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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ALEXANDRE MANDUCA A MÁQUINA NO BIOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO BIOPOLÍTICA

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Academic year: 2021

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MÁQUINA NO BIOLÓGICO

:

A CONSTRUÇÃO BIOPOLÍTICA

DO PRÓXIMO HUMANO

D

OUTORADO EM

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OMUNICAÇÃO E

S

EMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica sob a orientação do Prof. Dr. Rogério da Costa.

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Este trabalho foi realizado com bolsa de estudo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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Agradecimentos

Desejo agradecer a todos que colaboraram para que esta jornada fosse possível, em especial: prof. Dr. Rogério da Costa, inestimável orientador, profª. Drª. Helena Katz, profª. Drª. Lúcia Leão, prof. Dr. Jorge de Albuquerque Vieira, profª. Drª. Christine Greiner, profª. Drª. Lúcia Santaella, prof. Dr. Carlos José de Campos Reis (Unifesp), Cida Bueno (secretária do programa de pós) e Rosangela Aparecida de Queirós Manduca, pela paciência e companheirismo, minha eterna gratidão. Agradeço também a Capes pela bolsa de fomento e aos amigos e colegas do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica que leram partes originais deste trabalho e cujos comentários foram extremamente úteis para esta tese.

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“A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”.

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RESUMO

MANDUCA, Alexandre. A máquina no biológico: a construção biopolítica do

próximo humano. 103f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) –

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – São Paulo, 2017.

O recorte apresentado nesta tese é a construção de um novo ser humano por meio da biopolítica e dos discursos do imaginário ciborgue, do corpo-máquina e da máquina no corpo biológico. O corpo artificialmente incrementado eleva a vida, enquanto dispositivo biopolítico, a um novo patamar, fruto de um sintoma do imaginário cultural e comunicacional sobre novas possibilidades de gestão do corpo, que permeiam a apropriação, manipulação e edição da vida. Acredita-se que, mediante um corpo híbrido, o ser humano possa se distender e expandir-se para abraçar aparatos maquínicos e possa servir como objeto dentro da lógica capitalista e da sociedade de consumo. O ciborguismo presente na literatura e no cinema contribui para esse imaginário de um novo ser humano que poderá ser diferente ‒ um próximo humano, desde o clássico monstro de Frankenstein, até os mais recentes filmes de ficção científica, nos quais os seres híbridos são padrões de superação de um corpo que parece obsoleto. A biopolítica reforça esse momento de forma conceitual e precisa quando transfere ao humano a administração da própria vida, o que pode ser observado tanto em Michel Foucault, como nos estudos de Giorgio Agamben, Antonio Negri e Nikolas Rose, principal norteador deste trabalho. Nesse horizonte, avista-se uma nova jornada do próximo humano, que, por meio do corpo, sofre mutações e é ampliado com experimentos maquínicos, como enxertos, próteses, chips e silício. Estes são potencializados para os deficientes físicos e para as tecnologias assistivas, no fenômeno da bioidentidade, e na qualidade de um corpo estendido a todos os aparatos possíveis, como elemento biopolítico que não deixa de ser biológico. A trajetória desta tese é a de discutir o humano como um projeto inacabado, não como um corpo híbrido ou ciborgue, mas um corpo pronto para a inclusão da máquina no humano por meio da interferência no DNA, tornando-se pura informação sem deixar de ser biológico. A máquina no biológico é o corpo estendido, abrindo a possibilidade de adaptar-se aos novos aparatos maquínicos.

Palavras-chave: Próximo humano. Ciborguismo. Biopolítica. Máquina no biológico.

(9)

ABSTRACT

MANDUCA, Alexandre. The machine in the biological: the biopolitical

construction of the next human. 103f. Tese (Doutorado em Comunicação e

Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – São Paulo, 2017.

