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Expansão do campo patrimonial: da reivindicação por múltiplas identidades a um novo olhar para o patrimônio

1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

1.5 Expansão do campo patrimonial: da reivindicação por múltiplas identidades a um novo olhar para o patrimônio

O nacionalismo se consolidou como um modelo exitoso, permanecendo forte durante todo o século XIX e primeira metade do século XX, quando alcançou o seu ápice com duas grandes guerras mundiais impulsionadas pelo afã de seus valores. A violência extrema que foi praticada e as profundas destruições que resultaram desses acontecimentos, especialmente a Segunda Guerra Mundial, impactaram profundamente o mundo, estimulando um movimento global de debates em torno dos perigos do etnocentrismo e da urgência de se avançar na direção do respeito entre as diferentes culturas nacionais coexistentes. Essa reflexão sobre os caminhos e descaminhos para uma construção estável da paz entre as nações encontrou ressonância em um debate intelectual que começava a ganhar cada vez mais expressão – o que gestava a formulação do conceito antropológico de cultura.

A noção de cultura, tal como formulada pelos antropólogos culturais, na tradição de Franz Boas e de Bronislau Malinowski, trazendo em seu bojo as noções correlatas de diversidade, valorização da diferença, contextualização, relativização, emerge como solução adequada na luta contra o racismo, o etnocentrismo, o evolucionismo e a hierarquização dos povos numa história única e linear baseada em critérios de progresso e de civilização. (ABREU, 2007, p.272)

Nesse contexto, uma serie de iniciativas promoveu um movimento de reflexão e promoção da cooperação internacional em prol da difusão do humanismo. A mais emblemática foi a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em outubro de 1945; contudo, é um dos seus desdobramentos que nos interessa sobremaneira aqui. Trata-se da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), uma agência da ONU criada em novembro do mesmo ano com o objetivo central de construir uma cooperação intelectual em torno das áreas de educação, ciências naturais, ciências humanas e sociais, cultura e comunicação e informação10.

Num cenário frágil e temeroso de pós-guerra, o fomento de ideias anti-racistas impulsionou o projeto que concebeu a UNESCO, que concentrou seus esforços iniciais em “estimular estudos e pesquisas sobre a diversidade cultural no planeta, fomentar encontros entre indivíduos de culturas diferentes, ensinar às crianças o

10 Dados da criação das duas instituições retiradas de página web oficial. Disponível em

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respeito à idéia de diferença cultural”. (ABREU, 2007, p.272) Como estratégia para viabilizar esses objetivos, abraçou e difundiu o conceito antropológico de cultura e com ele a defesa do reconhecimento da diversidade cultural, acreditando ser esse um dos caminhos para combater o universo racista que assombrava o interior dos países e ressoava mundo afora.

Foi acreditando nisso que a UNESCO convocou intelectuais para estudos que questionassem o mito da superioridade racial. Desse esforço foi lançada, em 1952, a publicação “Raça e Ciência”, que contou com o texto “Raça e História”, de Claude Lévi-Strauss – obra esta que, por sua importância e contundência, influenciou todo o debate que se seguiu sobre diversidade cultural, o que a faz ser considerada clássica até os dias de hoje. Neste texto, Lévi-Strauss estimula o relacionamento e a troca entre as diversas culturas coexistentes no mundo, num claro apelo em prol da paz e do respeito entre as nações. Em tom militante, rechaça qualquer tipo de determinismo biológico, ainda utilizado para respaldar a teoria de que a originalidade da criação humana estaria relacionada com a constituição anatômica ou fisiológica das raças; também repele as posições etnocêntricas por não reconhecerem a realidade da diversidade cultural. Adverte, ainda, para os perigos do evolucionismo social e cultural que, diferente do biológico, se constitui como um mero meio, pouco confiável, de apresentação de fatos. Com isso ele refuta a ideia de que determinadas sociedades sejam consideradas etapas do desenvolvimento de outras e denuncia, na sequência, que o julgamento que põe em oposição as culturas ditas avançadas e as ditas estagnadas origina-se, em larga medida, da posição que o observador ocupa em relação a elas.

