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De Mário de Andrade a Aloísio Magalhães: pensamentos que iluminaram a compreensão patrimonial no Brasil

1 Patrimônio Cultural: caminhos e descaminhos até a consolidação de um conceito ampliado

2 A experiência brasileira no campo do patrimônio cultural imaterial Optamos por destacar a experiência brasileira não apenas porque um dos

2.1 De Mário de Andrade a Aloísio Magalhães: pensamentos que iluminaram a compreensão patrimonial no Brasil

Durante os anos 1920, no contexto do movimento modernista, intelectuais protagonizaram importantes debates em torno da construção de uma cultura nacional com o objetivo de identificar o que constituía o Brasil verdadeiro. Segundo Farias (2015, p.65-66), esse grupo “buscava estabelecer, por meio da instituição da categoria „brasilidade‟ e da busca pela singularidade nacional, o que viria a ser patrimônio cultural.” Para encontrar as respostas para essas questões, esses jovens intelectuais23 realizaram caravanas pelo interior do país a procura dos bens culturais que traduzissem a identidade nacional. Dessa experiência, a arquitetura monumental, o barroco e a mestiçagem foram apontados como as evidências do “ethos nacional”, o ideário modernista para o Brasil-Nação. (MARINS, 2016)

Contudo, longe de uma unanimidade, esse movimento apresentou diferenças cruciais em suas propostas de nação e, confirmando que toda identidade é uma construção simbólica (ORTIZ, 2012), a brasileira nasceu de um processo de disputa

23 Compunham as “caravanas modernistas” figuras como Tarsila do Amaral, Mário de

Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Blaise Cendrars, Olívia Guedes Penteado, Gofredo da Silva Tellese René Thiollier. (FARIAS, 2015)

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travado por ideias muitas vezes antagônicas sobre cultura e patrimônio. As controvérsias dos modernistas ficaram mais evidentes ao longo da década de 1930, quando a problemática da cultura brasileira foi transformada em questão política.

Tentativas de preservar os monumentos históricos nacionais figuraram entre personagens públicos desde o século XVIII, no entanto, até o início do século XX nenhum resultado efetivo havia sido alcançado24. E, apesar de a década de 1920 ter apresentado avanços importantes no que diz respeito à formulação de ideias e propostas para a preservação patrimonial – tanto no âmbito político como intelectual, foi na segunda metade da década de 1930, no bojo do empreendimento de fundação de uma nação brasileira legítima, que foram inauguradas as práticas de preservação cultural no país, institucionalizando, dessa forma, o tema do patrimônio. O projeto nacional de Vargas, seguindo o momento histórico ocidental de avanço do capitalismo, demandou uma vertiginosa industrialização a fim de consumar o desejo de modernidade que tomava conta das elites do período. Entretanto, para concretizar a nação moderna brasileira era preciso mais – indústrias e reformas urbanísticas não seriam suficientes para o êxito desse ambicioso projeto, tampouco unidade territorial e econômica isoladas. Além desse conjunto de esforços, era indispensável alcançar uma unidade cultural, o que impulsionou um trabalho sistemático voltado para a compreensão e construção de uma identidade brasileira. (D‟ALESSIO, 2012; GONÇALVES, 2015)

Para empreender esse projeto, o Estado, na figura do então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, homem forte do governo Vargas, propôs um serviço nacional para a defesa do patrimônio brasileiro, com fins não só de legitimar a tão desejada brasilidade, mas de proteger os bens que a caracterizavam dos perigos de danificação, desaparecimento ou dispersão para fora do país (no caso das obras de arte). Consequência disso foi a criação, em 1937, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Aproximando-se das reflexões modernistas sobre a identidade nacional, Capanema solicitou a Mário de Andrade,

24 Não é objetivo deste trabalho apresentar a totalidade da cronologia do patrimônio no país.

A publicação “Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma trajetória” (SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA, 1980) elenca a série de tentativas de preservação de monumentos históricos, arqueológicos e naturais, bem como de bens móveis, que precederam a criação do SPHAN, em 1937.

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então Diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, o anteprojeto de criação deste novo órgão estatal.

