• Nenhum resultado encontrado

A Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e a consolidação de um conceito ampliado para o campo patrimonial

1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

1.7 A Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial e a consolidação de um conceito ampliado para o campo patrimonial

Os avanços que o debate em torno do patrimônio cultural acumulou ao longo das últimas duas décadas do século XX foram abrindo caminho e tornando mais evidente a necessidade de um novo instrumento legal a nível internacional. O contexto demandava um documento que consolidasse o patrimônio a partir de uma compreensão holística e que ampliasse a leitura restritiva que a Convenção do Patrimônio Mundial ainda fornecia. Neste sentido, o início dos anos 2000 foi marcado por conquistas fundamentais, sendo a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial um marco emblemático ao configurar-se como uma proposta mais inclusiva e equitativa no que diz respeito aos bens culturais de natureza imaterial.

18 O Carnaval de Barranquilla foi reconhecido como Obra Prima do Patrimônio Oral e

Imaterial da Humanidade no ano de 2003. O Brasil teve dois bens culturais registrados – as expressões orais e gráficas dos índios Wajãpis e o samba de roda do Recôncavo Baiano. É importante ressaltar que a experiência brasileira com o patrimônio cultural imaterial pode ser considerada vanguardista, tendo, inclusive, influenciado todo esse processo na UNESCO. Essa análise será abordada na sequência.

63

A primeira versão do texto da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial foi proposta em 2001 e considerada “demasiada acadêmica e pouco operacional”. (CABRAL, 2011, p.80) Na sequência, em 2002, a terceira Mesa Redonda de Ministros da Cultura, intitulada “Patrimônio Cultural Intangível: espelho da diversidade cultural”19

, deu um passo à frente com a aprovação da Declaração de Istambul, cidade sede do encontro. Esse documento defende que o que revela a diversidade cultural das comunidades é o seu patrimônio intangível. O patrimônio cultural imaterial é compreendido, então, como parte estruturante da noção de diversidade cultural e esta, por sua vez, como um caminho para um modelo sustentável de desenvolvimento – aspecto que já vinha sendo discutido com mais afinco desde a década de 1980.

Daí o valor único da diversidade cultural, tanto em termos de sua contribuição para a identidade como o seu poder de promover a expressão criativa, a diversidade fornece uma garantia de um desenvolvimento sustentável. [...] O patrimônio cultural intangível é o que garante este processo. Sua defesa e promoção não são um ato de conservadorismo dirigido contra a modernidade. Ao contrário, trata-se de um meio para conceituar as relações de comunicação, as ligações entre tempo e espaço, entre gerações, entre áreas geo- culturais separadas pela distância e entre sociedades separadas por sistemas considerados incompatíveis. (UNESCO, 2002, p.3, tradução nossa)

Antes de prosseguir para a análise da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que a partir daqui chamaremos de Convenção de 2003, vale ressaltar que a sua formulação foi concomitante a um amplo debate em torno do tema da diversidade cultural. No âmbito da UNESCO, foi concebida, em 2001, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural e, em 2005, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade de Expressões Culturais. Estes documentos, especialmente o último, representam um compromisso jurídico maior do que o obtido pela Declaração do México sobre Políticas Culturais (1982), posicionando a diversidade cultural no patamar de projeto político estratégico para a evolução das sociedades, das suas riquezas culturais e da sua própria economia20. Coerentes com o objetivo desta pesquisa, optamos por focar nossa análise nos

19 Tradução nossa para o nome original “Intangible Cultural Heritage – a Mirror of Cultural

Diversity”.

20 Para saber mais sobre o debate em torno da diversidade cultural na UNESCO indicamos

os trabalhos de KAUARK (2017), RUBIM (2012) e MIGUEZ; BARROS; KAUARK (2014, 2015).

64

documentos regulatórios que dizem respeito especificamente ao campo do patrimônio, contudo, é essencial que se compreenda que todo este efervescente debate no campo da diversidade cultural encontrou ressonância na seara patrimonial, fortalecendo e fundamentando os seus avanços.