Consideraríamos assim como cumulativa toda cultura que se desenvolvesse num sentido análogo ao nosso, isto é, cujo desenvolvimento fosse dotado de significação para nós. Enquanto que as outras culturas nos apareceriam como estacionárias, não porque necessariamente o fossem, mas porque a sua linha de desenvolvimento nada significa para nós, não é mensurável nos termos do sistema de referência que utilizamos. (LÉVI-STRAUSS, 1952, p.10)

Esse texto não é uma ação isolada nesse período. Contudo, o escolhemos porque se trata de uma ilustração emblemática do esforço de instituições internacionais como a UNESCO em reverter valores nocivos criados e difundidos pelo nacionalismo. A partir dessas experiências avançou-se muito com o reconhecimento e a defesa da diversidade cultural, o que fez com que “a ideia de um

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povo indiscriminado como sujeito da nação dê [desse] lugar à concepção de um povo segmentado, formado por uma multiplicidade de culturas.” (ABREU, 2009, p.37, grifo nosso) Esse novo entendimento ressoou em diferentes campos da vida social, intelectual e política, provocando mudanças no mundo todo, como mostra o tom convocativo com que Lévi-Strauss conclui seu texto.

A diversidade das culturas humanas está atrás de nós, à nossa volta e à nossa frente. A única exigência que podemos fazer valer a seu respeito (exigência que cria para cada indivíduo deveres correspondentes) é que ela se realize sob formas em que cada uma seja uma contribuição para a maior generosidade das outras. (LÉVI- STRAUSS, 1952, p.24)

Os desdobramentos desse período pós-guerra – com a emergência de um conceito ampliado da cultura e o questionamento da prática de um nacionalismo etnocêntrico – reverberaram diretamente no campo do patrimônio cultural. A partir da segunda metade do século XX a UNESCO protagonizou um debate contínuo e organizado em torno do campo da preservação patrimonial. Contando com a participação crescente de países do mundo todo, a instituição promoveu uma serie de encontros que resultaram importantes documentos, encaminhamentos e diretrizes – em formato de cartas, recomendações, declarações, convenções. Esse debate, ao tempo que modificou e ampliou gradualmente o conceito de patrimônio, influenciou na atualização das políticas de preservação no mundo todo.

Não é objetivo deste trabalho passar por todo esse conjunto de documentos, tendo em vista, inclusive, que até a década de 1980, apesar de temas circunscritos ao folclore11 já figurarem como objetos de debates constantes, não são registrados avanços significativos no que diz respeito à inclusão, nestes documentos internacionais, de questões em torno da imaterialidade da cultura. No entanto, essa ausência nos interessa sobremaneira, na medida em que é ela que impulsiona um movimento irreversível de reivindicação de espaço para as culturas tradicionais e populares no debate patrimonial. Explicamos. A década de 1970 foi marcada pela

11 Até este momento o termo “folclore” era, ainda, bastante utilizado para referir-se a toda a

criação oriunda da cultura tradicional e popular, como explica Manuel Guevara: “el término de folklore era el utilizado más a menudo, puesto que representaba de la mejor manera las manifestaciones de la cultura tradicional y popular transmitidas en la mayor parte de los casos oralmente.” (GUEVARA, 2011, p.160) Esta terminologia veio a ser questionada, especialmente, na conferência A Global Assessment of the 1989 Recommendation on the

Safeguarding os Traditional Culture and Folklore, realizada em 1999, pela UNESCO e pela

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aprovação da Convenção da UNESCO sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural12. Este documento, assinado em 1972 por diversos países, foi formulado em um tempo marcado pela aceleração tecnológica e pela globalização vertiginosa – fatos encarados como uma ameaça de destruição ao patrimônio mundial “não somente pelas causas tradicionais de degradação, mas também pela evolução da vida social e econômica que as agrava por meio de fenômenos de alteração ou destruição ainda mais temíveis.” (UNESCO, 1972, p.1) Ou seja, mais uma vez uma transformação na ordem do tempo muda os modos de vida em sociedade e o patrimônio é alvo de preocupações globais em torno de temas como destruição e desaparecimento. Como desmembramento deste documento foi criada a Lista do Patrimônio Mundial e, a partir daqui, mais do que em qualquer outro momento, a comunidade internacional foi convocada a trabalhar em prol da proteção do conjunto patrimonial mundial.

