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A PALAVRA CONSTRUTIVISTA

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 160-166)

C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.6. A PALAVRA CONSTRUTIVISTA

A revista L’Esprit Nouveau, no ano de 1924, publicou em Paris uma ilustração que justapunha dois tipos de escrita: o mesmo texto era aí visível, primeiro sob a forma manuscrita e depois dactilografada. Pretendia-se, decididamente, demonstrar a supremacia da dactilografia sobre a caligrafia. Privilegiava-se a clareza da primeira sobre a marca da subjectividade, que tinha que ser decifrada.277

Com efeito, os colaboradores do L’Esprit Nouveau eram adeptos do novo espírito racionalista que, depois da primeira Guerra Mundial, estava a substituir o caos futurista e dadaísta. Estes racionalistas viam na máquina de escrever uma prova suplementar do triunfo do esquema ordenado da cultura sobre o desordenado da natureza.

Enquanto os movimentos anteriores tinham, em larga medida, declarado guerra à razão e à linguagem, os recém criados construtivistas, convencidos de que era necessário desembaraçar a cultura das deformações que originavam a tortura dos

olhos, estavam decididos a escolher a razão. Para eles era necessário purificar as

antigas formas de comunicação — a arte, a escrita, a palavra — , desembaraçar-se da desordem e da pobreza dos estilos precedentes e substituí-los por um funcionalismo limitado ao essencial — a forma geométrica e a forma mecânica — com vista a exprimir claramente e sem equívocos qualquer conteúdo. Uma nova era devia ser acompanhada por uma nova linguagem, lógica e construída (estruturada).

Para eles, o artista devia participar na elaboração de uma linguagem plástica e verbal nova, que deviam pretender alcançar um valor universal.

O artista russo El Lissitzky resumiu esta trajectória da arte:

As tácticas negativas dos ‘dadaístas’, que se assemelham aos primeiros futuristas de antes da guerra como duas gotas de água, parecem-nos anacrónicas. Chegou o tempo de construir sobre o terreno que foi desbravado […] A mudança incessante das formas responde a leis que têm força de obrigatoriedade, e os artistas da nova era não têm que ficar intimidados pelos modelos clássicos.278

277 L’Esprit Nouveau, nº21 (Fev. 1924).

278 Les tactiques négatives des ‘dadaistes’, qui ressemblent aux premiers futuristes d’avant-guerre comme

deux gouttes d’eau, nous paraissent anachroniques. Le temps est maintenant venu de construire sur le terrain qui a été déblayé […] Le changement incessant des formes répond à des lois ayant force obligatoire, et les artistes de la nouvelle ère n’ont pas à etre effrayés par les modèles classiques.

LISSITZKY, El; EHRENBURG, I. - The Blockade of Rússia is Coming to an End.

Vesch/Gegenstand/Object: [s.n.]. nº1-2 (mars-avril 1922). Citado in BANN, S. (ed.) - The Tradition of Contructivism. London: Thames and Hudson, 1974. p. 55.

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Este optimismo era sustentado por uma consciência das transformações profundas da sociedade e os media. A imprensa passava por uma enorme revolução e tinham aparecido novos media — o rádio, o fonógrafo, o cinema — que punham em causa a predominância da escrita. Laszlo Moholy-Nagy dizia em 1925:

Não se trata de utopia, [...] o facto de encarar a substituição das actuais bibliotecas por colecções de discos e de filmes.279

Walter Benjamin observou nos anos 30 que estas novas formas de produção mecânica tinham uma incidência importante sobre as artes plásticas. Utilizando a reprodução, possibilitada pelos processos de impressão e fotografia, destruía-se a aura da obra de arte única.

A litografia [por exemplo], permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. Começaram a acompanhar a impressão, […] Pela primeira vez, com [a fotografia], a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva.280

Estas evoluções tornaram mais ténue a distinção tradicional entre o visual e o verbal:

Uma vez que o olho apreende mais depressa do que a mão desenha o processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala.281

Benjamin conclui que enquanto a aura da obra de arte única se esfuma, desaparece também a linha de demarcação entre as diferentes artes bem como entre a arte e a vida, porque experiências de uma maior dimensão social e psicológica se tornam possíveis.

