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A palavra na pintura portuguesa no séc. XX

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS ARTES

A PALAVRA NA PINTURA PORTUGUESA DO SÉC. XX

(DO INÍCIO DA REPÚBLICA AO FIM DO ESTADO NOVO)

VOLUME I

PRUDÊNCIA MARIA FERNANDES ANTÃO COIMBRA

DOUTORAMENTO EM BELAS ARTES

ESPECIALIDADE EM CIÊNCIAS E TEORIAS DA ARTE

ORIENTAÇÃO: PROFESSORA DOUTORA CRISTINA AZEVEDO TAVARES

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Ao meu pai, pela ternura. Ao meu irmão, pela cumplicidade.

A ambos, pela saudade.

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AGRADECIMENTOS

Começo por agradecer à Professora Doutora Cristina Azevedo Tavares o empenho, a confiança e o saber com que me acompanhou neste trabalho. Agradeço também a compreensão e o incentivo permanentes, que me mantiveram motivada, apesar das vicissitudes de alguns dos meus, e dos seus, dias.

Ao Jorge Coimbra pois, sem o seu apoio constante e incondicional, não teria conseguido.

Agradeço, também, aos amigos de todos os dias, pela paciência e apoio, nomeadamente:

À Adriana Baptista que, depois de incentivar esta aventura, soube manter-se atenta. Ao António F. Silva, duplamente. Porque assumiu, na minha ausência, as responsabilidades institucionais que devíamos partilhar e pela leitura, e releitura, atenta deste texto, bem como pelo acompanhamento, ombro a ombro, das certezas e hesitações, leituras e reflexões, descobertas e anseios, com que foi sendo escrito.

À Susana Lopes que soube estar presente em todos os momentos, os mais e os menos difíceis, com uma disponibilidade exemplar.

À Cláudia Melo, pela leitura interessada e crítica no momento das dúvidas finais. À Mariana Antão, pela companhia na travessia de algumas das noites.

Ao Paulo Pereira, pela amizade e confiança.

A todos os elementos da UTC de Artes Visuais pela compreensão e apoio.

Agradeço, ainda, à ESE e ao PRODEP as facilidades criadas para a realização deste trabalho e à FBAL que me acolheu e validou o projecto desta investigação.

Finalmente, agradeço a todas as entidades e instituições que, de algum modo, facilitaram a consulta de acervos, colecções e documentação, sem as quais a realização deste trabalho seria, certamente, mais difícil.

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índice |

índice

Agradecimentos

Resumo / Abstract 9

Introdução 11

Parte I

|

A relação verbal/visual Capítulo 1

|

Poesia versus pintura

1.1. Poesia versus pintura 23

Capítulo 2 | Texto versus imagem

2.1. A abordagem semiótica 33

Capítulo 3

|

Ver o texto/Ler a imagem

Preâmbulo 55 3.1. A proposta de Butor 56 3.1.1. Identificação 56 3.1.2. Nomeação 57 3.1.3. Legenda 58 3.1.4. Substituição 59

3.2. A proposta de Áron Kibédi Varga 60

3.2.1. Coincidência parcial 60 3.2.2. Coincidência total 61 a) poema figurativo/caligrama 61 b) poesia visual 61 c) pintura textual 62 3.2.3. Coincidência escondida 63

3.3. A proposta de Leo H. Hoek 63

3.3.1. Ponto de vista da produção 64

a) imagem precede o texto 64

b) texto precede a imagem 64

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Índice | v

Capítulo 4

|

Quando a palavra é imagem

Preâmbulo 69

4.1. Origens 72

4.2. Egipto: a escrita hieroglífica 76

4.3. A escrita na China 83

4.3.1. permanência do ideograma 83

4.3.2. Estética e iconicidade do sinograma 89

a) Estilos de escrita 89

b) Escritas cursivas e caligrafia 95

c) Caligrafia e pintura na China 103

d) Pintura de montanha e água 104

e) Pintura de letrados 107 4.4. A escrita no Japão 4.4.1. Sinograma no Japão 109 4.4.2. A simplicidade do budismo 113 4.4.3. A escrita na pintura 114 a) Ashide-e 118 b) Moji-e 119

Capítulo 5 | A palavra nas vanguardas artísticas internacionais

Preâmbulo: A palavra e a imagem no ocidente 123

5.1. A palavra impressionista 129 5.2. A palavra simbolista 131 5.3. A palavra cubista 135 5.4. A palavra futurista 140 5.5. A palavra dadaísta 147 5.6. A palavra construtivista 156 5.7. A palavra surrealista 162 5.8. As palavras do pós-guerra 172 5.8.1. Arte bruta 174

5.8.2. Cobra e a nova figuração 176

5.8.3. Gestualismos 176

5.8.4. Tachisme 177

5.8.5. Expressionismo abstracto 179

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líndice v|índice3

5.9. As palavras pop 183

5.10. As palavras neo-dada 191

Parte II

|

A palavra na pintura portuguesa do séc. XX

Preâmbulo 203

Capítulo 1

|

Naturalismo

1.1. Permanência do naturalismo 209

Capítulo 2

|

Modernismo e humorismo

2.1. Modernismo e humorismo 215

2.1.1. Francisco Smith 216

2.1.2. Stuart de Carvalhais 217

2.1.3. Cristiano Cruz 218

2.2.Um outro modernismo

2.2.1. Santa Rita 220 2.2.2. Almada Negreiros 220 2.2.3. Eduardo Viana 225 2.3. Amadeo de Souza-Cardoso 227 2.3.1. A palavra cubo-futurista 230 2.3.2. Desenvolvimentos futuristas 246 2.3.3. Alogismo 260 2.3.4. Os trabalhos de 1917 262 2.3.5. Desenvolvimentos anunciados 263

Capítulo 3

|

Segundo modernismo

3.1. anos 30|40 269 3.1.1. Mário Eloy 271 3.1.2. Alvarez 274 3.1.3. Carlos Botelho 275 3.2. anos 40|50 277 3.2.1. Vieira da Silva 283 3.2.2. neo-realismo 290 3.2.3. surrealismo 291

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Índice | v

3.2.4. abstraccionismo 292

3.2.5. um ponto comum: a ausência da palavra 292

3.2.6. o desenho e a colagem 295

a) António Pedro 295

3.2.7. Outros surrealistas 300

a) Mário Henrique Leiria e Alexandre O’Neill 303

b) Mário Cesariny 304

c) Cruzeiro Seixas 306

Capítulo 4

|

Anos 60/70

Preâmbulo 311

4.1. Gesto como intenção de ruptura 321

4.1.1. KWY 322

4.1.2. Artur Bual 325

4.1.3. António Areal: a abstracção do gesto 327

4.1.4. Joaquim Bravo: o inconformismo do fazer 330

4.1.5. Eduardo Nery: a conquista do espaço 332

4.2. O gesto como opção 333

4.2.1. António Charrua: o gesto expressionista 333 4.2.2. Justino Alves: a persistência do informalismo 338

4.2.3. Victor Pomar: a pintura como registo 340

4.3. Caligrafias 342

4.3.1. Fernando Lemos: caligrafias filiformes 343

4.3.2. José Escada: sinais escritos 346

4.3.3. Eurico Gonçalves: automatismo e gesto 348

4.3.4. António Sena: garatuja e gesto 352

4.3.5. Ana Hatherly: desenhar com as palavras 361

4.3.6. Emerenciano 370

4.4. A palavra escrita 373

4.4.1. Francisco Relógio e Tomás Mateus: continuidades 374

4.4.2. Joaquim Rodrigo: pintar a memória 377

4.4.3. Paula Rego: pintar a irreverência 388

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líndice v|índice5

4.4.5. João Vieira: pintar as palavras 400

4.4.6. Eduardo Luiz: o desencontro dos sentidos 409 4.4.7. José de Guimarães: cruzamento de linguagens 417 4.4.8. Álvaro Lapa: o compromisso com a literatura 422

4.4.9. Jorge Martins: a palavra sobreposta 435

4.4.10. Eduardo Batarda: a escrita-legenda 439

4.3.11. Ressonâncias pop 444 a) Bértholo 444 b) Palolo 445 c) Noronha da Costa 446 d) Sá Nogueira 448 e) Emília Nadal 449 Considerações finais 451 Conclusão 459 Bibliografia consultada 467 Bibliografia citada 519 Índice onomástico 537 Índice imagens 543

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a resumo|9

RESUMO

A relação entre literatura e pintura, entre palavra e imagem, entre legível e visível, tem sido tema de reflexão desde a antiguidade clássica até aos nossos dias. Os pensadores do séc. XX irão dedicar-lhe um espaço de relevo, promovido pelo desenvolvimento da linguística e do estruturalismo, o qual se tornará central para o pós-modernismo.

