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EXPRESSIONISMO ABSTRACTO

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 183-187)

C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.8. A S PALAVRAS DO PÓS GUERRA

5.8.5. EXPRESSIONISMO ABSTRACTO

O desejo de libertar o gesto pictórico de códigos estabelecidos ocupou também um lugar central na arte americana do pós-guerra. Nos Estados Unidos, as ideias orientais tiveram muitas vezes um impacto mais directo. Em 1934, o pintor Mark Tobey já tinha ido à China e ao Japão, onde tinha sido seduzido por aquilo a que ele chamava as “linhas de movimento” dos artistas orientais. Ele tinha estudado as qualidades particulares da gestualidade que desempenha um papel primordial na caligrafia do extremo oriente, aperfeiçoando a sua própria forma de “escrita branca”, um conjunto abundante de signos gráficos que libertava a escrita da linearidade sintáctica e da forma linguística, substituindo-as por todo um campo de traços dinâmicos de origem somática.

A influência desta escrita gráfica é evidente nas primeiras obras do expressionismo abstracto. Pela dimensão e a forma da touche, o espaçamento e o contorno das formas lineares, mas também a origem do movimento do pulso para realizar os traços deixados na tela, as obras do início dos anos 1940 de artistas como Arshile Gorky, Ad Reinhardt, Adolph Gottlieb, Willelm De Kooning, Robert Motherwell, Lee Krasner e Jackson Pollock, apresentam uma ligação estreita com diversos tipos de escrita arcaica ou não ocidental325.

Krasner, por exemplo, inspirou-se, no início dos anos 1940, na escrita cúfica — uma forma antiga da escrita árabe — e nas iluminuras dos manuscritos hebraicos, enquanto que Gottlieb consagrou toda uma série de pinturas ao estudo do pictograma.

326 Jackson Pollock interessou-se por formas “primitivas” de notação gráfica e

particularmente pelos gliptos, pictogramas e ideogramas da arte ameríndia. A atracção por estas marcas misteriosas e “selvagens” era, no fundo, como já tinha acontecido

325 Gorky e De Kooning, aliás, adoptaram os pincéis especiais da pintura de cartazes para executarem a

linha coup de fouet característica da sua pintura.

326 HOLT, R. - Lee Krasner. New York: [s.n], 1993. p.43-46; A. e E. GOTTLIEB FOUNDATION - The

Pictograms of Adolph Gottlieb. New York: Adoph e Esther Gottlieb Foundation, 1994. cit. in

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com Van Gogh e Gauguin, devida à sua ilegibilidade no moderno sentido do termo. Elas eram a expressão de uma linguagem arcaica elementar, correspondendo talvez a um nível de comunicação universal.

Na obra de maturidade de muitos expressionistas abstractos, o gesto espontâneo acaba, contudo, por se desligar tanto das convenções da escrita como dos seus antecedentes gráficos. A pintura — o tachisme, por exemplo — procurava trazer um testemunho mais directo dos movimentos efectuados em completa liberdade por todo o corpo. Em 1947, Pollock tinha abandonado o gesto de inspiração caligráfica em troca de uma forma de manchas mais elementares recobrindo tudo e renunciando às formas esqueléticas de uma escrita residual.327 Ele trabalhava então em enormes telas não engradadas, colocadas no solo e deixava ao peso e a todo o seu corpo (e não mais apenas ao gesto do punho accionando o pincel) a tarefa de determinar a distribuição da pintura. O artista misturava cuidadosamente linhas e superfícies, fazia desaparecer no espectador a sensação de estar em presença de formas diversas dispostas de forma linear.

O contraste entre os métodos de trabalho de Pollock e os do artista japonês Yuichi Inoue, membro do grupo de caligrafia de Tóquio Bokujin-Kai, é interessante. Embora sejam detectáveis semelhanças nas suas formas de abordar o acto pictórico, separam- nos diferenças importantes, quer seja ao nível das respectivas intenções, da forma que cada um tinha de usar o corpo ou ainda das marcas que deixavam nos seus suportes. Mais ligado à caligrafia Zen, a pintura do artista japonês mostra até que ponto o expressionismo abstracto se tinha afastado da representação de sinais gráficos. Para Pollock e os outros partidários da Action Painting, o modelo a seguir já não era o do calígrafo oriental, mas antes o do bailarino. Como o crítico Harold Rosenberg escreveu num célebre ensaio, a tela era, para Pollock e muitos outros artistas americanos, já não uma superfície destinada a receber pinceladas e pintura mas o palco de uma acção, sendo o resultado obtido apercebido como um evento e não como um quadro.328

Uma parte do vandalismo, semelhante ao que entra nos graffitis, é perceptível nas produções de Pollock, mas esta violência é ainda mais manifesta nas obras, como as de Franz Kline, de 1952, realizadas sobre as folhas do anuário telefónico de Nova Iorque.

327 KARMEL, P. - Pollock at Work: The Films and Photographs of Hans Namuth. in VANEDOE, K.; KARMEL, P. - Jackson Pollock. Londres: [s.n], 1998. p.87-137.

