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E GIPTO : A ESCRITA HIEROGLÍFICA

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 80-87)

CAPÍTULO 4 | QUANDO A PALAVRA É IMAGEM

4.2. E GIPTO : A ESCRITA HIEROGLÍFICA

A escrita egípcia, ao contrário de todas as suas vizinhas, mantém signos

motivados até ao seu desaparecimento, imposto pelo imperador romano Teodósio que,

no édito de 392, interdita os cultos pagãos, proclamando o triunfo do cristianismo. Como consequência foram fechados, no Egipto, os templos dedicados às divindades faraónicas, últimos locais onde se divulgava esta escrita.

A primeira evidência, quando nos deparamos com os hieróglifos, é a de que estamos perante uma escrita completamente figurativa: praticamente em todos os seus caracteres se podem distinguir imagens absolutamente identificáveis.

Com efeito, os hieróglifos representam preferencialmente os elementos da cultura faraónica — o homem em diversas posições, partes do corpo (mãos, braços, pernas, etc.); animais de todas as espécies com alguma relevância para os da fauna africana de então (crocodilo, hipopótamo, leão, leopardo) e também partes de animais; a flora; o céu e elementos da paisagem; construções e elementos arquitectónicos; inúmeros objectos de culto; objectos profanos. Os signos ‘abstractos’ são em número muito reduzido.

Esta imediata identificação torna a escrita egípcia especialmente atractiva, mas, também, muito enigmática. Ela estará na base da dificuldade da sua decifração, a qual, como sabemos, ocupou curiosos e especialistas durante séculos.

Com efeito, o reconhecimento das figuras é enganador: não estamos perante uma escrita totalmente ideográfica ou logográfica.102 Pelo contrário as imagens tanto podem significar o que realmente representam, o que acontece na maior parte dos casos (a imagem de um touro, p. ex., significa “touro”), e portanto, ser logográfica, como podem estabelecer com a realidade relações metafóricas ou metonímicas, das quais deriva o sentido (a representação de uma vaca a amamentar o vitelo para “ocupar-se de”, ou uma vela de barco insuflada para “vento”) tornando-se ideográficas. Podem ainda derivar de associações de signos (um vaso jorrando água poisado na cabeça de um homem acocorado significa “ser puro”).

102 Não se pretende, de forma alguma, proceder a um levantamento exaustivo de todas as situações da diferenciação do uso dos caracteres egípcios, muito menos se pretende proceder ao seu estudo aprofundado. Este trabalho não comporta espaço para tal, nem tem essa intenção: procura-se, simplesmente, compreender como o sistema usa e integra a imagem, mobilizando a possibilidade de denotação e a conotação dos símbolos que utiliza.

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Porém, a característica mais surpreendente é a de que muitos dos hieróglifos são fonogramas, ou seja, indicam sons, o que torna a escrita egípcia numa escrita mista. Fazem-no segundo um processo a que Pascal Vernus chama le principe du rébus à

transfert103 o qual o autor compara à ‘brincadeira’ a que recorrem com alguma

facilidade os anglo saxónicos quando usam o “2” para significar “também”, “4” para “para” (“two” por “to”; “four” por “for”), ou seja, esquecem o significado original em benefício do significante. Este processo, que é recorrente na decifração dos criptogramas,104 é usado no Egipto apenas para marcar, preferencialmente, consoantes ou semi-consoantes (v e w). Por exemplo, os sons w+n são representados pelo fonograma da “lebre”, que não significa, portanto esse animal, mas as duas consoantes do seu nome egípcio.

Para além destas situações também se usavam, determinativos. Símbolos desprovidos de som que se colocavam no fim das palavras escritas com fonogramas ou ideogramas para indicar a sua classe semântica: são classificadores. É o caso da marca do feminino, por exemplo.

São igualmente demarcativos, pois ajudavam, também, a distinguir as palavras, já que a escrita egípcia não tinha marcas para as separar, bem como não as tinha para definir o fim das frases. Eram, ainda, importantes para ajudar a distinguir palavras registadas com as mesmas consoantes, distinguindo o universo semântico a que pertenciam, respectivamente.