Os estudos de Benjamin reflectem profundas modificações na atitude de intervenção relativamente à cultura e às massas populares. O que era antes considerado pelos defensores de uma arte moderna como uma multidão sem rosto, arrancada à sua própria cultura, era agora, sob o efeito do socialismo, o proletariado revolucionário, portador da esperança. Devido às profundas transformações que abalaram as estruturas económicas e sociais, era, por outro lado, cada vez mais difícil

279 Ce n’est pas faire preuve d’utopie, [...] que d’envisager le remplacement des bibliothèques actuelles

par des collections de disques et de films. MOHOLY-NAGY, Laszlo - La typographie contemporaine: buts, pratique, critique. [s.l.]: Gutenberg Festschrift. 1925. Citado in PASSUTH, K. - Moholy-Nagy,

trad. V. Charaire. Paris; Flammarion, 1984. p.294

280 BENJAMIN, Walter – A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. in BENJAMIN, Walter –

Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d’Água, 1992. ISBN 972-708-177-0. p.76.

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de se estar ligado à noção de cultura superior. Esta mudança levou os escritores a abrirem-se às formas de linguagem popular, tornadas objecto de estudos e celebradas pela sua vitalidade.

Outros factores contribuíam para tornar ténue a linha de demarcação entre arte e cultura de massa. A publicidade continuava a expandir-se, integrando as últimas inovações da impressão e retirando lições da actividade das vanguardas. Léger, que se encontrava fascinado pela variedade dos letterings que invadiam as cidades e o campo e pela vivacidade das suas cores, escreveu:

Em 1912, [...] usei cores puras inscritas numa forma geométrica (“La femme en bleu”). [...] em 1919, compus o quadro “La Ville” [...] unicamente com cores puras planas. Este quadro é tecnicamente uma revolução plástica. Era possível, sem claro-escuro, sem modulações, obter uma profundidade e um dinamismo. Foi a publicidade quem primeiramente tirou partido destas consequências.

O tom puro, azuis, vermelhos, amarelos, escapam deste quadro e vão inscrever-se nos cartazes, nas vitrinas, na borda das estradas, na sinalização. A cor tornara-se livre. Ela era uma realidade em si mesma. Ela tinha uma acção nova e completamente independente dos objectos que antes desta época estavam encarregados de a conter ou de a transportar.282

E El Lissitzky notava que, quanto a ele, a publicidade tinha modificado radicalmente os hábitos de leitura.

O livro tradicional, dizia que:

[…] tinha visto as suas páginas arrancadas, ampliadas uma centena de vezes, coloridas para maior efeito e colocadas na rua sob a forma de cartazes. O livro, [acrescentava] está em vias de se tornar a obra de arte mais monumental: já não é um objecto que apenas as mão delicadas de alguns bibliófilos acariciam; centenas de pobres pessoas já estão a aproveitar-se dele. 283

Os construtivistas puseram à prova as suas ideias em todos os domínios da produção artística. Várias colaborações entre poetas e artistas fizeram com que o conceito de livro de artista entrasse no campo do novo racionalismo. El Lissitzky, por

282 En 1912, [...] j’ai obtenu des couleurs pures inscrites dans une forme géométrique (“La femme en

bleu”). [...] en 1919, j’ai composé le tableau “La Ville” [...] uniquement avec des couleurs pures à plat. Ce tableau est techniquement une révolution plastique. Il était possible sans clair-obscur, sans modulation, d’obtenir une profondeur et un dynamisme. Ce fut la publicité qui la première en utilisa les conséquences.

