• Nenhum resultado encontrado

A ESCRITA NA PINTURA

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 118-125)

CAPÍTULO 4 | QUANDO A PALAVRA É IMAGEM

4.4. A ESCRITA NO JAPÃO

4.3.3. A ESCRITA NA PINTURA

Tal como aconteceu com a escrita que adoptou os sinogramas de um modo muito particular e complexo, a pintura também sofreu uma evolução própria: a herança chinesa, assimilada desde o século VI, influencia profundamente a tradição pictórica japonesa, tornando-se compreensível que muitos dos códigos figurativos e espaciais sejam inspirados em convenções importadas do continente, as quais irão permanecer ao longo dos séculos. É o que acontece com a pintura narrativa da época Muromachi (fim séc. XIV-fim séc. XVI) que integra numerosos textos, comentários ou diálogos inscritos no espaço da imagem.

Este período adopta como modelo a pintura a tinta e água (que no Japão se chama

sumiê, ou sumi-e),198 seguindo regras compositivas muito próximas do modelo chinês.

Este, principalmente no que respeita à relação espacial entre imagem e texto, vai, no entanto, evoluir com variações que não havíamos encontrado na China, atribuindo-se ao texto uma importância crescente, que se faz sentir na sua maior extensão, mas separando-o de uma forma evidente da zona da pintura.

197 Caligrafadas do lado esquerdo dos sinais, lemos “Primeiro templo Zen no Japão”, seguido pelo selo

de Sengai. Os japoneses interpretam estes três sinais primordiais e abstractos como a metáfora gráfica e espacial dos três elementos: terra, fogo, água. A terra encaixa no quadrado, o fogo arde num triângulo e a água tende para o redondo. Ibid. p.120.

a palavra é imagem iconicidade do sinograma

|

115

Estelle Bauer199 tem vindo a investigar esta nova disposição, que parece querer evitar todo o tipo de mesclagem entre texto e imagem, impedindo a justaposição que predominava até aí.

A autora defende que estes trabalhos, perante o recurso sistemático aos dois tipos de códigos (gráfico e linguístico, por um lado, e iconográfico e figurativo, por outro) sobre um suporte único e homogéneo, afastam a confusão de fronteiras entre texto e imagem.

Tratar-se-ia, então, de, à luz de uma tipologia estética univalente, produzir, em simultâneo, caligrafias e pinturas ‘puras’.

A relação entre palavra e imagem, para além dos pressupostos já enunciados a propósito do caso chinês (o sinograma como imagem), aproxima-se mais do modelo tradicional de ilustração: imagem e texto coabitam no espaço, interagem, mas assumem-se como corpos distintos.

Período Muromachi, Séc.XV, rolo. 200

Leitura num bosque de

bambu, 1446, Tensho Shûbun, 1414|63. Museu Nacional de Tóquio Período Muromachi, Séc.XV, rolo, Rockefeller Collection of Asian Art.

201

No entanto, a relação entre texto e imagem, assume, desde o perído Hein,202 deliberadamente, a promiscuidade que o sumiê parece querer evitar.

Referimo-nos a várias tendências (algumas das quais específicas desta civilização)203 que se foram desenvolvendo em tipologias de representação específicas,

199 Investigadora do Centre de Recherche sur l’Extrême Orient de Paris Sorbonne.

200 INTRODUCTION TO TRADITIONAL EAST ASIAN CIVILIZATION: JAPAN – Muromachi Ink Painting.

Índex (#2 e #1).

201 THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART – Works of Art. Muromachi Period. NY: The Metropolitan Museum of Art, act. 2006. [consult. Jul. 2006] Disponível na Internet <URL http://www.metmuseum.org/.../ 08/eaj/ho_1975.268.38.htm>.