O plano apresentado por Mário de Andrade conciliava a experiência de outros países com as peculiaridades brasileiras, para criação de um Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Confirmando uma vez mais sua notável capacidade de intelectual, artista, crítico e também de organizador, o escritor paulista oferecia, em poucas páginas, desde a fixação de definições preliminares sobre patrimônio até um plano qüinqüenal de montagem e funcionamento do serviço. (SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA, 1980, p.13)

A proposta de texto de Mário de Andrade é considerada, até os dias de hoje, matricial para o pensamento patrimonial brasileiro. O intelectual, que durante as décadas de 1920 e 1930, havia não só tomado conhecimento, mas registrado uma diversidade de manifestações culturais brasileiras que até então eram invisíveis para o próprio país, “apontava para uma concepção integral da cultura, na qual concebia o patrimônio em todas as vertentes e naturezas, sendo que o Estado deveria estar pronto para uma atuação integradora.” (CHUVA, 2012, p.151) Para Mário, a cultura nacional estava representada pelos seus monumentos e obras emblemáticas, mas também pelo jeito de ser, de agir e de se comportar do povo brasileiro. (IPHAN, 2010)

Em sua proposta, Andrade definiu patrimônio artístico nacional como “todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira” (SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA, 1980, p.55), sendo que estas obras deveriam pertencer a, pelo menos, uma das oito seguintes categorias: arte arqueológica, arte ameríndia, arte popular, arte histórica, arte erudita nacional e erudita estrangeira, arte aplicada nacional e aplicada estrangeira. Observando com mais atenção as três primeiras categorias, verificamos que Andrade especificou as artes arqueológica e ameríndia em:

a) Objetos: fetiches; instrumentos de caça, de pesca, de agricultura; objetos de uso doméstico; veículos, indumentária etc;

b) Monumentos: jazidas funerárias; agenciamento de pedras; sambaquis; litógrifos de qualquer espécie de gravação;

c) Paisagens: determinados lugares da natureza cuja expansão

florística, hidrográfica ou qualquer outra, foi determinada

definitivamente pela indústria humana dos brasis, como cidades lacustres, canais, aldeamentos, caminhos, grutas trabalhadas etc; d) Folclore ameríndio: vocabulários, cantos, lendas, magias, medicina, culinária ameríndias etc. (SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA, 1980, p.57)

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Para a arte popular, foram mantidos os mesmos tópicos das duas primeiras categorias, atualizando, contudo, as especificações a fim de deixá-las mais alinhadas ao contexto da cultura popular brasileira.

a) Objetos: fetiches, cerâmica em geral, indumentária etc;

b) Monumentos: arquitetura popular, cruzeiros, capelas e cruzes mortuárias de beira-estrada, jardins etc;

c) Paisagens: determinados lugares agenciados de forma definitiva pela indústria popular, vilejos [sic] lacustres vivos da Amazônia, tal morro do Rio de Janeiro, tal agrupamento de mocambos no Recife etc;

d) Folclore: música popular, contos, históricos, lendas, superstições, medicina, receitas culinárias, provérbios, ditos, danças dramáticas etc. (SPHAN/ PRÓ-MEMÓRIA, 1980, p.57)

Analisando especificamente este recorte do anteprojeto de Mário de Andrade para o SPHAN e lembrando-nos que a prática de preservação patrimonial no ocidente esteve fixada exclusivamente em bens materiais até finais do século XX, não considerando nada que dissesse respeito ao campo da cultura popular, é possível compreender a vanguarda radical que marcava o pensamento andradiano não apenas em âmbito nacional, mas, certamente, mundial. A sua defesa por uma perspectiva etnográfica do patrimônio nos possibilita situar o anteprojeto do SPHAN como o primeiro documento de valor para a trajetória do patrimônio cultural imaterial brasileiro (quiçá do mundo ocidental).

[...] em sua tentativa de construção da nação, o passado seria uma matéria-prima a ser resgatada como referencial. Não um passado que não existe mais, mas justamente a existência, nesse imenso Brasil, de diferentes temporalidades, encontradas por ele em suas missões ao interior do Brasil, distante de São Paulo ou das grandes cidades; distante das elites e da sua erudição europeia e bastante próximo do popular, encontrado no próprio tecido social, a ser apreendido por meio do que vem do olhar, do escutar, do saborear, do conversar. (CHUVA, 2012, p.153)

No entanto, por mais inovador que hoje nos pareça o conteúdo deste documento, “os campos do patrimônio e do folclore tiveram suas trajetórias apartadas na origem.” (CHUVA, 2012, p.151) Sob a égide de Rodrigo Mello Franco de Andrade, o SPHAN tomou um caminho diferente do planejado por Mário de Andrade em seu anteprojeto e, suprimindo exatamente os trechos que lhe creditavam uma posição inovadora – aqueles que se referiam à preservação do patrimônio imaterial – associou suas práticas ao que boa parte dos países ocidentais já vinha praticando, uma política conservadora dirigida a bens materiais.