Le ton pur, des bleus, des rouges, des jaunes, s’échappent de ce tableau et vont s’inscrire dans es affiches, dans des vitrines, en bordure des routes, dans la signalisation. La couleur était devenue libre. Elle était une réalité en elle-même. Elle avait une action nouvelle et complètement indépendante des objets qui avant cette époque étaient chargés de la contenir ou de la porter Ibid. p. 240

283 […] avait vu ses pages arrachées, agrandies une centaine de fois, colorées pour plus d’effet et

placardées dans la rue sous forme d’affiches». «Le livre, ajouta-il, est en train de devenir l’œuvre d’art la plus monumentale : ce n’est plus un objet que seules caressest les mains délicates de quelques bibliophiles ; des centaines de pauvres gens sont déjà en train de s’en emparer. LISSITZKY, El - Unser

Buch. Gutenberg-Jahrbuch, (1926-1927). Reedição e tradução em americano em HERTZ, R. e KLEIN, N. M. - Twentieth Century Art Theory: Urbanism, Politics, and Mass Culture. NY: Englewood Cliffs, 1990. p.295-297.

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exemplo, trabalhou em colaboração com o poeta Maiakovski numa recolha inovadora,

À pleine voix, na qual a expressão tipográfica do texto, muito poderosa, tem uma

função preponderante.284

Os construtivistas eram atentos , devido ao seu interesse pela estrutura formal da língua, à dimensão material da escrita, à forma das letras e à paginação dos textos. Num texto dedicado à tipografia, El Lissitzky, enunciava alguns princípios dos quais realçamos:

A apropriação das palavras escritas efectua-se através da vista e não do ouvido.

Passando a transmissão das ideias pela utilização de palavras convencionais, devem as letras servir para dar forma à ideia.

Economia de expressão: a óptica em vez e no lugar da fonética.285

O objectivo do construtivismo era o de forjar uma nova linguagem universal, desembaraçada das antigas especificidades culturais. Para Doesburg no futuro haveria uma só arte, aquela que seria entendida por todos. A criação de novos meios de comunicação para um proletariado que tinha acabado de se emancipar, necessitava do aparecimento de uma linguagem capaz de ultrapassar a distinção entre o visual e o verbal. El Lissitzky comparava a escrita “hieroglífica” dos chineses, em que a utilização de um símbolo por ideia tornava a comunicação universal, com a escrita alfabética do Ocidente, em que o emprego de um símbolo por som tornava a comunicação dependente de cada língua nacional. Assim, a linguagem do futuro devia tornar-se um instrumento plástico e figurativo para que fosse compreendido universalmente.286

A interacção, desejada, entre artes e literatura era acompanhada de um corpus teórico. O formalista russo Roman Jakobson, por exemplo, notava que a lição mais importante do cubismo tinha sido a de mostrar que não eram as coisas em si que contavam, mas as relações entre elas, o que o tinha conduzido a analisar a linguagem não como um simples vector de informação, mas como uma entidade autónoma apresentando conexões puramente internas. Por outro lado, afirmava também que a

284 Ver À pleine voix in MAIAKOVSKI, V. - Poèmes 2, adapt. C. David. Paris: L’Arche, 1977. p.211 285 1. L’appropriation des mots imprimes s’effectue par l’intermédiaire de la vue, non de l’ouie.

2. La transmission des idées passant par l’utilisation de mots conventionnels, les lettres doivent servir à donner forme à l’idée.

3. Économie d’expression : l’optique en lieu et place de la phonétique. LISSITZKY, El; STAM, M. - ABC,

Berlin: [s.n.], nº 2 (1924). cit. MANSBACH, S. A. - Visions of Totality: Lazlo Moholy-Nagy, Theo von

Doesburg and El Lissitzky. NY: Ann Arbor, 1978. p.100

286 LISITZKY, El - Unser Buch. Reedição americana de HERTZ e KLEIN - Twentieth Century Art Theory. p.293-294.

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importância de um poema não dependia das imagens que evocava, mas do carácter

material do texto.287

A Bauhaus na Alemanha permitiu aos construtivistas desenvolver o seu pensamento, desde o meio dos anos 1920 até ao seu fecho, em 1933. Moholy-Nagy foi aí professor. Como muitos dos outros membros desta escola, no centro das suas preocupações estava a relação entre signo verbal e signo visual, bem como o interesse na pesquisa de um sistema universal de signos. Passando em revista as transformações por que passara o domínio da escrita, fazia eco do pensamento de El Lissitzky, preconizando a atribuição à tipografia de uma maior presença visual:

Desde Gutenberg até ao primeiro cartaz, a tipografia não era senão um mediador (indispensável) entre o conteúdo de uma informação e a pessoa que a recebia; com o primeiro cartaz, cria-se uma nova etapa no desenvolvimento. Reconheceu-se que o material tipográfico até então considerado como um simples utensílio, podia ter uma existência própria e produzir efeitos novos. Compreendeu-se que a forma, o tamanho, a disposição do material tipográfico (caracteres, sinais) estão aptos a suscitar importantes efeitos ópticos. A organização destes efeitos ópticos latentes dá uma forma, igualmente significativa, do ponto de vista óptico, ao conteúdo da informação. Isso significa que com a ajuda do trabalho tipográfico, o conteúdo pode ter um carácter de imagem. Sustentar, reforçar, acentuar, propagar e representar o processo é a verdadeira tarefa da criação óptico-tipográfica.288

Os construtivistas usavam letras sem serifas, que tinham uma forma despojada. Elas eram arquitecturas dedicadas à funcionalidade, próximas do espírito com que então se trabalhava, feitas a compasso e régua, fáceis de usar para obter tiragens baratas por serem resistentes e fáceis de manusear. Acima de tudo, eles apreciavam o seu aspecto geométrico, de formas reduzidas ao essencial, que podiam servir para uma comunicação directa e universal e colocavam, assim, a tipografia ao serviço da comunidade. Moholy-Nagy criou letras maiúsculas e minúsculas, mas em breve se considerou que as primeiras eram desnecessárias, tendo este mesmo princípio vigorado na Bauhaus a partir de 1925.

287 Ver, por exemplo, POMORSKA, K.; RUDY, S. (ed.) - Roman Jackobson, Langage in Literature, Cambridge (Ma) e Londres: Harvard UP, 1987.

288 Depuis Gutenberg jusqu’à la première affiche, la typographie n’était qu’un médiateur (indispensable)

entre le contenu d’une information et l’homme qui la recevait; avec la première affiche, une nouvelle étape apparaît dans le développement. On a reconnu que le matériel typographique considéré jusqu’ici comme un simple outil, pouvait avoir une existence propre et produire des effets nouveaux. On a compris que la forme, la taille, la disposition du matériel typographique (caractères, signes) sont aptes à susciter des effets optiques importants. L’organisation de ces effets optiques latents donne une forme, significative également, du point de vue optique, au contenu de l’information. Cela signifie qu’à l’aide du travail typographique, le contenu peut avoir un caractère d’image. Soutenir, renforcer, accentuer, propager et représenter ce processus est la tâche véritable de la création optico- typographique MOHOLY-NAGY - La typographie contemporaine: buts, pratique, critique. in

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Os efeitos deste novo racionalismo sobre a imprensa e sobre a arte publicitária foi enorme. O nascimento desta tipografia elementar, estava adaptada exactamente ao objectivo pretendido: a comunicação. E para que esta se pudesse realizar, o texto devia aparecer sob a forma mais concisa, mais simples e decisiva possível a fim de servir finalidades sociais.

A Bauhaus explorou a associação de textos e fotografias e Moholy-Nagy chamou a atenção para o facto da justaposição de texto e imagem criar relações ópticas que o olho apercebia mais ou menos rapidamente. Assim, o artista podia, por uma utilização atenta das palavras e das imagens, controlar o ritmo da interacção visual e verbal.289

A estética construtivista desempenhou um papel primordial no aperfeiçoamento de uma linguagem moderna, que se queria eficaz. A relação com a palavra pode notar- se na edição, na publicidade e outros media, na arquitectura e decoração de interiores mas, no entanto, menos na pintura.

289 BRUNING, V. - La typophoto. In FIEDLER, J. (ed.) - Photographie Bauhaus 1919-1933, trad. C. Metais-Buhrendt. Paris: [s.n], 1990. p.205-219.

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