328 ROSENBERG, H. - The American Action Painters. Art News. New York. (December 1952). Reimpressão in ROSENBERG, Harold - A Tradição do Novo. S.Paulo: Perspectiva, 1974.

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O signo caligráfico e pictórico tem aqui a função de apagar ou de recobrir o conteúdo da página, de aniquilar violentamente o seu sentido primário e de substituir o alfabeto impresso, banal e decadente, por uma espécie de escrita elementar. Este tipo de peças parece revelar a existência de uma ligação com o carácter ilícito e arcaico do graffiti urbano bem como uma espécie de marca que se não pode realizar senão sobre uma superfície que constitua já um todo. Ao apropriar-se do graffiti, os artistas do pós-guerra fizeram entrar na “Grande Arte” a paixão pelas produções marginais no território do signo escrito transgressor e provocador.

5.8.5. GARATUJA

É característica comum aos artistas do pós-guerra uma espécie de recusa da sofisticação característica dos alfabetos tipográficos e mecânicos, mas também da clareza e da compreensão preferindo-se a autenticidade da garatuja efectuada deliberadamente sem preocupações estéticas.

Dos dois lados do Atlântico, o grande mestre desta escrita foi Cy Twombly. Retornando às origens dos ensinamentos do gestualismo de Pollock — o graffiti e os seus desdobramentos caligráficos —, Twombly trata o seu suporte como se se tratasse de uma parede, cobrindo as suas telas, muitas vezes enormes, com um enredado obsessivo de traços — garatujas abstractas, esquemas, falos e sexos femininos, faces e palavras — executados a lápis, apresentam-se sob a forma de empastados ou de manchas. Mas é também uma superfície que oferece possibilidades de inscrição e Twombly imita muitas vezes conscientemente a aparência da escrita — o seu ritmo e a sua inclinação, a sua direcção horizontal, as suas proporções, as suas interrupções e os seus contrastes — sem formar palavras, nem letras legíveis. Neste sentido, Twombly aborda uma possibilidade de linguagem e não a linguagem na sua realidade e cria o que Roland Barthes chamava um campo alusivo da escrita, quer dizer um campo da escrita que tem como objectivo pôr-nos em contacto com um nível de comunicação primitivo, enraizado nos movimentos do corpo mais do que em códigos culturais elaborados329. Mas aparecem também palavras legíveis e o facto de elas aparentarem

329 Da escrita, Tw conserva o gesto, não o produto. Apesar de ser possível consumir esteticamente o

resultado do seu trabalho (aquilo que se chama a obra, a tela), apesar das produções de Tw se aproximarem de uma História e de uma Teoria da Arte, aquilo que é mostrado é um gesto. O que é um gesto? Qualquer coisa como o suplemento de um acto. O acto é transitivo, quer somente suscitar

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ter sido feitas desajeitadamente, gatafunhadas, contrasta violentamente com o seu significado.

Twombly, que se instala em Roma em 1957, evoca em particular o mundo antigo, a herança da antiguidade greco-romana. Este tipo de alusões, que tiram partido da função da palavra como significante de uma forma quase enfática e sublinham o papel da pintura como vector de comunicação de um conteúdo narrativo.

Na realidade, as pesquisas de Twombly podem ser apreendidas, de forma mais ou menos construtiva como uma forma de anotação, como se o artista fizesse comentários sobre uma superfície que tivesse já marcas. A obra teria então de ser aproximada, como Barthes aliás fez notar, com as anotações com que alguns leitores cobrem as páginas dos seus livros, tendo a inscrição do nome do poeta latino Virgílio a função de evocar a própria enormidade do mundo clássico, todas as referências de que este nome é o depósito, as inumeráveis referências anteriormente feitas a este mesmo poeta e à sua obra poética.330 A brancura de muitas das obras de Twombly remeteriam, nestas circunstâncias, não só para a parede mas também para a brancura da página virgem, a ligação com a literatura e tornando-se então visualmente explícita a analogia entre a pintura e o livro. A partir das garatujas aparentemente desordenadas que atravessam a sua obra — que também traduzem a incerteza que reinava no mundo de então, em que ele estava a pintar —, Twombly consegue na realidade evocar uma continuidade, talvez consiga mesmo traduzir valores eternos.

um objecto, um resultado; o gesto é a soma indeterminada e inesgotável das razões, das pulsações, das preguiças que rodeiam o acto de uma “atmosfera”. […]A escrita de Twombly é decifrável, não é interpretável […]Distingamos pois a mensagem, que quer produzir uma informação, o signo, que quer produzir uma intelecção, e o gesto, que produz todo o resto, sem forçosamente querer produzir alguma coisa. BARTHES, Roland - O Óbvio e o Obtuso. p.139.

330 […] nos títulos [inscrições] de Twombly não se deve procurar nenhuma indução de analogia. Se a

tela se chama “The Italians” não se procura os Italianos em qualquer outra parte além do seu nome. Ibid. p.155.

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