A forma como o patrimônio cultural foi definido nesse documento é o que mais nos interessa. Patrimônio, para esta Convenção, são os monumentos e os conjuntos arquitetônicos de valor excepcional universal para a história, a arte ou a ciência; e os lugares notáveis construídos pelo homem ou pela natureza, representantes de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. (UNESCO, 1972) Observadas estas concepções, fica claro que esse documento de importância global soou anacrônico ao omitir o debate que se formava em torno da ampliação do conceito de cultura, não avançando a ponto de considerar como patrimônio os bens oriundos da cultura popular e tradicional. Curioso observar que ele foi fruto da mesma instituição que protagonizava o debate em torno da ampliação da compreensão no universo cultural.

A Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 desprivilegia diretamente aqueles países cuja cultura popular se sobressai aos bens materiais, como é o caso, por exemplo, da América Latina. E foi nesse contexto que, em 24 de abril de 1973, o

Ministério de Relaciones Exteriores y de Cultos da Bolívia apresentou uma carta

para a UNESCO solicitando o reconhecimento do valor patrimonial do folclore e a regulamentação da sua conservação, promoção e difusão. A motivação para a carta

12 Documento disponível em

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20de%20Paris%20197 2.pdf. Acesso em 14 out. 2016.

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esteve vinculada, ainda, ao campo dos direitos do autor, sendo solicitados esforços para que as obras folclóricas de origem coletiva ou anônima fossem incorporadas como propriedade de seus territórios de origem – o que demonstra um estado de alerta diante de um mercado que se globalizava cada vez mais. (GUEVARA, 2011) Este documento assumiu uma importância relevante no debate por reivindicar um caráter patrimonial às manifestações da cultura popular e tradicional diante de toda comunidade internacional.

Definitivamente, o interesse do Estado boliviano para assegurar no plano internacional uma salvaguarda do folclore não constituiu uma questão puramente econômica, ele encontrou seu fundamento na valorização das expressões provenientes da tradição. Sua importância nos âmbitos da história, da memória social e das identidades que reflete, lhe conferiu mais tarde um lugar no interior do dispositivo do patrimônio cultural mundial. É a partir deste fato que a tradição adquiriu um status político e cultural a nível internacional. (GUEVARA, 2011, p.164, tradução nossa)

Nesse mesmo sentido, a visão oriental para o campo do patrimônio cultural também não sintonizava com a postura restritiva da UNESCO; exemplo disso foram as várias recusas da instituição aos pedidos de concessão de títulos de Patrimônio Mundial para monumentos japoneses. Vale ressaltar que o Japão regulamentou a preservação dos bens da cultura imaterial ainda na década de 1950, baseando-se, especialmente, na compreensão do “tesouro nacional vivo” – a saber: os detentores dos conhecimentos e técnicas que dão vida aos patrimônios. Essas habilidades, que são transmitidas de geração para geração através do tempo, são encaradas com uma importância fundamental, pois, para os japoneses é o savoir-faire13 que propicia, não só a construção, mas a continuidade de todo o seu patrimônio nacional. Assim, “mais relevante do que conservar um objeto como testemunho de um processo histórico e cultural passado é preservar e transmitir o saber que o produz, permitindo a vivência da tradição no presente.” (SANT‟ANNA, 2009, p.52)

Esse entendimento é o que explica a tradição que o país possui de intervir ou, até mesmo, de reconstruir os seus patrimônios materiais, como é o caso do que acontece no Templo d‟Isé. De vinte em vinte anos este templo é destruído e reconstruído novamente com madeira de cipreste dos bosques do seu entorno. Isso é justificado pela defesa de que as novas gerações precisam receber os conhecimentos e as técnicas de construção, uma herança dos antepassados e que

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vem sendo transmitida através do tempo. Também é interessante notar que estes bosques que fornecem a matéria-prima para as reconstruções são considerados sagrados e, por isso, preservados. (BRITO, 2011; HARTOG, 2006) Essa interação profunda e implicada entre patrimônio material, imaterial e natural é extremamente importante na medida em que, usando uma expressão de Reginaldo Gonçalves (2005, p.26), “coloca essa sociedade em movimento” em torno da sua própria tradição.