É também no séc. XX que a pintura se descompromete da obrigação única de representar o real e encontra espaço para se centrar nela própria. Deixa de ser ‘janela’, para se tornar superfície. Esta bidimensionalidade assumida torna a tela, inevitavelmente, numa superfície de inscrição e propicia a integração da palavra como elemento pictórico, compositivo, numa duplicidade de intenções: por um lado usa-a para afirmar esse seu novo estatuto, por outro apropria-se das características comunicativas da escrita como forma de ampliar o seu âmbito de expressão. A palavra esteticiza-se. A fonética, mesmo quando não desaparece, cede em favor do “hieróglifo” e do “ideograma”, da garatuja ou do gesto, ou seja da visualidade. Esta estratégia foi-se alterando e evoluindo ao longo do século a partir do cubismo, servindo diferentes propósitos e atitudes estéticas críticas e auto-reflexivas.

A apropriação da palavra pela pintura, em Portugal, comprova o carácter transgressor da opção. Faz-se, principalmente, em momentos de ruptura com os modelos artísticos instituídos e constitui-se como estratégia dessa mesma ruptura, primeiro com Amadeo, no início da 1ª República, depois, nos anos sessenta, num ambiente de mal estar social que anunciava já a queda do Estado Novo.

A análise que empreendemos incide sobre a obra individual de alguns pintores em que o registo de escritas, no seu sentido mais abrangente (gesto, caligrafia, tipografia, etc.), nos pareceu mais significativo ou inovador. Ela mostra que o recurso à palavra na respectiva pintura, em alguns dos casos, foi o ponto de partida para carreiras que explorarão as suas potencialidades expressivas e plásticas. Noutros, foi forma de acentuar a retórica da imagem. Noutros ainda, expressão de irreverência e ponto de partida para pesquisas que seguiram caminhos diversos.

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10|abstract c

ABSTRACT

The relationship between literature and painting, between word and image, between visible and readable, has been the subject of reflection from classical antiquity to the present day. Twentieth century thinkers will enhance its relevance that is fostered by the development of linguistics and structuralism, which will become central to postmodernism.

It is also in the 20th century that painting becomes disengaged from its sole obligation of representing the real and finds space to focus on its own. It ceases being a 'window' to become a surface. This accepted bidimensionality inevitably turns the canvas into a surface of record and favours the integration of the word as a pictorial and a compositional element in a duplicity of intentions: on the one hand the usage of canvas claims that new status; on the other hand the appropriation the communicative features of writing broadens its scope of expression.

The word becomes aesthetic. Even when phonetics does not disappear, it yields in favour of the "hieroglyph" and the "ideogram", the scribble or the gesture, in other words of its visibility. This strategy has been changing and evolving throughout the century with its starting point in Cubism. It has been serving different purposes and aesthetic attitudes that are both critical and self-reflective.

In Portugal the appropriation of the word in painting confirms the transgressor character of the option. It happens especially in times of disruption with the institutional artistic models and it constitutes a strategy of that same rupture. Initially with Amadeo, at the beginning of the 1st Republic, then, in the sixties, in an environment of social restlessness that already predicted the fall of the Estado Novo.

The analysis we undertake focuses on the individual works of some painters in which the written record, in its broadest sense (gesture, calligraphy, typography, etc…), seemed more significant or groundbreaking. In some cases it shows that the usage of the word in painting was the starting point of careers that will exploit their expressive and plastic potentialities. In other cases it was a way of accentuating the rhetoric of the image. Furthermore some artists expressed their irreverence and started researches that followed different paths.

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a intodução |11

INTRODUÇÃO

Des mots dans la peinture occidentale? Dès qu’on a posé la question, on s’aperçoit qu’ils y sont innombrables, mais qu’on ne les a pour ainsi dire pas étudiés. Intéressant aveuglement, car la présence de ces mots ruine en effet le mur fondamental édifié par notre enseignement entre les lettres et les arts.1

Michel Butor

O objectivo deste trabalho é o estudo da presença da escrita na pintura portuguesa no século XX e as interacções mútuas que o encontro propicia. Sentimos, no entanto, a necessidade prévia de aprofundar algumas questões de carácter mais teórico que enquadrassem as escolhas que os artistas plásticos portugueses foram fazendo ao longo das sete décadas que nos propomos analisar.

Com efeito, pensar a palavra associada à imagem na pintura é, necessariamente, penetrar em dois universos vastos, de teorização abundante.

Quer se pense na teoria da imagem (com todas as variações disciplinares que a compõem), quer nos centremos na da palavra (igualmente plural) acabamos por encontrar um quase infinito número de caminhos que, na sua transversalidade, nos remetem para uma encruzilhada de confluência de diferentes saberes. Mais complexo isto se torna quando cruzamos esses dois domínios e assim cruzamos também toda a diversidade que cada um transporta.

Há, no entanto, espaços de intersecção: apesar de tudo, quer o texto quer a imagem dependem do olhar — lê-se um livro e desfruta-se um quadro, porque se vê.

Trata-se então de tentar perceber como é que elas, quando se cruzam, se relacionam e se influenciam mutuamente: até que ponto, num qualquer limite, a palavra se torna pictórica e o quadro texto, de modo a que possamos dizer que vemos palavras e lemos imagens. Até que ponto uma mesma imagem se transforma quando confrontada com uma qualquer palavra, e vice-versa.

Ao penetrar na pintura, a palavra é, necessariamente, escrita. Esta sua condição gráfica cria uma dualidade que não quisemos descartar: pode ser legível ou ilegível. Ou seja, pode ser identificada como texto ou como uma sua qualquer simulação — garatuja, registo de gesto, invenção sígnica, etc., ou seja, com todas as formas de

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12| introdução c

registo que anunciem a presença de escritas, no pressuposto de que estas se formam com palavras. Sejam elas identificáveis, ou não.

C’est alors qu’enseigner l’art de résister aux paroles devient utile, l’art de ne dire que ce que l’on veut dire, l’art de les violenter et de les soumettre. Somme toute fonder une rhétorique, ou plutôt apprendre à chacun l’art de fonder sa propre rhétorique, une œuvre de salut public.2

Acompanhamos, portanto, a tendência da poesia e da literatura, de se reinventarem enquanto código de comunicação, insurgindo-se simultaneamente contra o que se supõe ser, pelo menos desde Nietzsche, o monolitismo ideológico do discurso verbal.3

Reflectimos, pois, sobre o duplo movimento de afirmação de imagens e palavras, feito de apropriações mútuas, de miscigenação de espaços e confluência de intenções, num percurso que o século XX construiu, afastando-se de rivalidades que nos acompanham desde a antiguidade clássica.

É este entrelaçado de questões — a amplitude das áreas de estudo, as particularidades de cada código de comunicação, os contextos históricos e sociais considerados — que justificam a estrutura deste trabalho.

Com efeito, começamos por acompanhar, ainda que brevemente, a evolução da relação entre o verbal e o visual, na civilização ocidental, do ponto de vista de alguns filósofos, linguistas e artistas. Pretendemos, assim, actualizar o estado do pensamento teórico sobre o tema.