202 Séc. IX ao XII.

203 Le brouillage entre les deux systèmes de code peut d'ailleurs être poussé beaucoup plus loin,

notamment dans des phénomènes semble-t-il spécifiques au Japon. CENTRE D’ETUDE ET DE

L’IMAGE - Texto de apresentação. Paris: Université de Paris7, act. 2006. [consult. Jan 2007] Disponível na Internet <URL www.ceei.univ-paris7.fr.>

116 | sinograma no japão a palavra é imagem

mantendo ao longo dos tempos, em simultaneidade, uma presença constante, até aos dias de hoje.204

Embora não as possamos estudar exaustivamente, não poderemos deixar de as apresentar e de sucintamente as caracterizar, dadas as suas particularidades.

Vimos já que a caligrafia se pode compor sobre fundos elaborados, tanto ao nível da pintura dos papéis, como à preparação da sua pasta.

Esta preocupação denota a importância que a caligrafia tinha (tem) para os japoneses pois revela a intenção de valorizar os textos (sobretudo os poéticos e religiosos) dando-lhes um suporte ‘digno’ da sua forma e das suas mensagens. Simultaneamente, tal acto valoriza, reflexivamente, a imagem em que se inscreve.

É, pois, comum, independentemente do estilo em que se escreve (Kana, Kangi ou misto) que o texto se sobreponha, interpenetrando-as, imagens de fundo que tentam harmonizar-se com o sentido profundo do que se proclama.

Por vezes, composições sem figuração, criam ambientes mais ou menos sumptuosos, cujo brilho ilumina os sinogramas que neles pululam. Paisagens improváveis, cujos pormenores gráficos obrigam a uma observação atenta que permita a decifração da leitura.

Ao contrário do que acontece no estilo anteriormente referido, nestas pinturas/textos a simbiose entre os dois sistemas de representação parece ser, pois, um objectivo dos artistas.

Caligrafia Kana e pintura em rolo marcando o início do capítulo 40, “Os Ritos” (Minori), de O Conto de Genji, início do séc.XII. (Pormenor) Tesouro Nacional, Museu Goto, Tokyo. 205

204 Parece claro que, tal acontece na China, esta diversidade se liga às diferentes tendências ideológicas que se vão afirmando e condicionando a evolução da sociedade nipónica, sejam elas religiosas ou políticas.

205 Neste capítulo, Terna Violeta está a morrer e despede-se Príncipe do Genji. A qualidade da caligrafia, leve, tremente, faz eco do grande “patos” desta passagem, sugerindo a intensidade emocional e a natureza insubstancial da vida.

Imagem in: BOUDONNAT, Luise; KUSHIZAKI, Harumi - Traces of the brush: The art of Japanese

a palavra é imagem iconicidade do sinograma

|

117

Quando as composições são figurativas mantém-se essa relação de aproximação da letra ao texto, também aqui, independentemente do estilo de escrita e da corrente pictórica ou, mesmo, da época a que pertence a obra.

Nos casos em que se copiam, do chinês, os textos budistas, respeitando-se os seus caracteres e a organização da escrita, o texto surge como se tivesse sido escrito numa camada transparente que se justapõe à imagem. Legibilidade e visibilidade estabelecem entre si interferências mútuas, sem, no entanto, se interpenetrarem: antes prevalece o mecanismo de sobreposição.

No entanto, a influência recíproca entre texto e imagem reforça-se nos poemas caligrafados, em kana ou em escrita mista, sobre paisagens (ou vice-versa], em que cada elemento magnifica as características do outro.

O acordo gráfico é evidente, já não na sobreposição, mas, antes, pela interpenetração dos motivos gráficos (flutuantes) e pictóricos. Caligrafia e imagem tornam-se um todo, funcionando como imagem única.

Será, ainda, de salientar que estes trabalhos eram, frequentemente, executados em parcerias de poetas, pintores e calígrafos, o que denota o grau de especialização a que estas diferentes artes chegaram.

É o caso das imagens, que reproduzem parcialmente obras de dois autores incontornáveis — o calígrafo Hon’ami Koetsu e o pintor Tawaraya Sotatsu, que viveram nos séc. XVI e XVII.