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“A verdade é que não somos ainda” – essa frase do primeiro presidente do SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade, ilustra muito bem o sentimento que impulsionou as primeiras experiências de preservação do patrimônio brasileiro. E nessa disputa por projetos de nação, a valorização da diversidade cultural brasileira proposta por Mário de Andrade foi preterida e precisou ceder lugar a outro entendimento, a defesa por uma concepção universalizante de cultura e patrimônio, que acompanhasse os ditames ocidentais e inserisse, de forma direta, o Brasil na modernidade. A defesa por esse projeto foi levada a cabo por intelectuais de peso, como o já citado presidente do SPHAN e também por figuras como Lucio Costa e Carlos Drummond de Andrade. A partir desse grupo o pensamento que moldou o patrimônio histórico e artístico brasileiro foi consolidado, aproximando o Brasil do que se considerava ser uma nação moderna, conectada com a arte ocidental e, assim, com o mundo civilizado.

A questão do pertencimento à civilização ocidental foi talvez a mais significativa na configuração que tomou o processo de invenção de um “patrimônio nacional” no Brasil. Os cânones da arte brasileira e sua universalidade foram construídos de modo eficaz, com a consagração de uma associação inédita até então entre as formas e princípios renovadores do barroco e a produção arquitetônica

moderna. Isso se deu, privilegiadamente, no âmbito da ação de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. (CHUVA, 2003,

p.313, grifos da autora)

O que melhor ilustra essa passagem da história é o Decreto-Lei número 25, de 30 de novembro de 1937. Esse documento é o primeiro marco regulatório brasileiro para o campo do patrimônio e se caracteriza pelo estabelecimento do tombamento como medida legal de proteção de bens móveis e imóveis.

A longa gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade, concluída em 1967, marca a “fase heróica” do SPHAN (FONSECA, 1997), período em que a sua política privilegiou a preservação de edificações, conjuntos arquitetônicos e paisagísticos e de bens móveis considerados expressivos para a nação brasileira. Essa fase pode ser definida por um grande esforço no sentido de inventariar e proteger bens de um passado colonial em vias de desaparecimento – basta lembrar das obras de Aleijadinho e das igrejas barrocas de Minas Gerais, beneficiadas diretamente pelo Decreto-Lei n. 25. Em linhas gerais, a política patrimonial brasileira nasceu e ficou associada durante muito tempo com uma cultura material, com foco na valorização do passado e no tema do nacional. (ABREU, 2007)

78 Ainda que, a partir deste trabalho, outras narrativas se possam ter esboçado – narrativas locais, regionais, étnicas –, o grande saldo da política iniciada por Rodrigo Mello Franco de Andrade foi, para usar a expressão de Richard Handler, a objetificação da idéia de nação. Somos um país porque temos uma história, e esta história está documentada em monumentos, prédios, objetos, coisas. (ABREU, 2007, p.271-272, grifo nosso)

Relacionando esse primeiro momento patrimonial brasileiro com a trajetória internacional abordada anteriormente, é possível constatar que a forma como são conduzidas as políticas no âmbito do patrimônio e da memória diz respeito a algo muito mais amplo e complexo do que a mera proteção de bens. A análise dos caminhos e descaminhos dessa prática nos leva a compreender os processos implicados na construção das próprias identidades nacionais. Como defende Fonseca (1997, p.16), essas práticas se assemelham mais a um “recurso ideológico para obter consenso, para legitimar um projeto nacional do próprio Estado” do que de fato a uma política pública de preservação.

No mesmo sentido, essa primeira experiência brasileira ilustra o caráter destrutivo, de uniformização e opressão que é levado a cabo no processo de construção de uma memória nacional. (POLLAK, 1989) Apesar dos avanços inegáveis que essa “fase heróica” do SPHAN protagonizou, é possível afirmar que os regionalismos e a ampla diversidade cultural do país foram invisibilizados por essa instituição estatal para o total favorecimento de uma memória nacional única, associada direta e exclusivamente ao Brasil colonial e à sua expressão mais emblemática, o barroco. Assim, novamente questionamos: para cada patrimônio nacional reconhecido e comemorado, quantos foram relegados à invisibilidade?