Seguimos, depois, algumas propostas de sistematização, redes de possíveis interpretações da relação entre os dois sistemas de comunicação, quando eles se aproximam ou se sobrepõem. Serão elas que, de uma forma implícita ou mais explícita, sustentam a análise de caso que posteriormente desenvolvemos.

Explorando os limites, quisemos compreender os mecanismos próprios de palavras que são, elas mesmas, imagens. Detivemo-nos em algumas escritas não fonéticas, tentando apreender algumas da regras internas e a sedução que suscitaram na cultura

2 Francis Ponge, Rhétorique - Proêmes.

3 A importância da linguagem reside no facto de que o homem nela situou, ao lado do outro,

um mundo seu, um lugar que considerava suficientemente sólido para, apoiando-se nele, fazer o resto do mundo saltar dos seus eixos e tornar-se seu senhor. […] imaginava realmente possuir na língua o conhecimento do mundo. […] É, com efeito, ‘fora de tempo’ é precisamente agora que os homens começaram a dar-se conta do enorme erro que propagaram com a sua crença na linguagem. NIETZSCHE, Friedrich – Humano, Demasiado Humano.

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a intodução |13

ocidental, bem como a sua contribuição, quer para os desenvolvimentos da pintura do século XX, quer para uma progressiva e evidente estetização da escrita.

Antes de iniciarmos a análise do contexto português, e dada a ausência de estudos significativos na área, actualizamos o estado da arte no contexto internacional (europeu e norte americano, sobretudo), desde o impressionismo até ao fim dos anos setenta, atendendo a que, apesar de não o ter podido acompanhar, esse é o pano de fundo sobre o qual se desenvolve a produção artística nacional, quer dele circunstancialmente se afaste, ou deliberadamente se aproxime.

Para iniciarmos o estudo da presença de escritas na pintura portuguesa do século XX, vimo-nos na necessidade de definir alguns critérios de base, bem como procedimentos metodológicos, que assegurassem pragmatismo e eficácia ao estudo que nos propúnhamos desenvolver.

Assim, iniciámos este estudo considerando os autores nacionais que nasceram depois de 1870, ou seja, aqueles que atingiriam a maturidade entre 1900 e 1910, já que teriam, nesse período, 30/40 anos de idade.

Pela mesma razão, estipulámos como limite da investigação o grupo de pintores nascidos até 1970, permitindo incluir na análise autores que chegam aos fins dos anos 90 em plena actividade artística e outros, que estando a iniciar-se, virão a desenvolver carreiras significativas.4

Fundamentalmente, desse modo, pretendemos fornecer um cenário que contextualize uma outra análise — o uso da escrita na pintura portuguesa do século XX.

Depois da definição dessa norma de base, necessitámos de definir o grupo de autores que se constituiria como corpus do trabalho. Para isso pesquisámos obras de

4 Estamos conscientes, no entanto, que tal critério é estritamente metodológico: socorrendo-nos de um processo convencional e operativo da historiografia (a divisão de algo que é contínuo, o tempo, em séculos, décadas, anos, etc.), sabemos estar a correr um risco de simplificação, mas sabemos, também, estar a estabelecer limites, sem os quais nos seria difícil trabalhar.

Esta opção, ainda que balize todo o estudo, não será tida de forma absolutamente rígida, já que, sempre que acharmos necessário, poderemos apontar exemplos que escapem a essa cronologia, tanto por dela se encontrarem demasiado próximos, como por se constituírem, eventualmente, como fontes ou influências assinaláveis.

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14| introdução c

História da Arte Portuguesa de reconhecido crédito científico,5 bem como as representações em museus e colecções de arte prestigiados.6

Seleccionámos apenas os pintores que estão referenciados em, pelo menos, duas das obras referidas e/ou representados em, também pelo menos, dois dos museus ou das colecções consultadas.

Só foram considerados arquitectos, fotógrafos ou escultores cuja produção artística contemplasse também obras de pintura.

Dado o volume de autores e de obras recolhidas, optámos por excluir a modalidade de desenho e também a de poesia visual, bem como a de livro de artista, pese embora o enorme significado que todos têm no quadro teórico do tema em estudo e também as dificuldades que, frequentemente, sentimos na distinção clara desses géneros.

Sempre que se mostrou necessário, recorremos, no entanto, a alguns exemplos que pudessem esclarecer, de um qualquer modo, o uso da escrita na pintura, em alguns dos autores.

Do mesmo modo, do grupo de artistas que se ligaram ao conceptualismo só foram considerados aqueles que, embora não recusando os seus princípios programáticos, executaram trabalhos de pintura com inclusão de elementos verbais.

5 FRANÇA, José Augusto - A Arte em Portugal no Século XX. Venda Nova: Bertrand, 1974; FRANÇA, José Augusto - História da Arte em Portugal – o Modernismo (século XX). Lisboa: Presença, 2004. ISBN 972-23-3244-9; GONÇALVES, Rui Mário - A Arte Portuguesa do Século XX. Amadora: Temas e Debates, 1998. ISBN 972-759-132-9; PEREIRA, Paulo (direcção) - História da Arte Portuguesa: O Sistema

Contemporâneo. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, ISBN 972-759-010-1. Parte 4. p.329-646;

TAVARES, Cristina Azevedo - As Artes Plásticas em Portugal no Século XX. in FERRARI, Sílvia - Guia de

História da Arte Contemporânea. Lisboa: Presença, 2001; V.V.A.A. - Dicionário Da Pintura Universal.

Lisboa: Estúdios Cor, Vol.3; V.V.A.A. - História da Arte em Portugal. Lisboa: Edições Alfa, Vols.12 e 13; ANAMNESE – Pesquisa. Índex A-Z. Porto: Miguel von Haffe Perez, act. 2008. [consult. Jul. 04] Disponível na Internet <URL http://www.anamnese.pt/?projecto=proj:>.

6 Casa da Cerca (CC); Casa-Museu Abel Salazar (CMAS); Casa-Museu Teixeira Lopes (TL); Centro de Arte-Manuel Brito (CAMB); Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian (CAM/FCG); Colecção de Arte Contemporânea ELLIPSE FOUNDATION (EF); Colecção de obras de Arte da CGD (CGD); Colecção Fundação PLMJ (advogados) (PLMJ); El Centro Galego de Arte Contemporâneo (CGAC); Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD); Fundo de Pintura Contemporânea do Ministério das Finanças (MF); Museu Colecção Berardo (CB); Museu de Arte Contemporânea-Fortaleza de S.Tiago-Funchal (FST); Museu de Arte Contemporânea de Serralves (FS); Museu do Chiado (MC); Museu do Neo-Realismo (MNR); Museu do Surrealismo – Fundação Cupertino de Miranda (MS) ; Museu Estremeño e Iberoamericano de Arte Contemporâneo (MEIAC); Museu Nacional de Soares dos Reis (MNSR); Museu Municipal de Amadeo Souza-Cardoso (MASC); Museu Nacional do Teatro (MNT); Núcleo de Arte Contemporânea de Tomar (NAC); Obras de Arte do METRO de Lisboa (METRO).

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a intodução |15

Não se consideraram, portanto, nem instalações, nem trabalhos site specific,

fotografia intervencionada, vídeo ou qualquer outra manifestação com recurso a outros media.

procedimento

Depois de aplicados esses critérios, obtivemos um total de 264 artistas (tabela 1, Vol. II), tendo-se, em seguida, procedido à análise da obra produzida por cada um. Verificou-se que 125 deles (próximo dos 50%) integraram, de algum modo, a palavra escrita nos seus trabalhos.

O levantamento de imagem, das obras destes 125 pintores, foi feito consultando o espólio dos museus e das colecções referidas, mas também, colecções particulares, galerias de arte e sítios disponíveis na internet.

Uma das vertentes mais importante dessa procura foi, no entanto, a consulta bibliográfica de volumes, monografias, revistas da especialidade e, sobretudo, catálogos de exposição — tentámos consultar, sempre o máximo de catálogos por década para cada um dos autores, procurando abranger grande parte das exposições realizadas, de modo a assegurar uma cobertura significativa da globalidade das respectivas produções.

