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C APÍTULO 5 | A PALAVRA NAS VANGUARDAS ARTÍSTICAS INTERNACIONAIS

5.3. A PALAVRA CUBISTA

Picasso e Braque afastaram-se, deliberadamente, do mundo imaginário dos simbolistas e expressionistas. O cubismo debruçou-se sobre si próprio, focando-se na representação, sem o desejo de exprimir ou desvendar sentidos, mas sim o de reinventar a pintura. Ao fazê-lo, os cubistas, não procuram outras realidades, antes operam com e sobre a realidade que os rodeia. Integraram-na metaforicamente, mas também literalmente, nas suas obras. Foi o que fez Picasso ao pintar dois quadros onde introduziu o logótipo publicitário “KUB” reaproveitado, numa provável alusão ao cubismo, movimento se iniciava.

Guillaume Apollinaire, defensor do cubismo, sustentava, também, que o poeta e o artista modernos deviam traduzir o impacto dos fenómenos sociais nas suas obras:

Perguntamo-nos porque é que o poeta não terá uma liberdade pelo menos igual [à dos média] e está ainda ligado, numa época do telefone, da telegrafia sem fio e da aviação, a mais circunspecções relativamente aos espaços.235

Em 1911, Braque começou a introduzir letras e palavras nos seus quadros, as quais pintava com a técnica do pochoir e depois à mão livre.236

Braque e Picasso em breve encheram as suas composições cubistas de textos: títulos de jornais, etiquetas de garrafas e partituras. A estes signos verbais pintados na tela, seguiram-se, mais tarde, colagens de verdadeiros recortes de imprensa, etiquetas, anúncios publicitários, cartões de visita ou outros elementos estranhos à pintura, como pedaços de papel pintado e maços de tabaco, colados à superfície da tela ou do papel.

Nas colagens, os pequenos caracteres cortados dos jornais parecem funcionar mais como texturas visuais do que como texto. Deste ponto de vista, a tipografia contribui para a dimensão da obra, concebida como um jogo entre a planimetria da superfície e uma tridimensionalidade artificial. Para Braque as letras pintadas nas telas deviam ser entendidas como formas em que nada devia ser deformado porque, sendo

camadas planas de tinta, estavam fora do espaço criado pelo resto da pintura e a sua

235 APOLLINAIRE, Guillaume - L’Esprit Nouveau et les poètes (1918). Mercure de France. p.6.

236 Braque pertencia a uma família de pintores decoradores e o seu pai dirigia uma empresa de pintura de construção civil. Os truques deste ofício iriam desempenhar um papel essencial no seu trabalho de artista, principalmente a técnica do pochoir, que permitia ao artesão pintar facilmente letras.

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presença no quadro, por contraste, permitia distinguir os objectos que se situavam

nesse espaço dos que estavam fora.237

Estes elementos provinham de fontes muito diversas do dia-a-dia, podendo organizar-se segundo algumas categorias:

— títulos de jornais, raramente usados integralmente;

— recortes de imprensa relativos a acontecimentos políticos da actualidade; — anúncios publicitários da imprensa sobre uma grande gama de produtos; — fragmentos de cartazes;

— letras de montras de lojas ou de cafés;

— prospectos de concertos, peças de teatro, filmes; — partituras ou capas de livros;

— marcas e logótipos, em especial de bebidas.

Eram, portanto, a rua, o café e o atelier que os autores “colavam” nas suas telas. Esses pedaços de materiais reconhecíveis, aparecem no meio das composições de imagens decompostas e fragmentadas, funcionando como elementos indicativos que permitem encontrar referências do mundo real.

É significativo que os textos cubistas bem como os materiais utilizados pelos artistas nas colagens — papel pintado ou embalagens, mais tarde, Ripolin (uma tinta lacada empregue por Picasso em inúmeras obras) —, numa opção ideológica clara,238 recuperem a cultura popular e não a erudita. É o que acontece com o uso recorrente de

Le Journal, um periódico de divulgação diária que custava dois tostões (sous). Os

anúncios publicitários fazem a propaganda de produtos vulgares de duvidosa qualidade.239 As garrafas presentes nas naturezas mortas fazem parte do quotidiano do mundo do trabalho — Bass, Suze, Pernod, Anis del Mono.