Esse cenário nos faz pensar sobre a questão da legitimidade desses patrimônios materiais em uma sociedade acentuadamente diversa como a brasileira. Compreendemos que o processo de elaboração de uma política patrimonial estatal deve se preocupar em ter o maior alcance possível no seu território, exatamente por tratar de bens de interesse público. No entanto, tendo em sua base inicial um corpo de pensadores formado exclusivamente por intelectuais de disciplinas tradicionais – como escritores, historiadores e arquitetos, o SPHAN fundou essa “comunidade imaginada” brasileira sem levar em conta a representação das tantas camadas que compõem essa diversidade cultural nacional. Por que omitir a diversidade lingüística que permeia esse país de distâncias continentais? Por que correr o risco de assistir

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ao desaparecimento de cânticos, danças e rituais das sociedades indígenas? Por que silenciar as festas populares e os carnavais de rua que definem grande parte das cidades brasileiras? Essas perguntas deixam evidente que os patrimônios eleitos nessa primeira fase tiveram um alcance simbólico limitado e que a participação da sociedade no campo das políticas patrimoniais não foi considerada. Assim, tendo em vista a sua exclusividade pela materialidade e o fato de serem símbolos abstratos onde apenas um grupo muito restrito se reconhece, esses bens se configuram, como bem sintetiza Fonseca (1997, p.17-18), como “um patrimônio pesado e mudo” e, ainda, “pesado porque mudo”.

Sobre esta fase, a própria Maria Cecília Londres Fonseca (2016), em texto mais recente, pondera para uma questão que pouco é levada em conta pelos estudiosos do patrimônio brasileiro – segundo ela não há nenhum dado que demonstre, da parte de Rodrigo Melo Franco de Andrade e de seus colaboradores, qualquer atitude de depreciação das manifestações oriundas da cultura popular e, tampouco, de desinteresse por sua preservação.

Dado o quadro legal e institucional disponível nas primeiras décadas do século XX, quando foi criada a Instituição – o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – e editado o Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, que regulamenta a proteção dos bens móveis e imóveis, investir em missão cuja complexidade é ainda hoje um grande desafio seria empreitada temerária – o que não impediu o reconhecimento, por parte de Rodrigo Melo Franco de Andrade e de vários colaboradores do SPHAN, de contribuições dos grupos populares para o patrimônio cultural brasileiro. (FONSECA, 2016, p.25)

Se o governo brasileiro ainda não estava preparado para uma política patrimonial moderna como a proposta por Mário de Andrade, também não foi fácil fixar o tombamento como prática protetiva no país. Queiroz (2016) afirma que o Decreto-Lei n. 25, por mais alinhado que fosse ao projeto de construção de uma Nação-Brasil, encontrou certa resistência por adentrar o tema do direito de propriedade, âmbito consagrado como absoluto e incontestável pelas leis do Direito, fato que representou um grande desafio para o corpo gestor do SPHAN da época.

Tamanha era a capacidade de estruturação de discursos demolidores e contrários a essas ideias preservacionistas, pelo tombamento, que na fase de criação do DL 25/37, o próprio Rodrigo de Melo Franco levou de dez a quinze anos defendendo, nas barras dos Tribunais, a constitucionalidade do Tombamento. (QUEIROZ, 2016, p.57)

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Durante o período em que a cultura popular e os regionalismos foram silenciados dentro do IPHAN, sendo postos de lado pela política hegemônica da pedra e cal, movimentos folcloristas ganharam espaço no campo de discussão sobre cultura e patrimônio, pleiteando, inclusive, o reconhecimento do folclore como saber científico. Nesse contexto, merece destaque o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) que, desde a sua criação, em 1958, com o nome de Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, promove relevante trabalho de conservação, promoção e difusão do conhecimento produzido pela cultura popular25. (IPHAN, 2010; QUEIROZ, 2016) Podemos compreender essa conjuntura como uma reverberação do contexto do pós-guerra no que diz respeito à criação da UNESCO e à emergência do campo das Ciências Sociais e do conceito antropológico da cultura, que, como vimos, contribuiu para a ampliação da noção de patrimônio cultural no ocidente.

