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1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

2 A experiência brasileira no campo do patrimônio cultural imaterial Optamos por destacar a experiência brasileira não apenas porque um dos

2.6 A festa como patrimônio cultural imaterial

2.6.2 A festa contemporânea

A compreensão da festa no sentido que apresentamos aqui só será possível em contextos em que a liberdade e a criatividade dos participantes sejam

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garantidas; a supressão desses aspectos implica sérias limitações à fruição coletiva da festa. Nesse sentido, alguns estudiosos já chegaram, inclusive, a decretar a decadência ou até a morte da festa54 – é o caso de autores como Mikhail Bakhtin (2010) e Jean Duvignaud (1983), que defendem que as festas foram reduzidas a meras comemorações com razão utilitarista, onde o êxtase perdeu espaço para a simples euforia.

Mikhail Bakhtin (2010), que se debruçou sobre as festas populares do final da Idade Média e início do Renascimento a partir dos escritos do dramaturgo francês François Rabelais, explica que já a partir da segunda metade do século XVI os ritos e espetáculos carnavalescos típicos da cultura cômica popular começaram a sofrer um processo de decadência progressiva. Essas mudanças teriam ocorrido porque a vida festiva estatizou-se, passando a ser muito mais uma vida de aparato e cada vez mais próxima das sobriedades comedidas da burguesia; como consequência disso a festa perdeu seus laços vivos com a praça pública, passando a fazer parte da vida privada, doméstica e familiar. Tudo o que antes caracterizava e dava o tom à cultura cômica popular – o universalismo, a utopia, as ousadias – passou por uma transformação radical, reduzindo a festa a simples humor festivo. Bakhtin assinala, ainda, que a “festa quase deixa de ser a segunda vida do povo, seu renascimento e renovação temporários” e explica o uso do advérbio „quase‟, destacando que “o princípio da festa popular do carnaval é indestrutível. Embora reduzido e debilitado, ele ainda assim continua a fecundar os diversos domínios da vida e da cultura”. (BAKHTIN, 2010, p.30)

Para Jean Duvignaud foi o capitalismo o grande responsável pelo fim da festa nos moldes que ele acredita e defende. O modelo da festa destruidora estaria, hoje, no campo do inexequível por conta dos avanços do modo de produção capitalista que se opõe ao bem-estar, à felicidade, ao gozo e, por consequência, à plenitude existencial. A festa é reduzida, nesse contexto, a um lugar de mera celebração a serviço da ideologia burguesa, sem potência simbólica suficiente para operar uma fusão coletiva e mediar uma tomada de consciência. Por isso, para Duvignaud “a festa perdeu o seu sentido. Mais exatamente, converteu-se em ideologia.” (DUVIGNAUD, 1983, p.148)

54 Ver CAILLOIS (1979); BATAILLE (1993); BAKHTIN (2010); DUVIGNAUD (1983);

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Era de se esperar que o caráter subversivo da festa passasse a incomodar justamente os setores implicados com o tema da moral – merecendo destaque, nesse quesito, as instituições religiosas. O caráter popular da festa, a sua imprevisibilidade, ousadia e a dificuldade ou até impossibilidade de controlá-la sempre desconsertaram os setores dominantes. Por conta da potência transformadora que a caracteriza “urgia fazer algo que a domesticasse, retirasse o caráter transgressivo e provocativo que ela sempre teve.” (CARVALHO, 2012, p. 33) Por isso, a festa sempre foi alvo de tensões entre aqueles que repreendem a sua liberdade e os que lutam pela sua sobrevivência55.

O colombiano Paolo Vignolo (2006) também lembra que após a Segunda Guerra Mundial houve uma diminuição drástica das festas populares e dos carnavais ao redor do mundo e muito se falou – mais uma vez – sobre o fim derradeiro de manifestações desse tipo. Segundo o autor, este novo declínio do universo festivo esteve relacionado ao processo de dessacralização das sociedades modernas e ao surgimento de novos espaços de socialização e encenação.

À revelia dos incansáveis decretos de morte, assistimos a um novo auge festivo a partir da década de setenta, com o renascimento de festas populares e carnavais de rua mundo afora. Este fenômeno é considerado consequência de um período de urbanização massiva, fragmentação social e da crise identitária que marcou, como vimos, as transformações sofridas pelo campo do patrimônio a partir da segunda metade do século XX. Todo este contexto demandou esforços em prol do fortalecimento do sentimento de pertencimento e do fomento da solidariedade cidadã – o retorno dos espaços de sociabilidade festiva apareceu como uma das vias para a efetivação destes objetivos. (VIGNOLO, 2006)

Como já demonstramos na primeira seção deste trabalho, especialmente a partir do último quarto do século XX, as relações entre o mercado e o patrimônio são intensificadas e, como parte desse movimento, os grandes conglomerados do

55 Na Bahia, por exemplo, temos a possibilidade de visualizar essa disputa através de

inúmeros casos, como a trajetória da Lavagem do Bonfim, alvo de diversas medidas de controle por parte da Igreja Católica ao longo dos seus mais de duzentos anos de existência (FANTINEL, 2014); e como na oficialização do carnaval de Salvador no final do século XIX, com a extinção do entrudo – considerado “selvagem” demais pela igreja, aristocracia e imprensa – e sua substituição por um modelo civilizatório de festa – como veremos na sequência deste trabalho.