Foi, porventura, a mesma razão que fez com que os cubistas tivessem uma preferência pela tipografia de letras grosseiras e as letras pintadas à mão eram

237 BRAQUE, Georges - Braque, la peinture et nous. Cahiers d’art. [S.l]: [s.n.]. 29º anée, nº1. (1954).p. 16.

238 A pobreza dos materiais utilizados, a banalidade dos tipos adoptados bem como a extrema

simplicidade dos recortes das colagens executadas pelos pintores cubistas exprimiam a sua rejeição voluntária dos valores da ‘grande’ arte e também do bom gosto e do artesanal, de todas essas competências cuja razão de ser se encontrava comprometida pelos novos meios de produção em série. In MORLEY, Simon - L’art-les Mots. p. 40.

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executadas com menor perícia do que o a do pintor de letras profissional: davam-lhes uma forma deliberadamente grosseira ou usavam pochoirs puramente funcionais.240

Sabemos que Braque, não pretendia que os textos fossem lidos. Ele atribuía-lhes um papel puramente formal, chamando a atenção para a dimensão visual da escrita. Considerava, portanto, as letras como elementos chave estruturais da composição e era enquanto tal que tirava partido delas.241

As palavras fragmentadas pintadas por Braque e Picasso transformam-se, pois em figuras espaciais, portadoras de alusões que as reenviam para o meio em que os cubistas trabalhavam. No entanto, mesmo truncadas e pretensamente dissociadas do papel de significante na cadeia verbal, torna-se claro que a partir do momento em que as letras formam palavras, elas convidam o espectador a lê-las: levam-no a uma interpretação linguística, transformando-o em leitor.

Este aspecto discursivo é também manifesto nas colagens em que os artistas incorporam frases inteiras, perfeitamente legíveis. Aqui a escrita não pode ser apreendida simplesmente como um novo tipo de trama ou de estrutura inscrevendo-se na lógica da composição, porque ela apela também para uma interpretação em relação à dimensão discursiva da imagem.

De vez em quando, acontecimentos políticos contemporâneos irrompem na obra através dos textos colados. Esta ligação à História é evidente numa série de colagens feitas por Picasso em 1912, em que recortes de jornal relatam episódios do conflito dos Balcãs.242

Os trocadilhos complexos e muitas vezes escabrosos presentes nas obras de arte cubista sob formas tanto verbais como visuais, são também o testemunho do facto de o texto que elas apresentam ser muitas vezes para ser lido.243 Esta mistura de jogos de

240 As extravagâncias da Arte Nova e o seu lettering elegante, marca de luxo, raramente tiveram aplicação no meio desta frugalidade da arte cubista. Foi via pochoir — um dos utensílios base do pintor de construção civil e do operário fabril — que as palavras foram pela primeira vez introduzidas na pintura cubista. in MORLEY, Simon - L’art-les Mots. p.42.

241 O “J”, por exemplo, harmonizava-se, segundo o pintor, com a curva dum copo (ver Georges Braque,

Le programme de cinema, 1913).

242 Ver a análise semiológica, exaustiva a que Rosalind Krauss procede em A Circulação do Signo sobre estas obras. KRAUSS, Rosalind E. - The Picasso Papers. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1998-1999. ISBN 0-262-61142-2. p.25-88.

243 ROSEMBLUM, R. - Picasso and the Typography of Cubism. in PENROSE, R.; GOLDING, J. (eds.) -

Picasso: 1881-1973. Londres: [s.n.], 1973. Para uma versão mais recente, ver Cubism as Pop Art, in

VARNEDOE, Kirk; GOPNIK, Adam - Modern Art and Popular Culture: Readings in High and Low. NY: MOMA, 1990. ISBN-13: 9780870703539.

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palavras muitas vezes pueris ou sensuais, irónicos e cáusticos, são elaborados a partir do mundo da publicidade, dos artigos de imprensa e das canções populares.244

Por vezes o artista joga com as componentes verbais e visuais das suas obras numa interpenetração de sentidos que se complementam mutuamente.245

As referências musicais presentes nas obras estabelecem decerto uma ligação com o mundo exterior, empregam as palavras para gerar efeitos sinestésicos. Estas referências tanto figurativas como verbais, abundam nas obras de Braque, onde remetem mais para a música clássica do que para a popular. Nestes trabalhos encontra-se muitas vezes, por exemplo, o nome de Bach, palavras como SONATE, VALSE ou ARIA, ou ainda partituras coladas. Da mesma forma que os fragmentos de palavras, a evocação da música por este tipo de referências, abre a pintura a uma série de ligações que, indo muito para além do domínio puramente visual ou espacial, nos transportam para uma dimensão auditiva e também oral e temporal.