Apesar de a proposta boliviana não ter sido adotada e os monumentos japoneses não terem sido reconhecidos pela UNESCO neste momento, os dois movimentos tiveram um papel fundamental ao alertar para uma lacuna na tão midiatizada Convenção do Patrimônio Mundial de 1972, o que resultou numa tomada de consciência mais crítica acerca das tratativas em torno das culturas tradicionais, fazendo o debate em torno destas questões avançar ainda mais.

Nessa conjuntura também ganharam voz as reivindicações de diferentes grupos pelo reconhecimento de identidades até então omitidas, como as étnicas, ideológicas, religiosas, de gêneros etc. Para Hartog (2006, p.195), o que se reclama aqui não é uma identidade estável e segura de si, mas sim uma identidade “que se reconhece como inquieta, que corre o risco de se apagar ou que já está muito esquecida, obliterada, reprimida – de uma identidade em busca de si própria, para exumar, montar, ou até mesmo inventar.” Essa ebulição identitária em muito se deve à “equação antropológica da construção da alteridade” (ABREU, 2009, p.35) que floresceu no debate das ciências sociais, compreendendo a cultura de forma processual e sujeitando a identidade nacional à transformações significativas.

Os estudos folclóricos, que produziram desde fins do século XIX um vasto conhecimento empírico sobre os grupos étnicos, sua religião, medicina, festas e artesanato, utilizam quase sempre uma concepção arcaicizante dessas manifestações culturais, encontrando dificuldades para entender como elas se renovam nos processos modernizadores suscitados pela urbanização e industrialização da cultura. Só na última década [1980] as ciências sociais, que se ocupam da vida contemporânea e dos processos urbanos, se interessaram pela produção cultural imaterial. Seus enfoques teóricos e metodológicos, com mais capacidade para examinar sociedades complexas, permitem uma melhor avaliação dos contextos modernos em que se transformam os bens simbólicos tradicionais, e assim surgem novos referentes de identificação coletiva. (CANCLINI, 1994, p.99, grifo nosso)

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Assim, no bojo das décadas de 1970 e 80, diferentes grupos identitários no mundo todo se mobilizaram para dar sustentação a esse debate, o que garante força à defesa da diversidade cultural e instaura uma serie de reivindicações pela preservação de seus patrimônios. A guinada antropológica da cultura faz despontar um sentimento de ausência absoluta de representatividade entre todos aqueles que não se enxergavam refletidos nos patrimônios nacionais consolidados até então. Esses patrimônios, que materializavam um passado glorioso voltado apenas ao poder hegemônico de uma unidade nacional idealizada, suprimiam a heterogeneidade cultural que compõe as sociedades, negligenciando especialmente as culturas produzidas pelos setores subalternos.

Assim, grupos até então silenciados passam a reclamar seus direitos e a demandar a inclusão da sua criação cultural na composição dos patrimônios nacionais. Essas transformações decorrem de mudanças nos planos institucional e discursivo – o primeiro representado pela perda de hegemonia do Estado no campo das políticas do patrimônio; o segundo pela fragmentação que os patrimônios sofrem através das múltiplas reivindicações que emergem da desestabilização da sua concepção nacionalista. (GONÇALVES, 2012, 2015)

Também é possível situar esses acontecimentos na emergência da filosofia do Estado do Bem Estar Social, constituída por valores como a inclusão social e a responsabilização pública e que tem como uma de suas consequências a quebra da hierarquização no campo da cultura através da institucionalização da política cultural. (MORATÓ, 2007) O debate patrimonial acompanha e é influenciado por essa conjuntura, como bem ilustra Maria Cecília Londres Fonseca (2009).

