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A PALAVRA FUTURISTA

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 144-151)

C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.4. A PALAVRA FUTURISTA

O Futurismo foi o primeiro movimento moderno concebido e organizado, não por artistas plásticos, mas por um poeta, inaugurando uma prática que irá pontuar os desenvolvimentos artísticos do século XX.247

Os futuristas recuperam a ligação cubista à realidade quotidiana ampliando-a consideravelmente. Para os futuristas italianos, o caos urbano, as novas invenções tecnológicas e as últimas descobertas científicas, em suma, o progresso, eram, por excelência, os temas de uma arte verdadeiramente moderna.

Filippo Tommaso Marinetti, teoriza tal opção constatando que, se as grandes mudanças sociais se haviam reflectido em todos os domínios da vida do homem, não poderiam deixar de o fazer também em relação à arte. A actividade artística teria, então de rejeitar formas e ideias do passado e desenvolver linguagens consonantes com os novos tempos.

As repercussões destas mudanças far-se-iam sentir igualmente sobre a linguagem e Marinetti considerava, nos seus textos mais importantes, que era necessário criar um idioma emocional. Segundo ele, a imaginação devia ser regida por uma liberdade

absoluta das imagens ou analogias, e estas serem expressas por palavras desligadas,

sem fio condutor da sintaxe e sem qualquer pontuação.248 Defendia que a nova

linguagem poética devia banir não só a métrica tradicional mas também a versificação livre, inovação da poética simbolista, proclamando a necessidade das palavras-em-

liberdade:

Com as ‘palavras em liberdade […] teremos […]: metáforas condensadas, - imagens telegráficas. - acumulação de vibrações. – nós de pensamento. – leques de movimentos alternadamente abertos e fechados – analogias simplificadas. – balanços de cor - as dimensões, pesos, medida e velocidade, das sensações. - o mergulho da palavra essencial na água da sensibilidade sem os círculos concêntricos que a palavra produz. – os postes analíticos explicativos que apoiam os fios da intuição.249

247 [Trata-se de movimentos] que, tirando proveito da liberdade oferecida pela fragmentação da imagem

conceptual, passaram a desenvolver formas de arte determinadas pela imaginação ou pela fantasia. Foi uma característica desses movimentos que os poetas e os propagandistas literários desempenhassem um importante papel na sua formação. O Futurismo, o primeiro movimento com esse carácter, foi concebido e organizado pelo poeta italiano Filippo Tomasso Marineti. in READ,

Herbert – História da Pintura Moderna. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. p.106.

248 MARINETTI, F. T. - Imagination sans fils et les mots en liberte, manifeste futuriste. Milan: [s.n.], 1913. in LISTA, Giovanni (ed.) - Futuriste – Manifestes – documents – proclamations. Lausanne: L’Age d’Homme, 1974. ISBN 978-2825124147. p.144.

249 […] avec les mots en liberté [...], nous aurons [...]: les métaphores condensées, - les images

télégraphiques. – les sommes de vibrations. – les nœuds de pensées. – les éventails tour à tour ouverts et fermés de mouvements. – les raccourcis des analogies. – les bilans de couleurs. – les dimensions,

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Mas a revolução futurista ia para lá de uma simples reforma do estilo poético. A argumentação de Marinetti apoiava-se na convicção de que a estrutura da língua reflecte a natureza hierárquica opressiva da sociedade.

Para Marinetti, a forma de escrita ocidental separa a linguagem do corpo. E se o corpo ainda intervém na escrita manuscrita, a escrita impressa acaba com essa ligação. Enraizado numa análise e numa lógica hierárquicas, o texto impresso objectiva o tempo e o espaço e é o lugar de discursos desencarnados uma vez que nele a linguagem se encontra separada do contexto específico do gesto corporal e da vocalização.

O papel do futurismo consistia em libertar a linguagem, e fazer dela um meio de comunicação primitivo, concreto e dinâmico, baseado no mundo sensorial — e, talvez, até argumentativo, no quadro de uma prática combativa e provocatória. Marinetti insistia no facto de a linguagem verbal poder englobar todos os sentidos e de a poesia dever mostrar-se capaz de sublinhar os aspectos orais, auditivos e teatrais da linguagem falada:

A palavra escrita iria ser objecto de uma rigorosa desconstrução: as palavras, que tinham servido para visualizar a linguagem e para veicular informações, iriam ser repensados sob a forma de entidades materiais, independentes do seu som. O espaço da leitura iria então ceder o lugar a um espaço visual e as ligações entre a escrita, a audição e a compreensão seriam requestionadas por uma experiência não dominada pelo olhar e por uma redescoberta das relações entre escrita e espaço rítmico do corpo. Atomizada e reconhecida como uma manifestação material, a linguagem alcançaria o estatuto de palavra-em-liberdade.