A “fase heróica” do SPHAN se prolongou por mais de trinta anos e só na década de 1970 foi atualizada para o que Fonseca (1997) chama de “fase moderna”, quando ocorre uma reorientação de pensamento através de novas propostas de atuação.

O marco dessa atualização foi a criação, em 1975, do Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC), órgão vinculado ao então Ministério da Educação e Cultura, sob a gestão do designer Aloísio Magalhães. Apesar de outros órgãos estatais também atuarem no âmbito cultural neste momento, é o CNRC que vai representar avanços efetivos na forma de se pensar o patrimônio no país. Questionando tanto a condução elitista do SPHAN como o emprego da noção engessada de folclore pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), este órgão vai optar pelo uso de termos como “bem cultural” e “cultura popular”. Destaca-se, também, a inclusão da noção de “referência cultural” no dicionário das políticas culturais, o que, longe de representar uma mera mudança de nomenclatura, impulsiona uma nova perspectiva ao colocar em foco patrimônios não consagrados até então.

25 Em 1976 a Campanha foi incorporada à Funarte como Instituto Nacional do Folclore. Já

com a denominação atual – Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular –, a instituição passa, no fim de 2003, a integrar a estrutura do Iphan. Disponível em http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=1. Acesso em 21 abr. de 2018.

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Para além do valor histórico e artístico cultuados desde a década de 1930, o entendimento do bem como referência cultural, ao privilegiar a sua dimensão simbólica, desloca os sujeitos do papel de meros informantes para o de intérpretes do seu patrimônio cultural. Isso faz com que todos os processos de atribuição de valor legitimados pelas disciplinas tradicionais sejam relativizados, trazendo para o centro do debate a questão do poder e da legitimidade em torno do tema do patrimônio nacional. (FONSECA, 2001) A realização de seminários com as populações locais das cidades históricas de Ouro Preto, Diamantina (Minas Gerais), Cachoeira (Bahia) e São Luis (Maranhão), nos anos 1980, demonstra a implicação na prática deste novo pensamento. (IPHAN, 2010)

As ideias de Aloísio Magalhães oxigenaram o campo do patrimônio brasileiro. Sua proposta culturalista, marcada pela defesa de uma identidade nacional sustentada na diversidade de culturas existentes em todo o território brasileiro e não apenas em suportes materiais do passado colonial o aproxima do pensamento matricial de Mário de Andrade. Apesar de representar um contraponto à visão hegemônica conduzida desde a fundação do SPHAN, esse novo entendimento não propunha uma substituição completa de práticas, mas sim a incorporação de novos elementos que, acompanhando os debates intelectuais internacionais, abarcasse novos sujeitos e toda a sua diversidade cultural e patrimonial. (ABREU, 2007) Esse contexto impulsiona a realização, ao longo das décadas de 1970 e 1980, de diversos projetos de documentação, sempre com a preocupação de compartilhar os resultados com os grupos sociais interessados26. (IPHAN, 2010)

Nesse período, foram realizadas ações de registro bastante significativas que, apesar do seu caráter experimental e não

26 São exemplos desses projetos: 1) levantamentos sócio-culturais em Alagoas e

Pernambuco, tendo em vista identificar e avaliar os impactos de projetos de infra-estrutura nessas regiões, e formular indicadores para um desenvolvimento harmonioso; 2) inventários de tecnologias patrimoniais, que incluíram o uso do computador na documentação visual de padrões de tecelagem manual e de trançado indígena; 3) implantação do Museu Aberto de Orleans, em Santa Catarina; 4) tombamento da Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva, na Paraíba; 5) debate sobre a questão da propriedade intelectual de processos culturais coletivos; 6) desenvolvimento da idéia de criação de um selo de qualidade a ser conferido a produtos de reconhecido valor cultural, como o queijo de Minas e a cachaça de alambique; 7) realização, em parceria com o MEC e outras instituições, de vários projetos visando à interação entre educação básica e contextos culturais específicos; 8) reconhecimento, como patrimônio, de bens das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras; 9) documentação da memória oral das frentes de expansão territorial e dos povos indígenas ágrafos. (IPHAN, 2010, p.13)

82 sistemático, propiciaram uma importante reflexão sobre a questão, tendo como principal fruto a sedimentação de uma noção mais ampla