The selection presented in this thesis is the construction of a new human being by means of Biopolitics and of such discourses as the cyborg imaginary, the machine-body and the machine in the biological body. The artificially enhanced body brings life, as a biopolitical device, to a new level, fruit of a symptom of the cultural and communicational imaginary about new possibilities of body management that permeate the appropriation, manipulation and edition of life. It is believed that through a hybrid body the human being would be able to distend and expand itself in order to embrace machinic devices and to serve as an object within the capitalist logic and the consumption society. The Cyborgism in literature and in cinema contributes to this imaginary of a new human being who might be different ‒ a next human, from the classic Frankenstein’s monster to the most recent science fiction films, in which hybrid beings are patterns of overcoming a body that looks obsolete. Biopolitics reinforces this moment in a conceptual and precise way when it transfers to the human the management of one's own life, as observed both in Michel Foucault and in the studies of Giorgio Agamben, Antonio Negri and Nikolas Rose, the main guiding principle of this work. In such scenario, one sees a new journey of the next human, who, through the body, undergoes mutations and is extended by use of machinic experiments, such as grafts, prostheses, chips and silicon. These are potentialized for physically disabled people and for assistive technologies; also, in the Bioidentity phenomenon and in the quality of a body extended to all possible apparatuses, as a biopolitical element that does not cease to be biological. The trajectory of this thesis is to discuss the human as an unfinished project, not as a hybrid body or as a cyborg, but a body ready for the inclusion of the machine in the human through the interference in the DNA. It becomes thus pure information, without ceasing to be biological. The machine in the biological is the extended body, opening the possibility of adapting to the new machinic devices.

Keywords: Next human. Cyborgism. Biopolitics. Machine in the biological body.

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Lista de figuras

Figura 1 – Golem e o rabino Loew, desenho de Mikolas Ales...27

Figura 2 – Cenas do filme Metropolis...32

Figura 3 – Boris Karloff no filme Frankenstein...33

Figura 4 – Cena do filme Robocop...34

Figura 5 – Cena do filme Cyborg - A arma definitiva...35

Figura 6 – Cena do filme O homem bicentenário...36

Figura 7 – Cena do filme Eu, robô...37

Figura 8 – Cena do filme A.I. - Inteligência artificial...37

Figura 9 – Cena do filme Blade Runner - O caçador de androides...38

Figura 10 – Cena do filme Blade Runner 2049...39

Figura 11 – Cena do filme O exterminador do futuro...40

Figura 12 – Cena do filme Matrix...41

Figura 13 – Cena do filme Matrix Reloaded...42

Figura 14 – Cena do filme Matrix Revolutions...42

Figura 15 – Cena da série de TV O homem de seis milhões de dólares...43

Figura 16 – Cena da série de TV A mulher biônica...44

Figura 17 – Kevin Warwick e sua mão mecânica...77

Figura 18 – Neil Harbisson e sua antena que “escuta” cores...78

Figura 19 – Chris Dancy, o ciborgue americano...79

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Figura 21 – Braço mecânico do tatuador Sheitan Tenet...80 Figura 22 – Exoesqueleto de Miguel Nicolelis...82 Figura 23 – Paraplégico usa exoesqueleto de Nicolelis para chutar uma bola na abertura da Copa Fifa 2014...83

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Sumário

Introdução ... 13

Capítulo 1 - Artefatos e representações do ciborgue ... 18

1. O nascimento do ciborgue ... 19

2. A construção do imaginário ciborgue ... 22

3. O autômato na literatura ... 26

4. Androides e robôs no cinema ... 32

5. A construção do próximo humano ... 45

Capítulo 2 - A evolução da biopolítica ... 51

1. A vida como referência política ... 52

2. O governo dos vivos e a regulação da vida ... 55

3. Vida nua, poder soberano e império ... 59

4. A reinvenção da vida ... 65

Capítulo 3 - A jornada do próximo humano ... 69

1. Os corpos-monstros hoje ... 70

2. Humano em mutação ... 73

3. Amplificadores de corpos ... 77

4. Tecnologias assistivas e bioidentidade ... 84

5. Corpo estendido ... 86

Conclusão ... 88

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Introdução

A alvorada do século XXI apresenta-nos um ambiente de transformações biotecnológicas, respaldadas, principalmente, pelas promissoras experiências realizadas no século XX, como os implantes de órgãos, fármacos potentes contra bactérias e vírus, fertilização in vitro, alteração genética de grãos e plantas (que estão transformando a agricultura), intervenções genéticas nos animais e mapeamento e recombinação do DNA humano.

Os esforços humanos realizados há centenas de anos para melhorar as plantas, utilizando-se enxertos e outras técnicas, e as tentativas de alterar a sua própria linhagem, escolhendo os melhores parceiros para se reproduzirem, foram acelerados recentemente em laboratórios, com modificações genéticas sem precedentes. Essa tecnologia chega ao corpo no âmbito molecular e com os implantes de próteses, marca-passos, órgãos artificiais e a colocação de chips que possam potencializar o corpo.