Marinetti valorizava a expressividade da tipografia, em detrimento do significado das palavras. A forma de escrever não devia conformar-se com as normas do dicionário, devia preferir o que ele chamava uma ortografia livre expressiva. A paginação, o corpo dos caracteres e as justaposições visuais e verbais deviam evocar emoções em vez de as descrever.

poids, mesure et vitesse, des sensations. – le plongeon du mot essentiel dans l’eau de la sensibilité sans les cercles concentriques que le mot produit. – les poteaux analytiques explicatifs qui soutiennent les fils de l’intuition. Ibid. p. 145.

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Como ele também precisou em La Splendeur géométrique et mécanique et la

sensibilité numérique, publicado em 1914:

A sintaxe continha sempre uma perspectiva científica e fotográfica absolutamente contrárias aos direitos da emoção. Nas palavras-em-liberdade, esta perspectiva fotográfica desaparece, e obtemos a perspectiva emocional que é multiforme. Por exemplo: o poema intitulado “Homem + montanha + vale” do poeta de palavras-em-liberdade, Boccioni.250

Como os cubistas, Marinetti reconhecia que este primitivismo da linguagem já era efectivo nas forma mediáticas emergentes e foi na imprensa, na publicidade e nas diversões populares que, muitas vezes, os futuristas procuraram inspiração, considerando-as uma prova de vitalidade e absoluta modernidade.

Marinetti explicou como é que as palavras-em-liberdade251 passavam do campo teórico para a situação concreta das obras, primeiro na revista futurista Lacerba e depois em obras como Zang Toumb Toumb (1914) e As palavras-em-liberdade

futuristas (1919).252

As palavras escritas são aí consideradas como equivalentes visuais dos efeitos onomatopaicos da poesia performativa futurista. O alinhamento dos substantivos, a omissão das conjunções e a utilização de artigos onomatopaicos voltam a questionar a sintaxe convencional, fazendo as palavras funcionar segundo modos multidimensionais e expressivos. As diferentes formas de tipografia — as analogias desenhadas — têm como objectivo transmitir directamente o sentido das palavras. O papel da palavra já não se limita a ser o de revelar o seu sentido como signo isolado, antes o estende a toda a superfície do campo visual. A compreensão resulta de uma percepção simultânea e as palavras, com as suas particularidades auditivas e visuais, participam num efeito de conjunto. Libertas de toda a estrutura sintáctica linear, elas já não se inscrevem numa continuidade e podem passear-se com toda a liberdade, como imagens visuais, sobre a página ou a tela, com o objectivo de alcançar um forte impacto emocional.

Os pintores futuristas, inspiraram-se nas teorias de Marinetti tentando esbater a fronteira entre pintura e poesia com vista a produzirem aquilo a que Marinetti chamava

dipinto-parolibero, a pintura de palavras-em-liberdade.

250 MARINETTI, F. T. - La Splendeur géométrique et mécanique et la sensibilité numérique, manifeste

futuriste. Milan: [s.e.], 1914. Ibid. p.149.

251 Marinetti explicou, por exemplo: no meu poema ZANG, TOUMB, TOUMB, descrevo sumariamente

a morte de um traidor búlgaro, fuzilado, enquanto prolongo uma discussão de dois generais turcos sobre as distâncias de tiro e sobre os canhões do adversário. Ibid. p.149.

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Seguindo os cubistas, os futuristas consideravam o quadro como uma superfície plana onde era possível escrever textos. Mas os seus textos eram de outra ordem: em vez de integrar palavras num assunto representado (uma natureza morta ou uma cena de café), como faziam Braque ou Picasso, os futuristas inscreviam-nos nas suas obras adoptando as estratégias dos publicitários ou inspirando-se noutros tipos de apresentação visual e verbal (esquemas ou ilustrações legendadas).