Caligrafia de Hon’ami Koetsu, Pintura de Tawaraya Sotatsu, Início do séc.XVII. Segundo um poema de Fujiwara no Toshiyuki (?-907) Museu Nacional, Kyoto.206

Mesmo quando não se sobrepõem e se recusa a exuberância dos fundos profusamente trabalhados, a intenção evidente de relacionar escrita e imagem mostra- se dupla: por um lado existe uma coerência formal entre os dois sistemas de

206 Imagem in Ibid. p157.

118 | sinograma no japão a palavra é imagem

representação, por outro, um acordo dos respectivos conteúdos, como se vê na obra, quase ‘minimalista’, do budista Sengai Gibon.

Impossível distinguir As garças brancas Estão ou não lá? No entanto a cor dos corvos Distingue-se claramente na

neve.207

a) ashide-e

Mas este cruzamento entre os dois sistemas de códigos pode, ainda afirmar-se mais veementemente, na opinião de Anne-Marie Christin.208

É o que acontece com o chamado (ashide-e),209 um dos fenómenos tipicamente nipónico. Trata-se de uma prática iniciada por volta do séc. X.

Consiste numa escrita lúdica e pictórica que se esconde nas imagens; signos gráficos encriptados nos elementos figurativos, de forma mais ou menos afirmada, portadora de índices pictóricos e linguísticos, tem, normalmente, como função reenviar o espectador para um referente textual (sutra ou poema).

Esta é uma prática aristocrática que pressupõe a partilha, entre artista e observador, de uma cultura comum quer seja religiosa ou poética.

Este estilo poderia ser usado na decoração lacada de objectos de uso quotidiano, como caixas.

207 Caligrafia de Sengai Gibon, Corvos na Neve (Setchu garasu), início do séc.XIX. Museu Idemitsu, Tokyo ibid. p. 133.

208 cf. texto de apresentação do estado da investigação do ceei, univ. Paris7.

209 ashide-e:(Japanese: “reed-script picture”), decorative, cursive style of Japanese calligraphy, the

characters of which resemble natural objects, that is used to decorate scrolls, stationery, and lacquerware. The typical ashide-e is a decorative representation of a poem, in which stylized characters serve as both text and illustration. There are also ashide-e that do not represent a specific poem but a poetic sentiment. In: ashide-e." ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA ONLINE - arts, East Asian.

a palavra é imagem iconicidade do sinograma

|

119

A sua identificação exige um conhecimento profundo da escrita japonesa, bem como da respectiva cultura filosófica, literária e pictórica. Actualmente encontra-se a ser estudada por Claire Brisset.210

Pormenor do interior de uma caixa. 211

b) Moji-e

Outra forma de partilha dos dois códigos — escrita e imagem — são os moji-e, ou ‘imagens em escrita’. Esta é outra forma de uso figurativo do carácter de escrita.

Praticado sobretudo no período Edo (1603-1868), consiste no desenho do todo ou de parte de figuras a partir de caracteres, tanto Kana como Kanji.

O estudo que Marianne Simon-Oikawa212 realiza acerca deles incide sobre a dupla capacidade de serem, simultaneamente, imagem e escrita o que obriga à sua decifração, enquanto objectos mistos que associam dois médiuns heterogéneos.

Vendedor ambulante de louça, composto com caracteres de escrita, Moji-e. 213

Imagem para o novo ano, 1706. 32X22cm Museu de Honolulu. 214 210 Maître de conférences

principal (recherche) : EA335 (GReJa : Groupe de recherches sur le Japon en sciences humaines et sociales, UFR (LCAO) / UMR 7133 (Centre de recherches sur les civilisations chinoise, japonaise et tibétaine, CNRS / Collège de France / EPHE / U. Paris 7)). in texto de apresentação do estado da

investigação do ceei, univ. Paris7

211 Imagem in: ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA ONLINE - arts, East Asian.

212 Des Images en Écriture in CHRISTIN, Anne-Marie (direc.) - Histoire de l’écriture: de l’Idéogramme au

Multimédia.

213 Imagem in: CENTRE D’ETUDE ET DE L’IMAGE - texto de apresentação.

214 Imagem in: Des Images en Écriture in CHRISTIN, Anne-Marie (direc.) - Histoire de l’écriture: de

No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 118-125)