Esse ambiente de grandes novidades tem apresentado muitos desafios e dilemas sobre o humanismo e sobre as interferências no corpo, contribuindo para um imaginário de alteração e progresso em busca da melhor qualidade de vida e da longevidade.

O corpo vem sofrendo alterações com esses novos aparatos considerados maquínicos, mas o corpo não deixa de ser corpo, nem menos biológico. O corpo está aberto à expansão e à distensão, recebendo essas intervenções e se adaptando a elas. Mesmo assim, muitos pesquisadores definiram essas mudanças no corpo e em sua capacidade de adaptar-se como uma nova era do humanismo, autodenominando-nos pós-humanos ou pós-orgânicos.

O prefixo pós aqui empregado denota uma superação do atual estado do corpo, não estando relacionado a alterações culturais ou comportamentais, como o termo pós-humanismo parece indicar. Esse pós-humano propõe uma transformação radical na superação de um humano que não apresenta mais condições de continuar enfrentando os desafios e vicissitudes do contemporâneo e que precisa ser reparado, ou até mesmo superado.

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Essa nova composição do corpo, agora pós-humano, que parece estar em crise, retrata um momento caro à análise biopolítica de uma era de mutações com alterações moleculares para receber elementos não biológicos, como próteses e outros artefatos. Um ambiente fértil para transformar o corpo biológico em um híbrido, como um ser cibernético.

Trata-se de um momento biopolítico, visto que essas transformações são exploradas pelo capitalismo no desenvolvimento de novas tecnologias, na especialização e multidisciplinaridade dos profissionais de saúde e na comunicação dos avanços pelos meios de comunicação, despertando o interesse e o investimento das pessoas para alcançar essas novas possibilidades.

O termo biopolítica vem sendo tratado de várias formas, mas foi Michel Foucault quem melhor definiu sua ação e abrangência, principalmente no relevante texto “Direito de morte e poder sobre a vida”, presente no livro História da

Sexualidade I: a vontade de saber, no qual ele desenvolve a questão sobre como

se darão as novas formas de controle da vida. Nesse momento, Nikolas Rose afirma que Foucault notou que o campo da biopolítica tomou novas formas, abrangendo a gestão das cidades, o espaço e a sociabilidade. Em tal contexto, a biopolítica configura-se como um novo olhar sobre a vida, que, para Rose, passa a ser a política da própria vida. O lugar mais revelador dessa nova política é o campo da saúde, onde os pacientes são cada vez mais conduzidos a se tornarem consumidores ativos e responsáveis pela gestão de suas vidas, atreladas aos serviços médicos e a seus produtos. Essa gestão política da vida é que impulsiona a noção da saúde como capital, tornando o corpo um dos focos privilegiados do consumo.

A nova composição do corpo e o interesse das pessoas e dos profissionais, com suas especialidades, em lidar com a vida apresenta um cenário que gera algumas indagações: pode-se dizer que o corpo passa por uma interferência sem limites? Que esse corpo está deixando de ser orgânico porque recebe aparatos tecnológicos? Que o humano está obsoleto, precisando de um upgrade? Que nos tornaremos agora pós-humanos, visto que o corpo chegou no ápice de sua evolução?

Essas são as indagações que suscitam esta tese e que serão respondidas ao longo deste trabalho. De certa forma, este não é o momento de fazer uso de um

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exercício de futurologia, mas sim de mapear o presente. Portanto, o problema de pesquisa que norteia este trabalho é: como pensar esse novo humano com artefatos maquínicos e interferências no DNA?

Nas últimas décadas, a engenharia biológica de intervenção na vida tomou proporções gigantescas. Impulsionada pelo projeto do Genoma Humano e pelas interferências no DNA, essa área desencadeou inúmeras possibilidades de manipulação e implantes de partes inorgânicas no corpo, tanto para complementar funções que mal funcionam, quanto para ampliar a potencialidade do corpo e manter sua longevidade. Tais possibilidades fortalecem dois mitos que rodeiam a vida humana: a criação de um novo ser e o ciborgue.

A criação, uma prerrogativa divina, é exercida pelo homem nas fábulas sobre o Golem de Praga e no monstro de Frankenstein, por exemplo, que serão tratados neste trabalho. A possibilidade de criar fascina o humano, tornando-se, quase sempre, um castigo no qual a criatura volta-se contra o criador. O outro mito é o ciborgue, uma junção homem-máquina criada como uma possibilidade técnica nos anos 1960 e que a cultura de ficção científica popularizou. O ciborgue está hoje mais próximo de nós do que se imagina: o uso de elementos não biológicos no corpo aumentou consideravelmente, convertendo-se em objetos de expressão humana com funcionalidades úteis para melhorar o dia a dia. Esse corpo está mais aberto a aparatos e tem sido alterado por artistas e cientistas que incrementam o corpo com próteses e chips em experimentos inusitados.