A colagem Manifestação Intervencionista realizada por Carrà em 1914, reúne uma pluralidade de textos: alguns sob a forma de fragmentos de jornais ou de anúncios publicitários colados sobre o cartão, e outros, pintados à mão. Como ele escreveu a Gino Severini, nesta obra experimentou a exclusão de toda a representação da figura

humana e a sua substituição por uma abstracção plástica do tumulto da cidade.253 A

profusão de textos faz parte dessa abstracção. A obra deve ser lida para ser compreendida, mas o acto da leitura é posto em causa pela reacção dos nossos sentidos ao campo visual complexo no qual as palavras se situam. A explosão da sintaxe impele o espectador a tentar reunir os fragmentos de palavras num todo compreensível, mas a inteligibilidade da obra fica comprometida pela variedade desconcertante de palavras — AUDÁCIA ROMA — juntam-se num ponto central fazendo turbilhão com outras palavras — aviatore, Italia, battere il record. Há também ortografias puramente fonéticas e parece que Carrà incluiu o som de uma sirene, dando ao quadro uma dimensão oral e auditiva. O espectador está em presença de uma celebração da experiência da simultaneidade e, na ausência de qualquer sintaxe clara, é constrangido a assumir um papel mais activo e a estabelecer ele mesmo ligações entre as diferentes partes da obra, que estão em concorrência umas com as outras.

O efeito dinâmico do quadro de Carrà inspira-se evidentemente no impacto da publicidade, mas as obras deste tipo demonstram sobretudo que, numa cultura cada vez mais dominada pelos media, os acontecimentos já não são vividos senão de forma indirecta. De certa forma, a obra é ela própria uma espécie de publicidade, decerto ao futurismo, mas também a um princípio político caro aos futuristas. A Manifestação

Intervencionista a que faz referência o título desta obra, realizada precisamente antes do

início da primeira Guerra Mundial, tinha sido organizada para incitar os governantes italianos a tomar parte mais activa nas relações internacionais.

253 CARRÀ, Carlo - Lettre datée de 11 de Julho de 1914. in GAMBILLO, M. D.; FIORI, T. (eds.)- Archivi

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Quando a Itália entrou na guerra, em Maio de 1915, os futuristas foram adeptos incontestáveis dessa decisão. As colagens de Boccioni, La Charge des lanciers e Canhão

em acção, de Gino Severini (1915), são também reflexo dessa adesão ao belicismo.

Nestas, como noutras obras, a clareza do conteúdo verbal fica comprometida pela sua incorporação numa composição visual e por isso os artistas recorrem a algumas palavras, como BBBOUMM, que são onomatopaicas, estabelecendo o lettering usado uma correspondência visual com efeito auditivo. Outras palavras parecem ter uma função mais informativa, como, por exemplo, “100 000 clarões dilacerantes”. Estas foram pintadas num estilo tipográfico decalcado do dos esquemas ou dos manuais de instruções, com maiúsculas para as informações importantes e minúsculas para os dados mais prosaicos. Aqui ou ali, algumas expressões, tais como “oh lá lá! Isto cheira mal!” supõe-se que pretendam ser comentários de testemunhas e por isso, são pintadas em cursivo.

A nova relação entre texto e imagem em breve se estendeu a toda a vanguarda artística.

Os artistas franceses mais próximos do futurismo foram Robert e Sónia Delaunay, que, de todos os cubistas, foram os que estiveram mais inclinados a considerar os medias e a cultura de massa menos como fonte de inspiração do que como meio de difusão das suas ideias artísticas. No entanto, esvaziaram o futurismo da sua tendência militarista e enquanto Sonia Delaunay realizava inúmeros cartazes publicitários, produzindo composições de dinamismo cromático nas quais texto e imagem se confundiam de forma completamente diferente tanto da ironia das obras de Picasso e Braque como das provocações futuristas, R. Delaunay pintava A equipa de Cardiff (1913), fundindo desporto e publicidade e ainda, para dar um ar da época, juntando um aeroplano, a Torre Eiffel e a Grande Roda e, por fim, juntou a palavra Astra, que em latim quer dizer estrela.

