título de Patrimônio da Humanidade projete a região e o país para o mundo. No entanto, como vimos, a condução equivocada desses pontos pode acometer seriamente a vitalidade da festa.

Diante desses impasses, é essencial que os dirigentes, poder público e atores do Carnaval de Barranquilla utilizem a Convenção de 2003 como fonte de inspiração para repensar caminhos rumo a um desenvolvimento sustentável da festa. Nesse sentido, um passo importante foi dado com a aprovação do Plano Especial de Salvaguarda, uma experiência bem-sucedida que materializou esforços efetivos para uma salvaguarda mais responsável e mais comprometida desse patrimônio carnavalesco.