Podiam, ainda, trazer para a escrita um suplemento de sentido: especificando um valor semântico ausente da designação linguística, por exemplo, juntando ao nome de um objecto o determinativo do material com que é feito, sem que tal especificação tenha materialidade fónica.105

103 VERNUS, Pascal - ‘‘Les Écritures de l’Egypte Ancienne’’. in CHRISTIN, Anne-Marie (direc.) - Histoire

de l’écriture: de l’Idéogramme au Multimédia. p. 54.

104 (do grego Kryptós, oculto, e graphein, escrever). Conjunto de técnicas que permitem proteger uma comunicação por meio de um código gráfico secreto. LAROUSSE - Nova Enciclopédia Larousse. Lisboa: Círculo de Leitores e Larousse, 1997. ISBN 972-42-1476-1 (obra completa). Vol. 7. ISBN 972-42-1588-1 (vol.VII). p. 2085.

105 Devemos sublinhar, que o uso destes determinativos se faz, ainda, com recurso às regras da combinação visual, como sugere A.-M. Christin: Tout se passe en effet comme si les anciens Egyptiens

n’avaient pu admettre de transposer par écrit le phonétisme verbal qu’en utilisant la structure d’associations propre à l’expression graphique, ayant constaté — et vérifiant par leur recours au déterminatif […]. CHRISTIN, Anne-Marie - L’image Écrite ou la déraison graphique. p. 55.

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Os nomes comuns e próprios, são, normalmente representados pelo seu desenho (Horus, cara, touro), mas acabam por ser acompanhados pelos determinativos, que complementam, como vimos, a situação, função, etc., do que está representado. Estes podem acumular-se acrescentando informações múltiplas ao enunciado original.

Há situações em que a escrita se torna, ainda, silábica. É o caso do registo, por exemplo de palavras estrangeiras.

Atendendo a que não poderemos (nem o saberíamos fazer) analisar pormenorizadamente todas estas situações, resta-nos registar a complexidade deste tipo de escrita, a dificuldade do seu funcionamento como sistema e sublinhar a conclusão a que chega Vernus:106 os egípcios detinham todos os mecanismos conceptuais e conhecimentos para passar para uma escrita fonográfica, já que faziam a transposição silábica das palavras bem como sabiam decompor o material sonoro da língua nos seus elementos mínimos, como o demonstram os seus fonogramas alfabéticos. Dispunham, ainda, de escritas cursivas (hierático e demótico). No entanto não abandonaram, durante quase quatro milénios, a escrita hieroglífica.

As razões desta persistência mantém-se incertas. Muitos autores apelam para a forte tendência conservadora desta grande civilização agrária, outros para a necessidade da manutenção do poder ideológico que o seu hermetismo conferia a escribas, sacerdotes e faraós.

Pascal Vernus, no entanto, desenvolve outras hipóteses que valorizam o que parecem ser defeitos, desta escrita, mostrando-os como vantagens, pois, considera que

esses defeitos são uma contra partida de vantagens, noutros termos, o que ela perde

em comodidade de uso, ganha em capacidades específicas.107 Refere-se, sobretudo, às

suas capacidades expressivas, como veremos.

Com efeito, o forte carácter figurativo desta escrita permite-lhe representar visualmente um enunciado e conotá-lo oralmente.

Esta forma de ser texto e imagem, sendo texto porque é imagem, confere-lhe um grande valor expressivo, a que os seus escritores não eram indiferentes.

106 VERNUS, Pascal - ‘Les Écritures de l’Egypte Ancienne’. in CHRISTIN, Anne-Marie (direc.) - Histoire de

l’écriture: de l’Idéogramme au Multimédia. p. 58.

107 (…) ces défauts sont la contre partie d’avantages, en d’autres termes, que ce qu’elle perd en

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Com efeito, a escrita hieroglífica apresenta características compositivas que valorizam para a sua aplicação formal:

Começa por ser uma escrita calibrada. Os caracteres mantêm entre si uma relação que não é mimética, não respeita, pois, a escala real: a representação de um touro faz- se em igual tamanho à de um escaravelho, de uma coruja, ou de uma figura humana, por exemplo. Esta relação só será alterada nos jogos de escrita, que referiremos mais à frente.