Sem dúvida, a ampliação do conceito de cidadania – o que implica reconhecimento dos “direitos culturais” de diferentes grupos que compõem uma sociedade, entre eles o direito à memória, ao acesso à cultura e à liberdade de criar, como também reconhecimento de que produzir e consumir cultura são fatores fundamentais para o

desenvolvimento da personalidade e da sociabilidade – veio

contribuir para que o enfoque da questão do patrimônio cultural fosse ampliado para além da questão do que é “nacional”. (FONSECA, 2009, p.76)

Fica evidente, então, que a concepção preservacionista praticada no ocidente há mais de um século não dá conta de atender a toda essa mudança social que clama por uma narrativa amparada pela diversidade. A UNESCO não tem outra saída senão ceder às pressões surgidas após a Convenção de 1972 e iniciar uma

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participação mais efetiva na ampliação real dos conceitos de cultura e de patrimônio. Como resultado, a instituição fomentou a criação de dois importantes documentos na década de 1980 – a Declaração do México sobre Políticas Culturais e a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular.

Comecemos, então, pelo documento que marca o primeiro avanço concreto da UNESCO no que diz respeito ao alargamento conceitual do termo cultura, a Declaração do México sobre Políticas Culturais14. Este documento, datado de 1982, foi resultado dos debates ocorridos no âmbito da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais (MondiaCult), na Cidade do México. Na ocasião, a comunidade internacional se reuniu com o objetivo de contribuir de forma efetiva para a aproximação entre os povos e para uma maior compreensão entre os homens. (UNESCO, 1985) Essa preocupação estava diretamente relacionada ao contexto político do período, com o fim das ditaduras em países americanos, a conquista da liberdade dos países africanos até então colonizados e, de forma ainda mais acentuada, a intensificação das interações entre as nações pela via do desenvolvimento tecnológico – “Os avanços da ciência e da técnica têm modificado o lugar do homem no mundo e a natureza de suas relações sociais.” (UNESCO, 1985, p.1)

A Declaração avança na discussão do conceito de cultura, aproximando-o da vertente antropológica e ampliando-o de forma definitiva. Destacando a diversidade cultural como o conjunto de valores único e insubstituível dos povos, o documento posiciona as tradições e as formas de expressão como pilares fundamentais na definição do espaço dos grupos sociais no mundo. Estes avanços coroam toda a elaboração teórica fomentada pela instituição desde a década de 1950.

[...] em seu sentido mais amplo, a cultura pode ser considerada atualmente como o conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Ela engloba, além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. (UNESCO, 1985, p.1)

No que corresponde ao patrimônio cultural, a Declaração do México também avança, apresentando um entendimento mais holístico para o conceito.

14 Documento disponível em

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20do%20Mexico%201985.p df. Acesso em 10 mar. 2016.

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Acompanhando o debate vigente à época e indo além da própria Convenção do Patrimônio Mundial de 1972, a Declaração inclui no universo patrimonial o conjunto de bens imateriais que compõe a cultura.

O patrimônio cultural de um povo compreende as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida. Ou seja, as obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas. (UNESCO, 1985, p. 5)

A partir da repercussão dessas novas idéias, o âmbito da criação e fruição da cultura passou a ocupar, gradativamente, um espaço menos elitista e menos concentrado nas mãos das oligarquias; ao tempo que emergiu uma tendência mais democratizante para analisar e tratar do tema. É neste contexto, especialmente a partir da década de 1980, que as políticas culturais passam a ser incorporadas aos programas de governo, dentro da perspectiva de sociedades mais democráticas e menos desiguais. (RUBIM, 2012) Assim, é possível entender o resultado deste encontro no México como um marco para as políticas culturais e para a propria forma como a noção de cultura foi atualizada, implicando em desdobramentos positivos no mundo todo.

O campo do patrimônio foi fortemente influenciado por todo esse contexto de alargamento conceitual da cultura e consequente reivindicação identitária das minorias. Assim, ainda em 1982, a UNESCO instaurou o “Comitê de Peritos para a Salvaguarda do Folclore” e uma “Sessão do Patrimônio Não Tangível”, o que resultou, em 1989, na Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e