O corpo artificialmente incrementado eleva a vida, enquanto dispositivo biopolítico, a um novo patamar, fruto de um sintoma do imaginário sobre novas possibilidades de gestão do corpo, que permeia a apropriação, manipulação e otimização da vida. Acredita-se que, por meio de um corpo híbrido, o ser humano possa distender-se e expandir-se para abraçar aparatos maquínicos, podendo servir como objeto dentro da lógica capitalista e da sociedade de consumo. Mas até que ponto esse corpo deixa de ser biológico para ser maquínico? Será que somos todos ciborgues? Será que somos híbridos?

Voltando ao problema de pesquisa deste trabalho, em como pensar este novo humano com artefatos maquínicos dentro do campo discursivo da biopolítica, levantamos algumas hipóteses: (1) fatos recentes, como implantes de chips, próteses e outros elementos artificiais, estão contribuindo para o corpo híbrido, mas

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não nos tornam menos biológicos; (2) esse imaginário de um corpo ilimitado e manipulável está a serviço do capital e de suas muitas possibilidades comerciais de serviços médicos e informáticos; (3) as novas tecnologias deixam de se preocupar com saúde e doença e passam a agir no presente para garantir o futuro com mais excelência nos corpos; (4) o corpo está sendo manipulado com recombinações genéticas, mas, em contrapartida, esse humano continua humano; (5) estamos produzindo um corpo ainda mais biológico, que se estende para receber os aparatos maquínicos, sem deixar de ser humano.

Para sustentar esta tese e comprovar essas hipóteses, o trabalho recorre aos seguintes instrumentos metodológicos: (1) pesquisa bibliográfica sobre os conceitos desse novo humano e sobre a biopolítica, passando pelo conceito do pós-humano e pela criação do corpo biocibernético; (2) trabalho de arqueologia e mapeamento em relação à construção do discurso do ciborgue e do novo humano.

O objetivo deste trabalho é debater esse discurso de construção do ser híbrido e a possibilidade de uma nova era denominada “pós-humanismo”, além de averiguar como funciona esse instrumento biopolítico de aceitação e de reconhecimento da necessidade do humano de governar a própria vida em busca de bem-estar e longevidade. Buscamos também identificar como será esse corpo, se mais maquínico, se híbrido, se mais biológico.

Para alcançar esses objetivos, o trabalho está dividido em três partes: no primeiro capítulo, Artefatos e representações do ciborgue, desenvolve-se a origem do ciborguismo e como a literatura e o cinema, principalmente, ajudaram a criar esse imaginário de um pós-humano em nossa cultura. São abordados desde o clássico monstro de Frankenstein, que norteia toda uma geração de escritores e artistas sobre a possibilidade de criação, até os mais recentes filmes de ficção, que apresentam seres híbridos de toda natureza.

O segundo capítulo, A evolução da biopolítica, apresenta a discussão sobre a biopolítica desde os estudos do sueco Rudolf Kjellén, no início do século XX, passando por Michel Foucault, que inaugura uma nova fronteira para o termo e introduz o biopoder, até os estudos de Giorgio Agamben, Michael Hardt, Antonio Negri e Nikolas Rose, principal norteador deste trabalho.

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E, por fim, o terceiro capítulo, A jornada do próximo humano, discute os corpos-monstros na atualidade e as mutações no corpo que nos colocam no meio do processo de mudança, sob o ponto de vista biopolítico. Também, em que medida o corpo está sendo ampliado com experimentos maquínicos, como enxertos, próteses, chips e silício; a potencialização do corpo para os deficientes físicos e suas tecnologias assistivas no fenômeno da bioidentidade, e como esse corpo, enquanto elemento biopolítico, foi estendido a todos os aparatos possíveis, sem deixar de ser biológico.

A construção desse novo humano passa por nossa tese: desde uma arqueologia do ser híbrido até a força dos dispositivos biopolíticos. A tese desenvolvida ao longo destes capítulos não reforça o pessimismo ou a esperança de que estejamos diante de uma nova era pós-humana, e sim o debate acerca da capacidade do corpo de se adaptar para receber intervenções. O discurso do imaginário ciborgue está cada vez mais solidificado em nossa cultura e a comunicação na mídia reforça isso. Mas até que ponto nós deixamos de ser humanos? Em que ponto o biológico dá espaço para o maquínico? Este trabalho intenta mapear o presente e o estado da arte nesse campo de pesquisa.