É claro que apesar das suas referências à vida quotidiana, as palavras são utilizadas de uma forma diferente daquela que preside em geral ao seu emprego. Os fragmentos do texto são retirados ao mundo exterior mas o modo de leitura necessário para os decifrar é completamente diferente da linearidade imposta pelas estruturas convencionais do texto impresso.

Por oposição à mecanização da leitura e aproveitando as novas normas de impressão, os cubistas propuseram ao leitor/espectador uma experiência sincopada, qual constelação de estruturas, palavras e formas estabeleciam entre si relações múltiplas e mutáveis. Os textos não fornecem qualquer fio condutor claro e muitas vezes não servem de clarificação ao conteúdo da obra.

A obra cubista está presa num jogo complexo, com um repertório de signos que não param de se metamorfosear sem nunca estabelecerem uma relação fixa com a realidade. No interior deste sistema, um pedaço de jornal pode tornar-se o rótulo de

244 Na obra de Picasso, as duas palavras LE JOURNAL, por exemplo, não param de se metamorfosear,

tornando-se à vez em LE JOUR e LE JOU (o que faz pensar em “jogo”); noutro caso, o artista suprimiu as letras JO, conservando apenas URNAL, numa alusão deliberada à palavra URINAL (urinol). in MORLEY, Simon - L’art-les Mots. p.42.

245 Em ‘Carafon et verre (Au Bon Marche)’, por exemplo, colou um desenho publicitário representando

um busto de mulher com roupa interior por cima da marca do anúncio de lingerie e bordados do grande armazém citado no título e em oposição, colocou por baixo, em pequenos caracteres, apontados para uma ranhura, as palavras TROU ICI, evocando claramente um dos aspectos essenciais da anatomia feminina. Ibid. p.42.

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uma garrafa, o tampo de uma mesa, uma zona de sombra ou uma forma plana do quadro e continuar a ser um texto legível.246

Assim, o texto torna-se, simultaneamente, imagem e fonte de informação e o verbal já não pode ser considerado como fazendo contraponto ao visual. Ele não é senão um dos aspectos de uma composição mais vasta, segundo a qual uma pintura é um tecido complexo de signos visuais que retiram o seu sentido da sua participação numa sequência de convenções ligadas a regras e devendo ser lidas pelo espectador de forma discursiva.

E enquanto as palavras, em princípio reservadas ao escritor, entravam completamente no domínio das artes plásticas, poetas e romancistas, sob influência das experiências artísticas, forjavam um novo estilo caracterizado pelo emprego de uma sintaxe explodida. Assim, a fragmentação cubista do espaço não é estranha às obras inovadoras de escritores tão diferentes quanto James Joyce, Virgínia Woolf, T.S. Eliot, Ezra Pound ou Gertrude Stein.

246 Christine Poggi faz uma abordagem mais subtil à obra de Picasso, em que tenta mostrar a existência

de aproximações entre a sua estrutura formal e o modelo linguístico, nomeadamente no que concerne à arbitrariedade do signo, a presença dos eixos sintagmático e paradigmático, a importância do contexto significativo, etc.: Alguns historiadores de arte, incluindo Leo Steinberg, Rosalind Krauss,

e mais recentemente Yves-Alain Bois , compararam a relação estrutural das formas em “A Guitarra de Picasso”, tal como nas suas colagens, com as teorias linguísticas contemporâneas de Ferdinand de Saussure. Sem induzir que Picasso tenha tido qualquer conhecimento das teorias revolucionárias de Saussure, estes historiadores de arte defenderam que uma compreensão paralela da natureza arbitrária dos signos dá forma aos trabalhos sintéticos cubistas de Picasso, especialmente os executados em técnicas construtivas de colagem. Sabendo isto, a critica das teorias de representação prévias, que permanecem na base de ambos “A Guitarra” e os trabalhos de colagem subsequentes, é vista como a inaugurar uma revolução nas artes visuais comparável à inaugurada por Saussure nas linguísticas. cf. POGGI, Christine - In Defiance of Painting: Cubism, Futurism, and the invention of Collage. New Haven-London: Yale University Press, 1992. ISBN 0-300-05109-3. p.45.

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No documento A palavra na pintura portuguesa no séc. XX (páginas 139-144)