Assim, em 17 de outubro de 2003, na ocasião da 32ª Conferência Geral da UNESCO, foi finalmente adotada a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. O documento consolida a ampliação conceitual que o patrimônio cultural experimentava desde o período pós-guerra e, com mais afinco, desde a década de 1980. Descortina-se, aqui, o exclusivismo do patrimônio edificado e passam a ser contempladas as manifestações identitárias que se originam no âmago da diversidade cultural – especialmente aquelas que acenam para o tradicional, oral e popular – dos diferentes grupos que compõem a sociedade. De acordo com a nova Convenção, entende-se por patrimônio cultural imaterial:

as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (UNESCO, 2003, p.4)

Este novo entendimento de “patrimônio cultural imaterial”, segundo a Convenção de 2003, se manifesta da seguinte forma:

a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial;

b) expressões artísticas;

c) práticas sociais, rituais e atos festivos;

d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais. (UNESCO, 2003, p.5)

É possível identificar mudanças importantes na configuração do conceito apresentado pela Convenção de 2003, especialmente se relacionarmos com a definição utilizada pela Convenção do Patrimônio Mundial (1972). Em primeiro lugar observa-se uma ampliação e diversificação profundas dos elementos que agora podem ser considerados patrimônios. Em segundo lugar, os detentores desses bens passam a ser valorizados por serem os herdeiros e transmissores, e, por isso, são identificados como as figuras aptas a reconhecerem os seus bens como patrimônios,

65

a recriá-los e a criar novos. Isso representou uma mudança de perspectiva importante, tendo em vista que, até pouco tempo, patrimônios nacionais eram eleitos exclusivamente por um corpo eminentemente técnico vinculado ao Estado sem nenhum tipo de protagonismo social. Ou seja, o processo de patrimonialização é conduzido a uma horizontalidade que lhe permite operar de forma mais democrática. Em terceiro lugar, e ratificando a Declaração de Istambul (2002), o patrimônio é compreendido como elemento responsável pela construção do sentimento de pertencimento entre os grupos e suas identidades, o que se configura como campo fértil para a promoção da diversidade das culturas.

Outro aspecto a destacar é que esse reposicionamento conceitual está diretamente relacionado à valorização dessas manifestações no presente, na sua organicidade viva – só assim é possível que os patrimônios sejam recriados pelas comunidades e grupos, como defende o texto da Convenção. Essa mudança, que podemos considerar como radical diante da noção clássica, faz com que não seja mais exigido o selo de uma autenticidade estática, aspecto este que passa a ser compreendido como incompatível com a forma dinâmica com que se caracterizam naturalmente essas experiências.

Este novo entendimento colocou em questão, inclusive, a escolha feita pela nomenclatura “imaterial”. Aspectos complexos na relação entre as noções de material e imaterial reacenderam a discussão em torno do assunto, já que a separação entre o físico (material) e o intangível (imaterial) é considerada por muitos como inviável, por se tratarem de aspectos indissociáveis. Exemplos práticos nos ajudam a compreender a questão posta. Um bem material, como um centro histórico, coexiste com uma serie de significados e é por conta do sentido que lhe é atribuído que seu valor patrimonial pôde ser reconhecido. Da mesma forma, uma festa popular tem a sua construção simbólica vinculada a uma serie de elementos físicos, como as fantasias, os instrumentos, as alegorias etc. Sobre essa questão, o antropólogo indiano Arjun Appadurai defende que “sem o patrimônio material, o patrimônio imaterial torna-se demasiado abstrato. Sem o patrimônio imaterial, o patrimônio material transforma-se numa serie de objetos ou sítios ilegíveis.” (Appadurai apud CABRAL, 2011, p.106) De toda forma, mesmo com toda a polêmica a respeito, a terminologia e a classificação que dela decorre se mantêm até os dias de hoje.

66

1.8 A salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e os desafios