Não se trata, pois, de uma recolha total, mas da obtenção de uma amostragem, global e por autor, que cremos ser suficientemente exaustiva, para assegurar a consistência do estudo que pretendemos empreender (fichas de imagem, Vol. II).

critérios posteriores

A análise do material recolhido permitiu realizar uma outra triagem, a qual consistiu na recusa de autores de que não possuíamos um número significativo de obras ou, ainda, cujo levantamento revelou o uso da palavra, mas de forma não representativa, nas respectivas produções (por vezes esses casos revelaram-se mesmo excepções nos seus percursos artísticos). Foram, portanto, retirados da tabela de análise

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16| introdução c

inicial (tabela 2- Vol. II) por nos parecer que iriam interferir nos resultados com um peso excessivo para a sua representatividade.7

O número demasiado vasto de autores e obras com que, ainda, nos deparámos obrigou a repensar as balizas cronológicas deste estudo. Pareceu-nos, então que o devíamos restringir a um período mais estreito. Assim, atendendo a que não encontrámos estudos sistemáticos sobre este tema de análise, como já referimos, pareceu-nos válido como critério, pensar a produção artística desenvolvida desde o princípio do século, mais propriamente do início da República, ao fim do Estado Novo. Ou seja, do princípio do século XX ao fim dos anos 70. Tal escolha pareceu-nos pertinente sobretudo por duas razões: se por um lado são datas fundamentais para a História portuguesa, pois marcam dois momentos de quebra de situações políticas e sociais que permitiram a esperança numa consequente mudança cultural, por outro, coincidem com dois momentos fundamentais para a produção artística internacional — o da inventividade permanente das vanguardas europeias dos anos 10 e o do

experimentalismo intenso, alargado agora a todo o continente americano, dos anos 60.

Depois de aplicados esses critérios restaram 50 artistas, os quais se tornaram o núcleo da análise que apresentamos.

O estudo desenvolveu-se, a partir daí, organizando os autores por décadas e dentro destas, sempre que possível por movimentos artísticos. Procedeu-se sempre a um enquadramento geral que caracterizasse, quer as particularidades do momento sócio-cultural em que as obras foram produzidas, quer a forma como o processo artístico individual geriu o contexto em que se desenvolveu.

Fez-se, depois a análise da obra, autor a autor, tentando que os pressupostos teóricos que desenvolvemos nas três primeiras partes deste trabalho, orientassem a análise e interpretação da relação do verbal com o visual, através do estudo de alguns dos respectivos trabalhos, os quais se constituíram testemunhos de como o cruzamento das duas linguagens potenciou, ou não, a narrativa visual.

7 Devemos referir que o tratamento de dados efectuado é deliberadamente muito simples (não introduzirmos factores de ponderação para os autores ou obras), permitindo unicamente chegar a constatações gerais que autorizassem fundamentar a análise que nos propomos fazer.

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a intodução |17

Até aos anos sessenta a referida análise incidiu sobre a presença da palavra e do texto verbal na pintura, no entanto, a partir dos anos 60 o conceito abriu-se também, como referimos, a outras formas de grafismo que denunciassem intenções de escrita (atitude concordante com algumas das tendências internacionais, anteriormente estudadas). Chegámos, então a três categorias maiores que organizam a terceira parte do estudo, a que chamámos ‘gesto’, ‘caligrafias’ e ‘palavras’.

Por fim, elaborou-se um texto de síntese em que tentámos, compreender globalmente as motivações e as consequências formais para o uso da escrita na pintura, no período proposto.

Fica em aberto o estudo dos 20 anos finais do século, período em que a escrita, antevemo-lo no levantamento que fizemos (tabela 2, Vol. II), se afirmará, nas artes plásticas em Portugal, desenvolvendo e propondo novos rumos para a associação dos dois códigos de comunicação, acompanhando, de perto, os desenvolvimentos dos movimentos internacionais.

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verbal/visual poesia/pintura

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1.1. POESIA VERSUS PINTURA

Desde cedo os filósofos, ao questionarem-se sobre a natureza do real, se questionaram, também, sobre as modalidades das suas representações. Distinguem -nas ou aproximam--nas, numa sucessão de argumentos que, percorrendo todo o espectro de possibilidades, tanto podem chegar a equipará-las como a hierarquizá-las de forma rígida.

Sabemos, por exemplo, que Platão, na República, não encontra espaço para a poesia nem para a pintura.

Com efeito, embora nem sempre o tenhamos presente, o filósofo, ao banir os poetas da cidade ideal, interdita-a também aos pintores.8

Platão insurgia-se contra a característica que pintura e poesia tinham em comum: a capacidade de imitar, a mimesis,9 tida pelo pensador como um processo negativo, entendida como um espaço de ficção, de reprodução da aparência, afastando-se da natureza e da verdade três graus: no primeiro grau, o da criação, estaria o objecto na sua natureza essencial e una, concebido por Deus; no segundo, o objecto, o artefacto, produzido pelo artesão,10 seguindo o plano de Deus; no terceiro grau, estaria a obra do poeta e do pintor que imitam os objectos de que os outros são artífices.11

Platão, ao aproximar, deste modo, poesia/literatura da pintura, não só as separa das outras práticas artesanais, como da ciência (traçando uma fronteira teórica que

8 Por conseguinte, temos razão em nos atirarmos a ele desde já [ao poeta] e em o colocar em simetria com o pintor. De facto, parece-se com ele no que toca a fazer um trabalho de pouca monta em relação à verdade, e, no facto de conviver com a outra parte da alma, sem ser a melhor, nisto também se assemelha a ele. E assim teremos desde já razão para não o recebermos numa cidade que vai ser bem governada […]. PLATÃO - A Republica. Lisboa: FCG, 1987.Livro X, 605b. 5ª ed. p.472.

9 A ideia da existência de uma profunda e estreita unidade entre as artes (literatura, pintura e escultura e música), fundada nessa característica comum, a “mimesis”, era já comummente aceite pela cultura grega por volta do século V ac., tida, então, como uma característica positiva, enquanto capacidade de criar ilusões. JIMÉNEZ, José, (coord.) - Ver las Palavras, Leer las Formas. Santiago de Compostela:

Centro Galego de Arte Contemporâneo, 2000. ISBN 84-453-2046-7. p.16.

Segundo Neus Galí, o uso do termo, por Platão e Aristóteles, deve ser lido como cópia de um

modelo. GALÍ, Neus - Poesia silenciosa, pintura que habla. Barcelona: El Acantilado, 1999.

10 [Segundo a explicação mítica, as tekhnay ] son regalo de la divinidad: os artesanos han recebido su

arte de Atena y Hefesto […] las tekhnay las han aprendido los hombres de los dioses… GALÍ, Neus - Poesia silenciosa, pintura que habla. Barcelona: Acantilado, 1999. p.54.

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dará origem à sua autonomização) como ainda inicia uma discussão que se desenvolverá, mais ou menos intensamente, até aos dias de hoje.

Será Aristóteles discípulo de Platão, quem valorizará o sentido positivo e esclarecerá o papel específico da mimesis entendendo-a como produção de imagens,12 valorizando a imitação pelo prazer que proporciona. Assim, música, literatura, pintura, escultura e dança seriam artes miméticas pois todas produziam imagens imitando a natureza, ainda que usassem suportes e materiais diferentes. Essa acção derivava da

téchne,13 entendida como capacidade de fusão do pensamento com uma qualquer

forma de perícia ou habilidade, geradora de noções universais. A sua análise desloca a atenção do objecto produzido para o pensamento, para a capacidade humana de o produzir, substituindo, deste modo, as categorias platónicas de bem e verdade pelas de universalidade e conhecimento. De facto, Aristóteles considera a téchne como

capacidade produtiva (poietiké) acompanhada da verdadeira razão.14 Assim, aproxima

a arte da ciência, pois reconhece que para reproduzir é necessário o conhecimento o qual permite, não só imitar, mas também atingir a essência do representado; aproxima o objecto artístico do científico, reforçando o seu carácter gnoseológico: ambos procuram o conhecimento do arquétipo pretendendo conseguir a perfeição tipológica.