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Capítulo 1

Artefatos e representações

do ciborgue

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1.1 O nascimento do ciborgue

Yuval Noah Harari, professor israelense e doutor em História pela Universidade de Oxford, em seu best-seller internacional, Sapiens ‒ uma breve

história da humanidade (2015), apresenta um panorama histórico do Homo Sapiens. Ele descreve a jornada humana desde quando era um “animal

insignificante” na pré-história até os dias atuais, e traça um perfil do seu fim quando “transcende os limites” e “começa a violar as leis da seleção natural, substituindo-as pelsubstituindo-as leis do design inteligente” (HARARI, 2015, p. 408).

Harari divide a história do ser humano em três revoluções: cognitiva, agrícola e científica. A revolução cognitiva é marcada pelo surgimento do homo sapiens dentro da seleção natural, superando seus antepassados. A revolução agrícola é a que trouxe autossuficiência ao ser humano e permitiu-lhe fixar-se em povoados e cidades. E a revolução científica trouxe avanços tecnológicos que permitiram desenvolver as ciências, as artes, a literatura e o capitalismo. Nessa última revolução, o homo sapiens dinamiza sua evolução, com o design inteligente, de três maneiras: “por meio de engenharia biológica, engenharia ciborgue (seres que combinam partes orgânicas e inorgânicas) e engenharia de vida inorgânica” (HARARI, 2015, p. 410).

A engenharia biológica é uma integração entre áreas científicas distintas, que ocorreu nas últimas décadas, mas que tomou proporções muito maiores com a manipulação genética impulsionada pelo projeto de Genoma Humano e a interferência no DNA. A engenharia ciborgue é a combinação de partes orgânicas e inorgânicas que complementam funções humanas que mal funcionam ou que foram afetadas por eventos externos. E a engenharia de vida inorgânica pretende criar seres como robôs ou supercomputadores capazes de realizar tarefas impensáveis ao ser humano.

Atenta a essas mudanças nos corpos, a feminista Donna Haraway apresentou, em 1985, seu “Manifesto ciborgue” (2013), no qual decreta que todos nós somos, de alguma maneira, ciborgues, tanto porque temos óculos para corrigir a visão, aparelhos auditivos, marca-passos, pernas e braços mecânicos, quanto por outros dispositivos que a imaginação científica ainda pode criar. Também chamado de biocibernético, este ser revigorado estabelece um novo estatuto do corpo com

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inúmeras possibilidades, aliado à engenharia genética e à vida artificial (SANTAELLA, 2003, p. 181-182). Segundo Kunzru (2013, p. 122-123), os ciborgues estão entre nós há décadas. Em 1953 uma moça de 18 anos recebeu uma máquina construída a partir de uma combinação de pulmão e coração. Em 1958, o primeiro implante de marca-passo foi realizado, e no final dos anos 50, uma pequena bomba osmótica (utilizada para a liberação de medicamentos no organismo) foi implantada em um rato.

O termo ciborgue, longe do que a ficção pode criar, foi usado pela primeira vez no artigo “Cyborgs and space” (1960), do engenheiro Manfred Clynes e do psiquiatra Nathan Kline, após uma experiência com alteração fisiológica em um rato no Hospital Estadual de Rockland, de Nova York (EUA). No artigo, a dupla descreve um “homem ampliado” com alterações de suas funções corporais para melhor se adaptar a viagens espaciais. O termo ciborgue (cyborg) vem da junção da palavra cybernetic organism, tendo sido também utilizado por Clynes na introdução do livro de D. S. Halacy, Cyborg: evolution of the superman (1965), na qual discorre sobre uma “nova fronteira” para o ser humano.

Ciborgue trata-se, então, de “um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (HARAWAY, 2013, p. 36). A ficção científica possui diversos ciborgues e a medicina moderna também está cheia deles, “uma junção entre organismo e máquina, cada qual concebido como um dispositivo codificado, em uma intimidade e com um poder que nunca, antes, existiu” (HARAWAY, 2013, p. 36).