As teorias futuristas tiveram também influência na poesia francesa, tanto no conteúdo como na forma. Apollinaire, por exemplo, nos Caligramas (1916) dispôs as palavras de forma a que elas fizessem eco do assunto abordado, funcionando então como imagens icónicas ou desenhos-poemas.254

254. APOLLINAIRE, Guillaume - Calligrammes. Poèmes de la Paix et de la Guerre (1913-1916). Paris: Gallimard, 1966. O caligrama não era uma forma nova de poesia, como o testemunham dois

exemplos célebres: ‘L’Autel’ de Georges Herbert e ‘La Queue de la souris’ em As aventuras de Alice no Pais das Maravilhas de Lewis Carroll. Ver D. Higgins, ‘Pattern Poetry, Guide to an Unknown

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Um crítico contemporâneo afirmou que estes caligramas anunciavam uma espécie de revolução porque é necessário que a nossa inteligência se habitue a

compreender de uma forma sintético-ideograficamente em vez de analítico-

discursivamente.255

A obra poética de Blaise Cendrars La Prose du transsibérien et de la petite Jehanne

de France também se distancia das tradições editoriais. Publicada em 1913 em edição

limitada, sob a forma de um desdobrável com dois metros de comprimento, apresentado como o primeiro livro simultâneo, relata a história de uma viagem de comboio da Sibéria para Paris. O texto de Cendrars, impresso com diversas fontes e cores, era acompanhado por criações de Sonia Delaunay.256

Como Apollinaire, Ezra Pound explorou as raízes ideográficas da escrita e, com uma argumentação muito usada a partir daí, avançava com a ideia de que estava a surgir uma nova unidade entre as artes plásticas e as artes textuais, apoiando-se no princípio da imagem ideográfica não discursiva e concreta.

Pound notou ainda que se os ocidentais usavam o alfabeto como uma série de signos gráficos destinados a descrever sons, os chineses consideravam os seus

desenhos abreviados como desenhos, quer dizer que o ideograma chinês [...] significa a coisa, a acção, a situação ou uma qualidade que se referem às coisas que ele

representa”257. A partir destas observações, Pound propunha aquilo a que chamava de

poema imagístico, que necessitava de uma reforma da linguagem a fim de ancorar de novo as palavras na materialidade da imagem.

Animado por um desejo de universalidade, ele visualizava uma linguagem à base de signos capaz, ao mesmo tempo, de aniquilar a diferença entre significado e significante e de existir, devido ao seu enraizamento no visual e no material, fora de toda a determinação cultural.

Literature, Albany’ (NY): 1987. Higgins define aí o ‘caligrama’ como um ‘poema visual, um texto intermédio entre a literatura e as artes plásticas’.

255 ARBOUIN, G. - Devant l’idéogramme d’Apollinaire. in Les Soirées de Paris (Junho de 1914), Genève: [s.n.], 1971. t. II. p.384.

256 Pode-se encontrar o poema de Blaise Cendrars e Sonia Delaunay em DUMAY, R e FRANK, N. (eds.) -

Œuvres complètes. Paris: Le Club Français du Livre, 1968-1971.Vol. I, p 16-32.

257 POUND, Ezra - A B C de la lecture (1934). Paris: Gallimard, 1966. p.20. A propósito do imagismo, ver PRATT, William (ed.) - The Imagist Poem. NY: E.P.Dutton, 1965. Pound foi-se interessando cada vez mais pela escrita enquanto figura espacial, como testemunham os ideogramas chineses dos seus

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Esta pesquisa utópica era também uma preocupação dos poetas russos adeptos do

zaum, a linguagem transracional aperfeiçoada por Velimir Khlebnikov. Estes poetas

reduziam muitas vezes a linguagem verbal ao simples som da letra individual ou de grupos de letras, interessando-se sobretudo pelo aspecto visual dos caracteres e pela sua disposição na página.258 Estes poetas, que eram profundamente místicos, queriam encontrar os signos mais próximos do real, o que supunha para eles, ir mais longe que Marinetti ou Pound e tender para a criação de uma linguagem completamente nova, que transcendesse a razão.

É a esta aspiração que a pintura tendência cubo-futurista russa deve também a sua forma elaborando uma deslocação espácio-temporal, com pedaços de palavras dificilmente legíveis.

Ao mesmo tempo, outros artistas pareciam paralisados por um sentimento de apreensão que nem os deixava escapar ao mundo material nem lhes dava o desejo de celebrar o espectáculo tecnológico moderno.

A defesa da sociedade moderna promovida pelos cubistas e os futuristas cedeu o lugar a uma visão apocalíptica da vida urbana. É o que nos traz o Dadaísmo.

258 A propósito da poesia “zaum”, ver DOUGLAS, Craig - Velimir Khlebnikov: Collected Works. trad. P. Schmidt. Cambridge (Ma): Harvard UP, 1987.

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