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1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

1.8 A salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e os desafios contemporâneos

A atualidade coloca o patrimônio imaterial em um campo de disputa não só identitária, como já abordamos neste texto, mas também política e econômica. Essa realidade pode ser explicada porque o patrimônio constitui fonte de riqueza e desenvolvimento, sendo dotado de um valor econômico intrínseco e, por conseguinte, de diversas possibilidades de uso pelos agentes sociais que lhe rondam – os grupos sociais reconhecidos como seus detentores; o Estado, na figura de órgão regulamentador; e, especialmente, o mercado, na figura da indústria cultural e do turismo.

Mediar essa situação aparece como a questão mais desafiante do campo patrimonial na contemporaneidade, suscitando uma serie de debates a nível internacional, nacional e local sobre os usos sociais, políticos e econômicos do patrimônio. Na seara do patrimônio imaterial, os temas mais abordados são aqueles relacionados aos direitos de propriedade intelectual e à expansão da indústria turística, demandando esforços de investigação, reconceitualização e política cultural. (CANCLINI, 1994; CABRAL, 2011) Para a UNESCO, a ampla visibilidade e a aplicação da Convenção de 2003 entre os Estados Partes21 representam a possibilidade conciliadora para essa conjuntura, tendo em vista que o impacto pretendido por esse documento é alçar o patrimônio como vetor de desenvolvimento sustentável.

Assim, respondendo a esse contexto contemporâneo tenso que o patrimônio experimenta, a principal finalidade da Convenção é a salvaguarda desses bens, caracterizada no texto do documento por

medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos. (UNESCO, 2003, p.5)

Aos Estados Partes é recomendado, como medida inicial, que identifiquem e documentem os diversos elementos do patrimônio cultural imaterial presentes em

21 A expressão “Estados Partes” designa os Estados vinculados à Convenção e para os

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seu território através do desenvolvimento de inventários, instrumentos estes que orientam as medidas para a salvaguarda dos bens. Outras responsabilidades que a Convenção elenca para os Estados Partes dizem respeito à (i) adoção de uma política geral de patrimônio e a integração da salvaguarda em programas de planejamento; (ii) criação de organismos competentes para tratar do tema; (iii) fomento de estudos e metodologias para a salvaguarda do patrimônio; (iv) adoção de medidas de ordem jurídica, técnica, administrativa e financeira que garantam a plena viabilidade de todos os esforços voltados ao campo patrimonial daquele território. (UNESCO, 2003)

Responsabilidades na área da educação aparecem com destaque no texto da Convenção como medidas fundamentais para que indivíduos e comunidades sejam sensibilizados para a importância do tema. Para isso, a UNESCO (2003) recomenda que os Estados Partes assegurem o reconhecimento, o respeito e a valorização do patrimônio cultural imaterial através das seguintes medidas:

i) programas educativos, de conscientização e de disseminação de informações voltadas para o público, em especial para os jovens; ii) programas educativos e de capacitação específicos no interior das comunidades e dos grupos envolvidos;

iii) atividades de fortalecimento de capacidades em matéria de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, e especialmente de gestão e de pesquisa científica; e

iv) meios não-formais de transmissão de conhecimento; (UNESCO, 2003, p.9)

Ainda sobre educação e conscientização, é recomendado aos países signatários que mantenham a população informada sobre as ameaças do patrimônio e das atividades realizadas em cumprimento da Convenção; e que promovam a educação para a proteção dos espaços naturais e lugares de memória. Essas ações visam, principalmente, sensibilizar a sociedade a fim de que participem ativamente de todo o processo de salvaguarda dos seus próprios patrimônios.

No quadro de suas atividades de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, cada Estado Parte deverá assegurar a participação mais ampla possível das comunidades, dos grupos e, quando cabível, dos indivíduos que criam, mantém e transmitem esse patrimônio e associá-los ativamente à gestão do mesmo. (UNESCO, 2003, p.9)

Esse requisito pela participação ativa das comunidades detentoras dos bens faz com que o processo de salvaguarda assuma contornos muito mais legítimos que outrora, onde o Estado concentrava o poder de decisão de tudo que dizia respeito à

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instância patrimonial, contando apenas com o suporte de consultoria de um corpo técnico especializado, geralmente oriundo da classe acadêmica, que não tinha relação direta com as comunidades e com o contexto dos patrimônios. Essa mudança de paradigma, que Canclini (1994) chamou de “concepção participacionista”, estimula que as comunidades se envolvam e participem de todo o processo, desde a decisão sobre o quê e como inventariar até a formulação de políticas públicas de preservação junto aos organismos estatais.