É uma escrita modulada. Os caracteres organizam-se dentro de quadrados imaginários onde se agrupam os sinais e que regularizam linhas e colunas, ritmando e gerindo economicamente o espaço da escrita.

Inscrição do Templo de Hador Inscrição do Templo de

Dendra

Hathor, Dendra

Os exemplos108 mostram que se as imagens se dispusessem seguindo o critério da linearidade o espaço dispendido seria muito maior e a composição mais difícil de organizar.

Apresenta, ainda, plasticidade direccional: não se lê num sentido único, como acontece com todas as outras. Lê-se, em linha, tanto da esquerda para a direita como da direita para a esquerda, conforme a orientação dos hieróglifos. Se estes se voltarem para a direita (fig.1-a) a leitura far-se-á precisamente da direita para a esquerda, se estes estiverem virados para a esquerda indicam esse lado como orientador (fig.1-b). Podem também ler-se em coluna, de cima para baixo, da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, conforme a regra anterior (fig.1-c/d). Numa mesma composição (texto) as situações podem coexistir e fazem-no frequentemente (fig.2).

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a b c d

figura 1: Exemplos da orientação da escrita, Templo de Hórus. Edfu.

Um outro princípio geral, ainda ligado à direcção da leitura, aplica-se quando o texto serve de legenda a uma figura: este será sempre lido a partir da direcção do olhar da referida figura — se a personagem olha para a direita, o texto que a acompanha desenvolve-se da direita para a esquerda e vice-versa.

Estes princípios são geridos pelo artista/escritor com subtileza, criando esquemas gerais de simetria na composição, impossíveis de conseguir num tipo de escrita fonética.

É esse aproveitamento que se verifica nas imagens apresentadas: Aton e Osíris, de costas voltadas, ‘obrigam’ o texto a organizar-se simetricamente em direcção ao exterior da composição, como que gerido por uma força centrífuga, com origem no olhar das figuras principais da composição; pelo contrário, no relevo de Abu Simbel, as figuras afrontam-se, o mesmo acontecendo ao texto, fazendo-nos sentir uma espécie de atracção pelo centro.

Relevo de Hapy, Templo de Abu, Simbel c.1279-1213 a. C

Aton e Osíris, Fresco, túmulo Nefertari, c.1200- 1212 a.C., Vale das Rainhas, Deir el-Bahri.

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De notar, também, a ligação quase perversa entre imagem e texto: sendo o texto imagem e a imagem texto, estes relacionam-se numa ambiguidade para a qual é difícil, por vezes, estabelecer os limites.

Tal ambiguidade é explorada com frequência nas composições plásticas, por exemplo integrando ideogramas na acção descrita, de modo a que eles se constituam como parte da imagem, não deixando de ser texto.

É o caso de, por exemplo, da cena do Templo de Karnak,109 em que se representa o faraó Thoutemosis III oferecendo uma perna de boi pousada num vaso a Amon. Essa associação de elementos integra-se perfeitamente na retórica da imagem, mas não

deixa de ser um carácter da escrita: .

O faraó expõe simultaneamente a oferta e o conceito.

Fig. 1: Relevo, Templo de Karnak

Noutras situações é a figura que se afirma como escrita, como se alguns ideogramas ganhassem protagonismo, vendo a sua escala aumentada de tal forma que se tornam ilustração, sem deixarem de ser texto (fig.1).110

109 Imagem adaptada do exemplo apresentado por J. VERNUS, Ibid. p. 52. 110 Ibid. p. 62.

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fig.2: Uniu-se à eternidade

Uma outra forma de jogo é aquela a que Durand chama condensação icónica. Este consiste no rearranjo, não convencional, de signos, criando composições graficamente coerentes, que poderíamos considerar próximas da poesia visual do ocidente. No exemplo da fig.2,111 o epitáfio uniu-se à eternidade, normalmente escrito

, decompõe-se, criando uma imagem em que o templo é representado pela figura feminina, a qual integra, com um sentido visual lógico, os signos da escrita.

No Egipto faraónico, tudo o que é passível de representação visual pode tornar-se signo de escrita, e vice-versa.

111 Ibid. p. 60.

a palavra é imagem China: o ideograma

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