Deste modo, relaciona a physis e téchne. A primeira observa e teoriza sobre o real, tal como ele é, criando quadros de conhecimento do natural, do que existe. A segunda parte dessa observação para produzir artefactos, objectos artificiais, derivados desse conhecimento, sem intenções teóricas, mas criando todo um universo artificial que caracteriza a acção do homem.15 Acompanhando este raciocínio, compreende-se

12 Uma vez que o poeta é um imitador, como um pintor ou qualquer outro produtor de imagens, imita

sempre necessariamente uma de três coisas possíveis: ou as coisas como eram ou são realmente, ou

como dizem e parecem, ou como deviam ser. E isto exprime-se através da elocução em que há palavras raras, metáforas e muitas modificações da linguagem: na verdade, essa é uma concessão que fazemos aos poetas. ARISTÓTELES – Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. ISBN 972-31-1077-6. 1460b: 25. p.97.

13 O conceito grego de Téchne foi traduzido pelos romanos como Ars e liga-se, portanto,

indirectamente, ao que hoje chamamos “arte”. No entanto, para a cultura da antiga Grécia, não existia nenhum termo equivalente aquilo que para nós é “arte”. GALÍ, Neus - Poesia silenciosa, pintura que habla. p.47 e seguintes.

José Jimenéz, por seu lado, precisa que Aristóteles e Platão foram os primeiros teóricos da Téchne, usada, até aí com um campo semântico muito mais vasto do que o da nossa palavra “arte”. Designava perícia ou habilidade empírica, mental ou manual, abarcando actividades diversas que iam desde a medicina, à navegação ou à estratégia militar. Tratar-se-ia, então de uma mestria. 14 ARISTÓTELES - Ética a Nicómaco. Lisboa: Quetzal, 2004. ISBN 972-564-622-3. 1140a

15 Quando los autores griegos empezaron a oponer el arte [la téchne] a la naturaleza, pensaron ante

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a proximidade, quase inevitável, entre a natureza e a sua reprodução já que a téchne tem precisamente como objectivo alcançar essa analogia.

Podemos considerar que este momento irá marcar os desenvolvimentos da tradição da cultura ocidental: a produção artística identifica-se, desde então, não só com o acto de produzir imagens, mas com imagens que se aproximam da natureza, fieis ao real. As produções artísticas e discussões filosóficas dos séculos XVI, XVII e XVIII são disso testemunho, já que nelas a questão da comparação das artes tomou proporções consideráveis, desenvolvendo-se em interpretações da Poética de Aristóteles.

Dessa forma se justifica a associação, quase natural, da pintura à poesia expressa nas máximas, sucessivamente repetidas, de Simónides de Ceos, ”Muta Poesis, Elequens Pictura”16 ou, posteriormente, de Horácio, “ut pictura poesis”.17

Não é de estranhar, portanto que Charles Batteux, ao compor o tratado de 1746,18 que define o sistema moderno das artes, use a comparação entre pintura e poesia para a alargar às restantes belas artes (cujo objectivo exclusivo é a obtenção de prazer pela imitação da natureza) e as distinguisse das artes utilitárias (as que usam a natureza para resolver necessidades humanas). Assim, vai considerar belas artes, por excelência, a música, a poesia, a pintura, a escultura e a arte do gesto ou dança. Considera, ainda, como casos especiais a arquitectura e a eloquência que juntam a utilidade e o prazer.

Esta foi a classificação que D’Alembert usou na Enciclopédia (1751) para as belas

artes, ainda que integrasse já definitivamente a arquitectura e excluísse a oratória.

O ano de 1751 foi também aquele em que a obra de Batteux foi traduzida para o alemão. Assim se difundiu o seu pensamento na Europa ocidental do séc. XVIII e é esse, basicamente, o sistema das artes que chega ao século XX.

Modern System of Arts — a study in the history of aestethics. Journal of the History of Ideas. [S.l): [s.n.]. Vol XII e XIII (1951 e 1952), p.182.

16 A afinidade entre as duas artes já fora mencionada por Plutarco, o qual atribuiu ao poeta Simónides de Ceos o dito segundo o qual a pintura é poesia calada e a poesia, pintura que fala. PLUTARCO -

De gloria Atheniensium. 346 F. Na mesma obra (17 F - 18 a), Plutarco esclarece ainda que tal

comparação se baseia no facto de pintura e poesia serem, supostamente, imitações da natureza, princípio este que se revelaria fulcral nas reformulações sofridas pela analogia entre ambas as artes ao longo da Antiguidade clássica. in E-DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS – Ut pictura poesis. Lisboa: Carlos Ceia, act. 2005. [consult. Out. 2005] Disponível na Internet <URL http://www.fcsh.unl.pt/edtl>

17 Expressão usada por Horácio na sua Arte Poética, verso 361 que significa “como a pintura é a poesia”.

18 BATTEUX, Charles – Las Bellas-Artes reducidas a un mismo principio. 1746. cit. por JIMÉNEZ, José – El Universo de la Imagen. in XUNTA DE GALÍCIA – Ver las Palabras, leer las formas. p.18.

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Não deixa de ser pertinente sublinhar o facto de que, na continuidade da tradição grega, a mimesis seja considerada como critério de distinção entre as artes e os outros ofícios, bem como critério de unidade das artes, mas também que este conceito seja construído tendo como base a comparação entre pintura e poesia e assim, ainda que indirectamente, seja essa relação que está na base do sistema das artes.

No entanto, foi também no séc. XVIII que Gotthold Ephrain Lessing escreveu o

Laocoonte,19 um livro cujo principal objectivo era, precisamente, o contrário do do seu

contemporâneo Batteux: Lessing pretendia estabelecer a distinção entre pintura e poesia, entre literatura e pintura. De certo modo retoma, em novos termos, a questão onde a Paragone renascentista a havia deixado.

Com efeito, são conhecidos os argumentos de Leonardo da Vinci, na defesa da pintura contra as outras formas artísticas, nomeadamente a escultura (defendida por Miguel Ângelo, a música e a poesia.20 A comparação que mais nos interessa é, naturalmente, a que ele estabelece com a poesia:

A mais útil das ciências é aquela cujo fruto é mais transmissível e, pelo contrário, a menos útil será a menos comunicável. A finalidade da pintura é comunicável a todas as gerações do universo, pois depende da faculdade de ver e o caminho que leva do ouvido ao senso comum não é o mesmo que o do olho.21

Ainda, no Tratado de Pintura, Leonardo da Vinci compara as duas formas artísticas, comentando a frase atribuída a Simónides de Ceos:

Se chamas à pintura poesia muda, o pintor poderá dizer que a poesia é pintura cega.

E diz-me: qual das deformidades produz mais danos: a cegueira ou a mudez? Se o poeta é tão livre na sua invenção quanto o é o pintor, as suas ficções dão-nos tão grande satisfação quanto as do pintor, pois a poesia consegue descrever com as suas palavras formas, factos e lugares e o pintor é capaz de fingir as exactas imagens dessas mesmas formas.22

19 LESSING, Gottold Ephraim – Laocoonte ou sobre os Limites da Pintura e da Poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998.

20 O Tratado da Pintura reúne os textos de reflexão teórica de Leonardo escritos entre 1490-1517, reunidos e divulgados por um seu discípulo após a sua morte. A sua primeira impressão veio a fazer-se, mais tarde, em 1651.

21 La más útil de las ciencias será aquella cuyo fruto sea más comunicable y, por el contrario, la menos útil será la menos comunicable. El fin de la pintura es comunicable a todas las generaciones del universo, pues depende de la facultad de ver y el camino que lleva del oído al sendo común no es el mismo que el del ojo. in da VINCI, Leonardo - Tratado de Pintura. Madrid: Akal, 2004. ISBN

84-460-2264-8. 5ª ed. p.37.