Vale ressaltar, no entanto, que sensibilizar e envolver as comunidades não são tarefas fáceis, seja pela dificuldade de identificar o seu porta-voz, seja porque é difícil chegar a um consenso legítimo entre todos. (CABRAL, 2011) Outro desafio com relação à participação e que afeta diretamente a perspectiva de continuidade do bem é a “dificuldade, mencionada na maior parte dos dossiês de candidatura, de envolver as novas gerações na salvaguarda de tradições herdadas de seus antepassados.” (FONSECA, 2013, p.12) Esforços para a superação desses entraves são fundamentais, tendo em vista que a participação ativa das comunidades na salvaguarda de seus patrimônios não apenas torna o processo mais legítimo, como é essencial para a vitalidade do bem, fomentando, ainda, a autodeterminação da comunidade e impulsionando a sua consolidação enquanto grupo.

É central compreender que esse conjunto de recomendações que parte da Convenção de 2003 deve estar na base de qualquer ação de salvaguarda. Um outro caminho que aparece como um meio potencial de salvaguarda é a inscrição dos bens na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade e na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial que necessita de Salvaguarda Urgente. O título “Patrimônio da Humanidade” implementado na Convenção do Patrimônio Mundial (1972), e aqui retomado, atende aos anseios que compõem o âmago da existência da UNESCO, a conciliação do mundo através do respeito ao diferente.

Na sua demanda da paz, a UNESCO procura encontrar bases de entendimento entre as nações através do fomento de ideais comuns, passíveis de obterem a concordância dos Estados Membros e de os mobilizar na prossecução de objetivos partilhados. Neste sentido, a noção de “patrimônio comum da humanidade”, operacionalizada e divulgada através da Convenção do Patrimônio Mundial, possibilita preparar os espíritos para uma melhor aceitação de outros valores considerados fundamentais, enquadrando-se na estratégia da UNESCO de promover os direitos humanos, o diálogo intercultural, a diversidade cultural e o desenvolvimento sustentável. (CABRAL, 2011, p.88)

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Nesse sentido, o objetivo das Listas é “assegurar maior visibilidade do patrimônio cultural imaterial, aumentar o grau de conscientização de sua importância e propiciar formas de diálogo que respeitem a diversidade cultural.” (UNESCO, 2003, p.9) A Lista do Patrimônio Cultural Imaterial tem recebido um número elevadíssimo de candidaturas – até o final de 2017 foram realizadas dez edições22

e contempladas centenas de bens tanto na Representativa como na da Salvaguarda Urgente – o que demonstra boa receptividade e interesse por parte dos Estados Partes signatários da Convenção. É a “patrimonialização galopante” de Hartog (2015) mostrando que segue firme, também, nas primeiras décadas do século XXI.

Mas porque tanto interesse das nações em colecionar títulos oficiais de “Patrimônio da Humanidade”? Muitos aspectos indicam que a motivação não diz respeito, apenas, à vontade de preservar estes patrimônios e garantir a sua continuidade de forma sustentável. O fato é que, apesar dos avanços impulsionados pela Convenção de 2003, também há distorções problemáticas no seu uso.

Como vimos, as últimas décadas marcam uma mudança de perspectiva importante para o universo patrimonial – o patrimônio é consolidado, finalmente, como elemento de identidade e referente cultural; e, mais recentemente, o patrimônio é considerado fator de desenvolvimento sócio-econômico. Amplamente difundida por agências e organismos internacionais, esta compreensão diz respeito, em especial, ao desenvolvimento dos grupos sociais detentores dos bens e suas respectivas comunidades, cidades e países. No entanto, a realidade mostra que neste processo de patrimonialização os beneficiários nem sempre são os detentores do bem em si. O ponto nevrálgico, aqui, se concentra na figura do mercado – uma relação que, em menor ou maior grau, acompanha boa parte da cronologia patrimonial, mas que, no entanto, nunca foi tão proeminente (e preocupante) como é atualmente.

De forma cada vez mais acentuada, o mercado – compreendendo o ativo de primeira importância que o patrimônio se tornou – opera um aproveitamento econômico desse universo, protagonizando um contexto marcado pela competição entre cidades para a atração do turismo e do capital através da mercantilização de

22 A primeira edição resultou da transferência para a Lista dos 90 bens selecionados nas três

edições do programa Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.

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identidades e de lugares de memória. (GEERT; ROIGÉ, 2016) Assim, por mais paradoxal que possa parecer, a ampla visibilidade propiciada pelas inscrições dos bens nas Listas Representativas da UNESCO é considerada o principal motivo para a intensificação das relações entre o mercado e o patrimônio nas últimas décadas.

As empresas privadas, especialmente as do ramo do entretenimento, do turismo e do setor imobiliário, enxergam no patrimônio uma oportunidade potencial para os negócios, aproveitando-se de tudo o que for possível de ser revertido em capital financeiro.

