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COBRA E A NOVA FIGURAÇÃO

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 180-183)

C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.8. A S PALAVRAS DO PÓS GUERRA

5.8.2. COBRA E A NOVA FIGURAÇÃO

O grupo Cobra partilhava este interesse pelas imagens e a escrita, nascidas não de fontes intelectuais complexas mas de pulsões primárias viscerais. Os desenhos de crianças, em particular, suscitam a admiração dos artistas pela sua ausência de inibições e a sua expressividade instintiva. Para os Cobra era fundamental que a arte se relacionasse com a experiência física, tornando-se a expressão um fim em si próprio.

Depois da Guerra, o corpo tornou-se um dos principais centros de interesse tanto da teoria como da prática artística, como dá disso, ainda, testemunho a filosofia existencialista da época. O filósofo Maurice Merleau-Ponty, próximo de Sartre, fazia notar em 1961:

Não vemos como é que um Espírito poderia pintar.

acrescentando:

Em pintura, é emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor muda o mundo. Para compreender estas transubstanciações, é necessário encontrar o corpo operante e actual, aquele que não é um pedaço de espaço, um feixe de funções, que é um entrelaçado de visão e de movimento.321

Por isso, em 1950, o pintor Cobra, Pierre Alechinsky ligou o acto da escrita, em

Exercícios de Escrita, não à comunicação verbal mas à dos movimentos corporais, da

mesma forma que Michaux e Masson o haviam feito antes da Guerra. Para Alechinsky e outros artistas Cobra, as lições retiradas do automatismo surrealista pareciam mostrar que o acto da escrita não estava necessariamente ligado à visualização do mecanismo da palavra nem a um qualquer código linguístico, mas que se tratava de uma espécie de registo gráfico libertador.

5.8.3. GESTUALISMOS

O acto da escrita foi deste então muitas vezes apercebido como uma manifestação espacial e já não como a delimitação de um espaço linguístico. Esta concepção foi encorajada não só pelas obras de Masson e Michaux mas também pela arte oriental. De facto, as ligações entre os artistas orientais e ocidentais aproximaram-

321 C’est en prêtant son corps au monde que le peintre change le monde en peinture. Pour comprendre ces transsubstantiations, il faut retrouver le corps opérant et actuel, celui qui n’est pas un morceau d’espace, un faisceau de fonctions, qui est un entrelacs de vision et de mouvement. MERLEAU- PONTY, M. - L’oeil et l’esprit. Art de France. Paris: [s.n.]. nº1 (Janeiro 1961). p.188. Ibid. p.105.

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se neste período. Estes artistas interessavam-se mais pela qualidade do gesto que o produzia do que pela natureza do signo ideográfico oriental.

Alechinsky, correspondia-se com o calígrafo japonês Morita Shiryu. Pelo meio dos anos 1950, foi mesmo ao Japão para estudar a caligrafia zen. Asger Jorn escreveu que se dava valor à caligrafia chinesa,

[não] porque ela impusesse à escrita manuscrita um certo estilo, mas porque esta, tal como ela [era]

concebida pelos Chineses, adquiria um poder de expressão.

Para Alechinsky, a principal lição a reter do ensinamento dos mestres orientais com os quais ele tinha estudado era o seguinte:

Não escrevas com a mão, não escrevas com o braço, escreve com o teu coração.322

O modelo da caligrafia gestual oriental sugeriu a vários artistas ocidentais a ideia de que a marca do gesto corporal podia ser um fim em si mesmo.

5.8.4. TACHISME

Por isso o tachisme, baseou a pintura no informal e a ausência de estrutura da mancha pictórica. Ao contrário dos Cobra — que permaneceram agarrados a uma forma de expressionismo figurativo —, os pintores tachistes estavam prontos a renunciar à imagem e ao signo legível a fim de deixar a mancha espontânea adquirir toda a sua amplitude. Neste contexto, a obra de Henri Michaux fez a transição entre o automatismo da vanguarda e as novas ambições artísticas.