22 Si tu llamas a la pintura poesía muda o pintor podrá decir que la poesía es pintura ciega.

Y ahora dime: que deformidad es más dañosa : la ceguera o la mudez? Si tan libre es el poeta en su invención cual lo es el pintor, sus ficciones nos dan tan grande satisfacción a los hombres cual da las del pintor, pues si la poesía consigue describir con sus palabras formas, hechos e lugares, el pintor es capaz de fingir las exactas imágenes de esas mismas formas. da VINCI, Leonardo - Tratado de Pintura.

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Parece claro que os argumentos usados pelo pintor estão marcados por um sentido de época. Mas, não deixa de ser curioso verificar que na sua base encontramos, ainda, os conceitos aristotélicos (mimesis e universalidade) esgrimidos, agora, de outro modo e atingindo outro fim: diferenciar e hierarquizar as diferentes formas de arte, colocando no topo a pintura.

Com efeito, na Renascença, a pintura saída da posição subalterna que manteve durante a Idade Média, autonomiza-se, torna-se uma arte maior, contribuindo para o desenvolvimento das disciplinas que a ela se associam (geometria, perspectiva, anatomia), munida de técnicas de representação novas, de uma eficácia reconhecida (nomeadamente a perspectiva linear, o chiaro/oscuro, o sfumato …) que a tornam não só capaz de imitar mas de fingir, ou seja, construir uma realidade fictícia sobre a realidade existente.

Para além disso, a pintura, porque usa, o que Leonardo considera ser, o mais nobre dos sentidos — a visão23 — adquire o estatuto de natural e de universal: 24 partindo do princípio de que todos vemos de igual forma, de que a descodificação da imagem é universal, a pintura situar-se-ia para além do obstáculo das línguas. O representado seria universalmente reconhecido, sem necessidade de traduções ou explicações: bastaria cotejá-lo com o real.

Dos pressupostos anteriores, Leonardo deduz um terceiro, o de que a pintura seria o género em que a comunicação se mostrava mais eficaz. Introduz, assim, uma das questões que artistas e teóricos da arte vêm debatendo ao longo dos tempos e que assume novos contornos nos nossos dias: a diferença entre a arte como mensagem e a

arte portadora de mensagem.

23 Habiendo concluido que la poesía es para los ciegos supremo grado de conocimiento y que la pintura

lo es para los sordos, diremos que tanto más prevalece la pintura sobre la poesía, cuanto que la pintura sirve a un mayor y más noble sentido. […] puesto que pareció preferible perder el oído, o olfato e o tacto, a perder o sentido da vista; que quien pierde la vista, se priva de la visión y belleza del universo […] da VINCI, Leonardo - Tratado de Pintura. p.65.

24 Mientras la pintura comprende en sí todas las formas de la naturaleza, vosotros, los poetas, no tenéis

sino sus nombres, que no son universales como aquellas formas. da VINCI, Leonardo - Tratado de Pintura. p.52.

Ou, ainda, La pintura sirve a un más digno sentido que la poesía y representa con mayor verdad las obras de la naturaleza que el poeta. Son más dignas las obras de la naturaleza que las palabras, las cuales son obras del hombre, pues tal desproporción existe entre las obras del hombre y las de la naturaleza, cual entre Dios e el hombre. da VINCI, Leonardo - Tratado de Pintura. p.50.

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No seu Ensaio dos Limites da Pintura e da Poesia, Lessing retoma, como já se referiu, o ponto de vista de Leonardo da Vinci sobre a separação das artes. No entanto, os conceitos em que apoia a sua teoria são completamente diversos: natural e

universal, vão ser substituídos por tempo e espaço.

Partindo da descrição que Virgílio faz do grupo escultórico helenístico Laocoonte, Lessing analisa as diferenças entre o tratamento escultórico e o poético, afastando a tese humanista de Winckelmann que as justifica como sendo o reflexo da diferença dos temperamentos grego e romano. Antes as interpreta, como consequência das diferentes condições e limites próprios da pintura e da poesia, no âmbito daquilo a que chama

limitação expressiva. Será esta que permite, portanto, definir universos artísticos distintos,

os quais, na sua opinião, só se têm considerado únicos devido à semelhança do efeito que produzem no espectador, o efeito estético.25 Por isso, Lessing questiona a equivalência deduzida da máxima de Simónides26 considerando, fiel ao pensamento aristotélico,27 que pintura e poesia têm meios de expressão e objectos diferentes: enquanto a pintura (artes visuais) usa elementos distribuídos ou justapostos num espaço, a poesia (literatura) usa elementos em sucessão temporal. Daí, deduzir o carácter espacial da primeira e o temporal da segunda.

A partir de tais pressupostos define como matéria da pintura a representação de objectos e da poesia a representação de acções.28 A pintura representaria

25 Lessing usa, sem a identificar, uma frase, do Tratado de Pintura (1435) de L. B. Alberti: [tanto pintura como poesia] nos apresentam coisas ausentes como se fossem presentes, mostram a aparência como

se fosse realidade; ambas enganam e o seu engano agrada-nos.

26 A poesia é pintura cega e a pintura é poesia muda.

27 A epopeia e a tragédia, bem como a comédia e a poesia ditirâmbica e ainda a maior parte da música

de flauta e cítara são todas, vistas em conjunto, imitações. Diferem entre si em três aspectos: ou porque imitam por meios diversos ou objectos diferentes ou de outro modo e não do mesmo. ARISTÓTELES- Poética, 1447a: p.37

28 If the artist can never make use of more than a single moment in ever-changing nature, and if the

painter in particular can use this moment only with reference to a single vantage point, while the works of both painter and sculptor are created not merely to be given a glance but to be contemplated — contemplated repeatedly and at length — then it is evident that this single moment and the point from which it is viewed cannot be chosen with too great a regard for its effect. LESSING,

Gottold Ephraim; MCCORMICK, Edward Allen (Ed. Trans.) - Laocoonte. Locoon. An Essay on the

Limits of Painting and Poetry. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1962. p.19.

There is nothing to compel the poet to compress his picture into a single moment. He may, if he so chooses, take up each action at its origin and pursue it though all possible variations to its end. Each variation which would cost the artist a separate work costs the poet but a single pen stoke; and if the results of the pen stoke, viewed by itself, should offend the hearer’s imagination, it was either anticipated by what has preceded or is so softened and compensated by what follows that is loses its individual impression and in combination achieves the best effect in the world. ib. p. 23.

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preferencialmente corpos em sobreposição, suspensos num tempo único e apresentados segundo um único ponto de vista e a poesia expressaria objectos sucessivos.

Lessing conclui, ainda, que os elementos da poesia apenas existem em combinação uns com os outros, uma vez que individualmente não têm efeito sobre o leitor e tira então a conclusão de que a unidade linguística não tem, por si só,

significado, ou pelo menos não tem sentido emocional já que, apenas num contexto

sintáctico o adquire (uma noção por certo mais verdadeira no que se refere a preposições do que no que se refere a substantivos, por exemplo).

O mesmo se verificaria na pintura: se se reduzisse uma pintura aos seus elementos constituintes, digamos, se pintássemos um objecto isolado, ou de forma mais pertinente, com uma simples pincelada, estes elementos também dificilmente teriam qualquer significado. Assim, na realidade, tanto a pintura como a poesia dependeriam das conexões sintácticas (para usar um termo dos estudos linguísticos) para criar significados complexos para o leitor/observador.

Ou seja, quando Lessing analisa a obra do ponto de vista do receptor minimiza a distinção que tinha estabelecido entre os dois tipos de expressão.

A obra de arte pictórica, tal como Lessing a vê, foi criada para representar uma realidade espacial, uma vez que ela não pode expressar tempo.