Observa-se a existência de uma extensa rede de mercado associada aos discursos e políticas do patrimônio: companhias de transporte, redes de hotéis e restaurantes, visitações turísticas, festivais, comércio de souvenirs (postais, reproduções, fotografias, filmes, objetos), edição e circulação de jornais, revistas, livros. (GONÇALVES, 2015, p.220)

A indústria que mais tem expandido, dentro desse panorama, é a do turismo; tão promissora quanto perigosa, ela é considerada um fenômeno de alcance global. Para Gonçalves (2007, p.244), seu sucesso pode ser explicado porque “os patrimônios sempre prometem algo mais do que eles mesmos: prometem a experiência de realidade ausente, distante, e que nos acena por meio de seus fragmentos”. Quando o mercado ocupa posição de centralidade nesse jogo lhe é garantido poder suficiente para agir segundo suas regras. Essa realidade pode ser observada tanto no universo do patrimônio material, como é o caso dos sítios históricos tombados que são convertidos em parques temáticos sem vida, transformando as suas localidades em grandes atrações exclusivamente turísticas; como no universo do patrimônio imaterial, com suas manifestações culturais descolando-se cada vez mais de seus contextos tradicionais de criação para serem exploradas como mercadorias acentuadamente espetacularizadas. Trata-se do que Canclini (1994) caracterizou como “concepção mercantilista” do patrimônio.

A este modelo corresponde uma estética exibicionista na restauração e a utilização recreativa do patrimônio: os critérios se sujeitam à espetacularidade e à utilização recreativa do patrimônio com o fim de incrementar seu rendimento econômico. Os bens simbólicos são valorados na medida em que sua apropriação privada permite torná- los signos de distinção ou artigo de consumo em um show de luz e som. (CANCLINI, 1994, p. 104)

Fiel à sua lógica nada sustentável, os grandes conglomerados do mercado tratam de explorar as inúmeras possibilidades que brotam do universo patrimonial

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até o esgotamento completo do cosmos criativo que lhe dá vida. Quando isso acontece, seus operadores iniciam a busca por um novo alvo e recomeçam o processo – assumindo, assim, a figura do próprio antagonista cultural. Neste contexto, se não forem alvo de estratégias eficazes de salvaguarda, os patrimônios correm o risco de serem submetidos de tal forma à lógica do lucro e da espetacularização que só lhes restará o vazio da fetichização. Tornar o patrimônio cultural um fetiche é transformá-lo em um objeto de desejo da sociedade de consumo, é destituí-lo de seu contexto original e não mais reconhecê-lo como resultado de uma produção coletiva, mas como mera mercadoria, entretenimento e espetáculo. (VELOSO, 2006)

Para que o patrimônio não corra o risco de ter a sua potência simbólica atrofiada e seu uso banalizado é urgente que o Estado atue no sentido da regulação desse mercado, estabelecendo regras protecionistas para que os bens patrimoniais não sejam vítimas de uma comercialização que os equipare a quaisquer outros produtos e serviços. Tendo em vista que a Convenção de 2003 não se configura como um compromisso jurídico obrigatório aos Estados Partes é essencial vontade política para que as recomendações deste documento sejam traduzidas de forma efetiva em políticas públicas. A prática de uma governança inclusiva da cultura aparece como um caminho potente para a regulação da presença do mercado e para a consolidação de “uma perspectiva em que habitantes e usuários [dos

patrimônios] não sejam vistos como entraves, mas sim como sujeitos fundamentais e

ativos da preservação.” (SANT‟ANNA, 2015, p.130)

A governança é entendida como a colaboração entre a administração local e os cidadãos, com um foco “relacional”, que permita aos cidadãos ampliar sua capacidade de votar, participar ativamente na vida cultural e trazer suas ideias para a construção de políticas culturais deliberativas. (PASCUAL, 2015, p.111)

Envolver a comunidade na gestão do seu patrimônio alinha-se à importância que a Convenção de 2003 remete à participação dos detentores nos processos de salvaguarda. Assim, um bem cultural que continue encontrando ressonância em sua comunidade produtora, mesmo integrando a sociedade de consumo, terá chances de transcender a condição de mera mercadoria. Nesse sentido, aproximar estes atores sociais de seus patrimônios culturais é essencial porque, como bem sintetizou Choay (2001, p.149), “mesmo combinada com medidas penais, uma lei não basta”, a preservação patrimonial deve ser fruto, “antes de tudo, de uma mentalidade.” E

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isso só será possível com a difusão de informações e a sensibilização das pessoas envolvidas direta e indiretamente com o bem.

A gestão do patrimônio imaterial a partir dessa perspectiva mais democrática, com caráter participativo acentuado, contribui para que ele se mantenha ativo enquanto “fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável”. (UNESCO, 2003, p.1) Recomenda-se, assim, que as manifestações sejam salvaguardadas levando em conta seus contextos ambientais, culturais e socioeconômicos através de políticas integradas, reforçando as capacidades locais e o empoderamento das populações. (CABRAL, 2011) Assim, os Estados têm, diante de todas essas inflexões contemporâneas, um papel fundamental enquanto órgãos reguladores e devem atuar de forma a equilibrar as forças externas que se aproximam do universo patrimonial, privilegiando sempre o protagonismo e a autonomia das comunidades e seus patrimônios, sejam eles chancelados por um título oficial ou não.

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A experiência brasileira no campo do patrimônio cultural imaterial