O artista comenta assim a sua decisão, tomada no final dos anos 1940, de renunciar à criação de signos ideográficos — na qual ele tinha , contudo, trabalhado desde os anos 1920:

Pressionavam-me a retomar as minhas composições de ideogramas […] Tentei de novo, mas progressivamente as formas ‘em movimento’ eliminaram as formas pensadas, os caracteres de composição. Porquê? Agradava-me mais fazê-las. Os seus movimentos tornavam-se o meu movimento […] Eu invadia o meu corpo.323

322 parce qu’elle impos[ait] à l’écriture manuscrite un certain style, mais parce que celle-ci, telle qu’elle

[était] conçue par les Chinois, acqu[érait] un pouvoir d’expression”. Para Alechinsky, a principal lição a reter do ensinamento dos mestres orientais com os quais ele tinha estudado era o seguinte: “N’écris pas avec ta main, n’écris pas avec ton bras, écris avec ton cœur. JORN, A. - De profetiske harper. Helhesten,. Amsterdam: [s.n], vol. II. 1944. cit. WESTGEEST, H. - Zen in the Fifties: Interactions between East and West. Amsterdam: [s.n], 1996. Ibid.

323 L’on me poussait à reprendre mes compositions d’idéogrammes […] J’essayai à nouveau, mais progressivement les formes ‘en mouvement’ éliminèrent les formes pensées, les caractères de composition. Pourquoi ? Elles me plaisaient plus à faire. Leur mouvement devenait mon mouvement

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O acento posto no dinamismo e o gesto à custa do signo teve como efeito apagar a distinção entre a escrita e o desenho ou a pintura.

Se Michaux pintava marcas que conservavam ainda uma ligação com a escrita linguística (as suas pequenas dimensões, a horizontalidade e a linearidade persistiam), outros artistas — como em França Georges Mathieu, Jean Degottex e Pierre Soulages, ou na Alemanha Hans Hartung — afirmavam que o acto de pintar visava deixar um testemunho, uma forma o mais expressiva possível, das múltiplas passagens do pincel sobre a tela; para eles, a pintura era uma forma de marcação performativa conservando a marca da energia corporal investida e desligando o gesto de todo o contexto linguístico. As suas obras sugeriam que o signo identificável — linguístico ou ideográfico — devia ser destruído para que o acto pictórico possa ser verdadeiramente espontâneo e autêntico. O artista visava principalmente a rapidez da execução e a ausência de premeditação e a caligrafia oriental dava-lhes um exemplo de acção gestual livre e resoluta.

Caligrafia e graffiti confundem-se na obra de Antoni Tàpies, que mistura pó de mármore à sua pintura a óleo com o fim de evocar a superfície erodida das velhas paredes de Barcelona. As marcas pictóricas que dinamizam as superfícies das suas obras (p.ex. Gris aux traits noirs nº XXXIII – 1955) podem ser entendidas como uma forma rudimentar de ideograma mas essas marcas negras rápidas e, no fundo ilegíveis, funcionam por um lado como um índice assinalando uma presença humana, tornada entretanto ausência e por outro, como um signo potencialmente subversivo.

A alusão aos graffitis era, para Tàpies, uma forma de ligar a sua obra a fontes primitivas:

Se os graffitis nos tocam é porque eles ecoam em nós a necessidade de estarmos ligados à harmonia da ordem cósmica, aos ciclos naturais já desaparecidos.324

No contexto da Espanha franquista, esta marca exprimia ao mesmo tempo uma forma de resistência à opressão política, uma vez que evocava, de forma discreta, a natureza clandestina dos protestos de rua. Aqui, a analogia entre o quadro e a parede

[…] J’envahissais mon corps. MICHAUX, Henri - Mouvements (1951). Paris: Gallimard, 1982. s/ nº de página.

324 Si nous sommes touchés par les graffitis, fit-il remarquer ultérieurement, c’est parce qu’ils font écho en

nous à la nécessité d’être en lien avec l’harmonie de l’ordre cosmique , avec des cycles naturels aujourd’hui disparus. AUGUSTI, A. - Antoni Tàpies: The Complete Works. Barcelona / NY: Poligrafa,

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tem como efeito fazer da arte um acto de desafio. A indeterminação do signo cria todo um leque de referências cujo sentido, embora obscuro, faz a introdução a uma realidade profunda e essencial.

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