Por seu lado, a obra de poesia ou prosa, criada para funcionar no tempo, na realidade, pode ser decomposta pelo ouvinte em pequenas unidades atemporais, quase espaciais.

As observações de Lessing por certo alargam grandemente as possíveis modalidades de discurso sobre a poesia/pintura, mas fica inerente aos seus argumentos a presunção de que, como acontecia com Leonardo e Platão, estes mostram tanto a separação das artes como a sua interconexão.

Lessing tornou-se um autor de referência, recorrentemente citado, quando se trata de analisar as diferenças e especificidades dos géneros artísticos.

No entanto, para o século XX, pensar no domínio dos sinais estéticos dividido entre poesia e pintura soa um pouco estranho. Com efeito, desde o fim do século XVIII, a cultura ocidental foi testemunha de uma forte corrente de inovações nas artes, media e comunicação que dificultam a definição de uma linha separadora. Numa cultura que

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viu tudo, desde o eidophusikon29 ao espectáculo do laser, rodeada pela fotografia, filmes, televisão e computadores providos de gráficos, jogos, processadores de texto, armazenamento de informação, computação e design em geral, não é de admirar que a polaridade da pintura versus poesia pareça obsoleta. Talvez seja preferível usar termos mais neutros como texto versus imagem, ou entender-se pintura e poesia como tal, abrangendo todos os sinais artísticos, desde que sirvam como sinédoques para a extensão completa de significações no tempo e no espaço.

29 Eidophusikon (Greek: ‘image of nature’). An entertainment invented by P. J. de Loutherbourg in which

spectacular scenic effects were created on a small-scale stage set. Loutherbourg first exhibited his invention in London in 1781 with immediate popular success (more than 100 paying spectators could be seated in the room in which it was displayed). The stage area in which the spectacle was performed was roughly 2 m wide, 1 m high, and 3 m deep (6 ft × 3 ft × 9 ft), and the effects were produced by means of lights, gauzes, coloured glass, and smoke; musical accompaniment was provided by a harpsichord. Among the scenes presented were views of London and other cities, a storm at sea (ships, figures, and the like were moved by a system of rods and pulleys), and ‘Satan arraying his Troops on the Banks of the Fiery Lake, with the Raising of the Palace of Pandemonium; from Milton’. Gainsborough and Reynolds were among the artists who were impressed by the Eidophusikon. Loutherbourg ran it for several seasons, then sold it to an assistant, who took it on a provincial tour. "Eidophusikon." CHILVERS, Ian (Edit.) - The Oxford Dictionary of Art. Oxford:

University Press, 2004. in eNOTES.com – Arts. Oxford: eNotes.com, act. 2006. [consult. Jul. 2006] Disponível na Internet <URL http://www.enotes.com/oxford-art-encyclopedia/

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2.1. A ABORDAGEM SEMIÓTICA

A reflexão sobre a palavra e a imagem que tem vindo a ser feita, no âmbito da Filosofia, da Estética ou da História da Arte encontra um outro domínio do conhecimento, delas distinto. Referimo-nos à semiótica,30 a qual, dado o seu objecto intrínseco, se vai constituir como um método de análise de primordial importância para este estudo, na medida em que se mostra apropriada para lidar tanto com textos como com imagens e, desta forma, certamente lidar com as formas híbridas texto/imagem como as que aqui consideramos.

Apesar da semiótica ser ainda uma ciência muito jovem, a reflexão sobre o signo e a significação é tão antiga quanto o pensamento filosófico, como anuncia o anterior

30 Optámos pelo termo semiótica, dado que, em 1969, os mentores da International Association of Semiotics Studies (entre eles Barthes, Benveniste, Greimas, Jakobson, Lévi-Strauss e Sebeok) decidiram adoptar o termo Semiotics como aquele que a partir daí englobaria a totalidade das áreas de pesquisa sobre os diferentes sistemas de significação e seus respectivos elementos, quer as tradicionalmente afectas à semiologia, quer as afectas à semiótica geral. Esta decisão foi aceite a nível internacional e tem sido seguida, desde então.

Sabemos, no entanto, que a diferenciação entre semiologia e semiótica foi frequentemente esgrimida em termos teóricos e que era comum a associação do termo Semiótica à tradição filosófica da teoria dos signos, iniciada com Peirce, e a associação do termo Semiologia a uma escola francófona, fortemente marcada por F. de Saussure e pelas suas concepções de psicologia social, na qual todas as disciplinas da Linguística beberam uma metalinguagem específica que viria a dominar as análises da linguagem verbal, enquanto sistema de signos, mas também as de outros sistemas comunicativos. No actual panorama, em que a maioria das mensagens (enquanto objectos/textos comunicativos oferecidos à interpretação) agregam mais do que um sistema comunicativo, partilhamos a opinião de que não faz mais sentido discutir se a semiótica engloba a linguística (e a linguagem verbal é apenas um dos muitos sistemas semióticos) ou se a análise linguística é a matriz para todas as análises dos restantes sistemas semióticos (e estes reportar-se-ão apenas a sistemas não-linguísticos), mas antes perceber que, apesar de registar ocorrências dominantes nas interacções humanas, o sistema linguístico não sobrevive mais a análises estritamente linguísticas, dadas as possibilidades multimodais de configurações de mensagens e que a metalinguagem da análise linguística, dada a sua coesão e coerência estrutural, é útil a todos os outros sistemas, ainda que coadjuvada pontualmente por metalinguagens específicas.

O que se nos afigura como verdadeiramente importante é ser capaz de, partindo da noção de “elemento que significa”, encontrar diferenças e semelhanças que possam sinergeticamente ser produtoras de um discurso analítico sobre as representações naturais ou artificiais do real e ou dos mundos ficcionais. Para tal, jamais poderemos esquecer que faz parte da história do termo semiótica, como refere Nöth, o ramo da medicina que estuda os sintomas — desde Galen de Pergamun (138-199) o qual se refere a todos os processos de diagnóstico como processos de semióse — assim como todas as derivações lexicais para semântica, semantologia, semasiologia e que cada um dos elementos que significa, seja ícone, símbolo, sinal, signo, índice ou alegoria, evidencia certas particularidades para cada um dos seus relata e para as formas arbitrárias ou não-arbitrárias como estes se relacionam entre si em função dos diferentes textos e contextos onde ocorrem. Por isso mesmo, é a forma de plural semiotics (que infelizmente não faria sentido em português), mais do que semiotic, aquela que se usa, hoje em dia, em língua inglesa, de modo a que a designação da ciência dê conta da pluralidade de objectos de estudo que abarca. in NÖTH, Winfried - Handbook of Semiotics.

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capítulo. Com efeito, se seguirmos a análise de John Deely31 na obra Introdução à Semiótica, acompanharemos o interesse pelos signos desde as escolas gregas e latinas, especialmente no seio dos lógicos, passando pela escolástica medieval, com Santo Agostinho e com a contribuição mais tardia de William de Ockham, o Tratado dos

Signos de João de São Tomás que, embora tenha vivido em pleno século XVII, se pode

considerar, ainda, um medieval no estilo, espírito e convicções, encerrando pois o debate sobre o signo tal como foi conduzido pela escolástica. O interesse pelo signo passa depois por Descartes e John Locke (1632-1704), o qual define, no seu Ensaio

Sobre o Entendimento Humano,32aSemiótica ou Lógica, entendida como doutrina dos

sinais, sendo os principais de entre eles as palavras. O tema da Semiótica, para Locke, serão os sinais de que o homem faz uso para compreender as coisas ou comunicá-las. Ou seja, o intelecto não conhece nem opera com as coisas elas próprias, mas somente com a sua representação que ocorre por meio de sinais – a semiótica lockiana encerra a dupla vertente gnoseológica / de significação e comunicacional.

Foi preciso esperar por Humboldt,33 Peirce e Saussure para uma refundação do âmbito académico da semiótica que é aquele onde entroncam as investigações contemporâneas sobre o tema aqui em debate.