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turismo e do entretenimento encontraram no universo das festas populares uma excelente oportunidade para fazer negócios. Essa conjuntura impõe uma mudança radical para o campo da festa popular – ela é deslocada do âmbito da comunidade, sua força motriz e criadora, para a esfera da indústria cultural, sendo transformada em uma série de eventos e megaeventos que movimentam e aquecem as economias do mundo todo. Os carnavais analisados nesse trabalho são exemplos dessa conjuntura.

Dentro dessa lógica, as festas são exploradas como se fossem qualquer outro tipo de mercadoria. Acentuadamente espetacularizadas, essas manifestações configuram aquilo que Canclini (1994) chamou de concepção mercantilista do patrimônio, ou seja, um apoderamento com fins exclusivamente econômicos focado na espetacularidade e na utilização recreativa desses bens patrimoniais. Essa imersão na lógica do mercado e sua utilização como recurso turístico, impulsiona um processo de massificação das festas populares e uma padronização das formas e comportamentos festivos e de diversão, numa relação direta com os processos característicos da sociedade de consumo.

Não há dúvidas de que as festas contribuem de maneira significativa e continuada à economia local, empregando um setor da população, formal ou informalmente, ao longo de todo ano (aviação, hotelaria, alimentação, comércio, artesanato, publicidade, carpintaria etc). Esse viés econômico não deve ser desprezado; no entanto, o que vemos acontecer de forma recorrente são festas postas a serviço exclusivo de mercados que agem de forma pouco ou nada preocupada com a sua sustentabilidade e continuidade. O que mais desanima nesse quadro é que a atuação desenfreada do mercado tem no Estado um aliado, complacente e impulsionador desse modus operandi. Indo ainda mais além, em um momento em que as instituições e estruturas políticas têm sua atuação questionada, governos enfraquecidos buscam sua legitimação se auto-intitulando porta-vozes e representantes dessas festividades. (ESCALERA, 1997)

Os números divulgados a cada ano demonstram que a estratégia tem sido exitosa, já que a experiência de viver uma festa popular atrai cada vez mais turistas curiosos por viver algo forjado (ou vendido) como ritual coletivo, construído ao longo de muito tempo através de uma teia potente de símbolos, representações, identidades. No entanto, essa promessa de viver uma experiência mítica de

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realidade longínqua será sempre limitada porque, nesse contexto, as festas se vêem enfraquecidas por uma burocracia altamente racionalizada e anti-festiva e por uma lógica unicamente pró-capital que diminui ou até anula o alcance da participação popular em todo o processo.

Essa conjuntura suscita um questionamento: a função ritual da festa, sua potência simbólica e sua capacidade de produzir imaginários sociais ainda encontram lugar para existir diante destas inflexões contemporâneas?

Se analisarmos unicamente pela perspectiva do negócio seremos obrigados a nos alinhar ao discurso da morte da festa, já que nos restará apenas o contato com a superficialidade dos grandes espetáculos, com as festas transformadas em simulacros vazios e destituídas de qualquer vínculo com grupos sociais e suas identidades – o que Eco (1989) chamou de “carnaval frio”. No entanto, parafraseando Bakhtin (2010), o princípio da festa popular, mesmo quando abatido e moribundo, é forte o suficiente para não se deixar destruir. Assim, concordamos com a afirmação de Márcia Sant‟Anna (2013) de que

[...] a função da festa – incluindo as hipertrofiadas e comercialmente exploradas – como espaço sagrado de comunhão e de celebração, de criação, de transgressão, de afirmação e de sociabilidade, apesar de tudo, ainda permanece. (SANT‟ANNA, 2013, p.23)

É positiva, obviamente, essa constatação de que o mercado não ganhou a batalha contra a festa popular. Contudo, não há nada a se comemorar. É urgente que esforços no sentido de equilibrar esses interesses contraditórios sejam levados a cabo na proteção desses bens culturais.

Acreditamos que só será possível dar conta desta tarefa quando a compreensão dessas festas seja deslocada efetivamente para o âmbito do patrimônio cultural imaterial. Como já defendemos na primeira seção deste trabalho, esta é a via para a ativação de estratégias eficazes de salvaguarda no sentido de devolver protagonismo à comunidade detentora e, assim, evitar a desidratação simbólica e a banalização dos bens patrimoniais explorados pelo mercado.

Para que isso seja possível é essencial, antes de qualquer coisa, que o Estado saia do papel de aliado do mercado e assuma seu dever de protetor do patrimônio cultural da nação, estado, cidade, comunidade. É preciso vontade política para, por um lado, regular a presença do mercado nessas festas e, por outro, promover uma

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governança inclusiva desses bens, impulsionando a colaboração entre a administração local e os cidadãos no sentido de uma participação ativa dessa população na gestão de seus patrimônios e no processo de construção de políticas públicas endereçadas a eles. Acreditamos nessas iniciativas como um caminho seguro para a preservação e para o desenvolvimento sustentável deste importante ativo simbólico e econômico que são as festas populares. Nos dois próximos capítulos será possível visualizar em perspectiva o que acabamos de apresentar aqui, através das experiências do Carnaval de Barranquilla e do Carnaval de Salvador.

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3 O que torna um patrimônio, Patrimônio? – o caso do Carnaval de