Durante o século XIX Charles Sanders Peirce formulou um sistema ternário de categorização para os diferentes tipos de signos. Embora a estrutura da sua teoria prove ser extremamente complexa, o mais importante permanece a distinção entre os três tipos de signos: ícone, símbolo e índice. Sucintamente poderemos dizer que, para Peirce o signos poderão ser caracterizados como:

Ícone — quando um signo se associa ao Objecto que ele denota meramente em

virtude das características que este possui, independentemente do Objecto realmente existir ou não.

Índice — quando um signo se associa ao Objecto que ele denota em virtude de

ser realmente afectado por esse Objecto.

31 "The Relation of Logic to Semiotics" no âmbito do primeiro Summer Institute for Semiotic and Structural Studies, realizado no Victoria College da Universidade de Toronto, Junho, 1980. Edição portuguesa do texto FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN - Introdução à semiótica — história e

doutrina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Serviço de educação, 1995.

32 LOCKE, John - Ensaio Sobre o Entendimento Humano. Livro I e II, Livro III e IV. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1999. ISBN 978-972-31-0856-9.

33 Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand, Barão von Humboldt (n.22 de junho de 1767, Potsdam – f. 8 de abril de 1835, Berlim)

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Símbolo — quando um signo se associa ao Objecto que ele denota em virtude de

uma lei, geralmente uma associação de ideias gerais, que opera de forma a provocar uma interpretação do Signo que o remete para o Objecto

O símbolo está sempre implicitamente ligado a qualquer coisa, nomeadamente ao objecto ou à coisa a que o signo se refere. Um ícone é “igual” ao objecto, embora esta correlação seja notoriamente vaga.

Nos Collected Papers,34 Peirce identifica certos tipos de ícones, entre os quais as pinturas, diagramas e fórmulas algébricas.35 Então, as imagens são ícones na terminologia de Peirce, da mesma forma que o são os números, embora a relação entre uma imagem e o seu referente seja claramente diferente da do número com aquilo “que ele representa”.

A designação das imagens como ícones tem sido tomada como certa, embora a obra de Mitchell tenha identificado esta hegemonia do ícone como deficiente (ou deficitária).

Um índice, na terminologia de Peirce, tem uma relação física com o objecto. Ele afirma que as fotografias são índices porque elas foram produzidas sob tais

circunstâncias que eram fisicamente forçadas a corresponder ponto por ponto à

natureza.36 Se a fotografia é realmente mais natural do que uma pintura ou se a sua

composição é arranjada a fim de estimular uma dada resposta por parte do observador é questionável.

A teoria tripartida de Peirce, o primeiro dos modernos semióticos, tem a vantagem de caracterizar tanto palavras como imagens. O que do trabalho de Peirce emerge é a necessidade de criar uma estrutura que seja ela própria fragmentada para discutir o signo.

Ferdinand de Saussure é aceite como sendo quem estabeleceu os fundamentos da linguística moderna, uma vez que os seus escritos se centram quase exclusivamente nos signos linguísticos. Nascido numa família de cientistas, aplicou a metodologia científica ao estudo da linguagem. O Cours de Linguistique Générale37 é uma

34 PEIRCE, Charles Sanders - Collected Papers. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1932. Vol,2.

35 Ibid. p.158. 36 Ibid.. p.159.

37 SAUSSURE, Ferdinand de - Cours de Linguistique Générale. Paris: Editions Payot et Rivages, 1985. ISBN 9782228500708.

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compilação dos cursos dados por ele na Universidade de Genebra e transcritos pelos seus alunos.

Saussure concebeu o signo como sendo composto por construtos mentais inseparáveis: o significado e o significante. O significado (conceito) corresponderia a uma imagem mental conceptual e o significante, a uma imagem mental acústica. A relação entre estes dois relata seria arbitrária, imotivada e convencional (mais tarde definir-se-á que o que é arbitrário, imotivado e convencional é a relação entre o referente e o signo linguístico na sua totalidade de significante e significado).

A linguagem verbal oral é um sistema de signos expressando uma ideia e por isso pode ser comparável à escrita, à linguagem dos surdos mudos, aos ritos simbólicos, às fórmulas de cortesia, aos sinais militares, etc., etc., a relação entre os dois relata em cada um dos elementos significativos nestes outros sistemas é que pode ser diferente. A linguagem verbal oral é apenas o mais importante destes sistemas.38

O estudo da semiologia que Saussure advogava seria um estudo que hoje convocaria noções de sociolinguística, pois interessava-lhe saber como é que os signos funcionam num particular contexto social. O facto de Saussure ser apenas uma geração mais velho do que os futuristas, torna a sua teoria particularmente cativante para o estudo das vanguardas. Paradigmático é o exemplo de Magritte que, durante uma parte da carreira, explorou, nas suas obras, o signo especificamente nos termos de Saussure.

A representação visual da natureza do signo usado por Saussure exclui a possibilidade de categorias intermédias de signos como naqueles em que a relação do significado e do significante não é em absoluto arbitrária. O traço que separa os dois termos (significado e significante) parece ser de facto uma barreira à interpenetração.

Significado ———————————

Significante

O próprio Saussure não concordava com o facto de que as palavras onomatopaicas não pudessem ser arbitrárias e questionou a validade de uma eventual objecção à existência de uma relação arbitrária entre significado e significante nas

38 Ibid. p.33.

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verbal/visual texto/imagem

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onomatopeias.39 Refutou esta questão afirmando que as onomatopaicas nunca são um elemento orgânico do sistema linguístico. Mais ainda, elas são relativamente raras e não reproduzem o som real, apenas se aproximam dele, o que ele provou constatando que uma palavra onomatopaica para o mesmo som, difere de uma linguagem para outra. Finalmente, uma vez que uma onomatopaica esteja codificada na linguagem, fica sujeita às regras da morfologia como as outras palavras, tornando-as tão arbitrária quanto qualquer outro signo linguístico. Com isto, Saussure provou que as palavras onomatopaicas são signos linguísticos em si mesmos. Todos os signos que descrevem um referente diferem de linguagem para linguagem; estão sujeitos a formulações fonológicas e morfológicas. Embora as palavras onomatopaicas exibam as mesmas características dos outros signos linguísticos, a relação ontológica entre o signo e o referente é clara e as palavras onomatopaicas podem ser imitações da tradução poética de um som real.40

Contrariamente a Platão , Leonardo e Lessing, que avaliavam as artes umas em oposição às outras, mas juntando pintura e literatura, por exemplo, os sistemas de significado propostos pelos semióticos, tentaram chegar às raízes da distinção entre sistemas e por fim verificaram que o sistema se desmoronou. A fenda tornou-se visível.

A descrição do signo proposta por Peirce e Saussure implica a noção de contexto uma vez que ambas relacionam o signo linguístico com um objecto ou um referente. Vários membros da Escola de Praga, incluindo talvez o seu mais famoso membro, Roman Jakobson, explicitamente descrevem a linguagem como uma interacção entre diferentes membros de uma comunidade linguística através de um meio particular e por isso deslocam-se do estudo de signos isolados para o do sistemas de signos. Jakobson centra-se na poesia e os seus modelos mais produtivos brotam da sua análise desta forma literária altamente motivadora.

Embora Jakobson não negue a utilidade dos modelos quer de Saussure quer de Peirce para o signo, ele deseja expandir o âmbito da análise linguística para o texto e usa os modelos anteriores como base para a construção destas teorias.

De facto, certas questões de gramática fazem parte de uma componente da linguagem, o do sintagma, que a análise do signo de Saussure não desenvolvia.

39 SAUSSURE, Ferdinand de - Cours de Linguistique Générale. p.101.

40 A representação de sons, nas telas futuristas, por exemplo, não nos afastam, nesta perspectiva, da relação entre imagem e palavra.

Imagem

figura  1:  Exemplos  da  orientação  da  escrita,  Templo de Hórus. Edfu.
Fig. 1: Relevo, Templo  de Karnak

Referências

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