A partir dessa constatação, Donna Haraway diz que ela é um ciborgue, nem tanto porque está relacionando o ser humano a alguma tecnologia futurista ou irreal (KUNZRU, 2013, p. 22), mas aos avanços da medicina e da ciência em uma conexão íntima entre pessoas e tecnologia, formando um corpo híbrido em uma nova ciência chamada de “cibernética”.

A cibernética1 foi utilizada pela primeira vez por Norbert Wiener no livro

Cybernetics: or the Control and Communication in the Animal and the Machine

1 O termo “cibernética” vem do grego kybernetike, tendo sido utilizado por Platão (séc. V a. C.) para

designar “a arte da pilotagem”, no sentido de “a arte de dirigir os homens”. O francês Andre-Marie Ampére (1775-1836) também utilizava o termo no sentido de “a ciência dos meios de governo assegurando aos cidadãos a possibilidade de usufruir plenamente as benesses deste mundo”. O

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(1948), um livro extremamente técnico que, posteriormente, foi reescrito (em 1950) para um público leigo com o título de O uso humano de seres humanos. Em ambos Weiner “apresenta as hipóteses e o corpo fundamental da cibernética, resultados de vários anos de pesquisa e interação com pesquisadores de diversas áreas científicas, incluindo as ciências sociais” (KIM, 2004).

Wiener entendia a cibernética como campo que inclui o estudo da linguagem e das mensagens enquanto meios de dirigir as máquinas, computadores e autômatos durante pesquisas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para reunir todas essas ideias, ele cunha o termo “cibernética”, derivado da palavra grega

kubernetes “o homem que dirige” ou “piloto” de barco (timoneiro) que controla um

navio ao leme, observando sua posição para evitar bater em rochas. Além disso,

kubernetes tem correspondência no latim com gubernator, a máquina de leme

utilizada em navios, o que seria um dos mais antigos dispositivos a incorporar os princípios estudados pela cibernética (KIM, 2004). Essa máquina é parte de um circuito de feedback que recebe um input do ambiente, como velocidade do vento, do tempo e corrente marítima, e alerta o timoneiro para que guie longe do perigo. Segundo Kunzru (2013, p. 124-125), a cibernética de Wiener seria:

Uma ciência que explicaria o mundo como um conjunto de sistemas de

feedback, permitindo o controle racional de corpos, máquinas, fábricas,

comunidades e praticamente qualquer outra coisa. A cibernética prometia reduzir problemas “confusos”, em campos tais como a economia, a política e talvez a moral, à condição de simples tarefa de engenharia: uma coisa que se poderia resolver com lápis e papel ou, na pior das hipóteses, com um dos supercomputadores do MIT2.

Esse modelo de cibernética levou à concepção do termo ciborgue, assim como ciberespaço (cyberspace ‒ cybernetic space) e tantos outros termos que derivam da invenção de Wiener. Isso levou a uma intensa produção literária, cinematográfica e de outras áreas culturais voltadas para um imaginário do

ciborgue ‒ um híbrido de orgânico e de próteses maquínicas ‒, que irradiou para a

ficção científica e que parece cada vez mais perto de nós.

físico inglês James Cleck Maxwell (1831-1879) empregava o termo para estudos dos mecanismos de repetição, mas foi Wiener quem apresentou o sentido que é empregado hoje: “ciência cujo objetivo concentra-se na comparação dos sistemas e mecanismos de controle automático, bem como na regulação e comunicação não só dos seres vivos, porém também nas máquinas” (DICIONÁRIO MICHAELIS, 2017).

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1.2 A construção do imaginário ciborgue

A ficção científica surge no século XIX a partir do imaginário tecnocientífico e das mudanças promovidas pela Revolução Industrial. Posteriormente, teve força com o avanço da ciência e da tecnologia e com as decorrentes dúvidas em relação a seu impacto na sociedade (REGIS, 2005, p. 1015). Embora presente em histórias em quadrinhos, cinema e teatro, entre outros, o gênero consolidou-se na literatura como oposição à ficção praticada à época.

Em 1896, Frank A. Munsey criou um novo formato de revista, impressa em papel barato e com livre acesso às classes populares na Inglaterra e nos Estados Unidos, que misturava ficção com notícias e poesia: as pulp magazines. Essas revistas se popularizaram e começaram a se especializar em gêneros, a partir de 1915, com a criação da Detective Story Monthly e depois Western Story (1919),

Love Stories (1921), entre outras. Em 1926, a ficção científica ganha sua própria

revista, a Amazing Stories, com viagens à Lua, terras fantásticas, vida no futuro, energia atômica, mutações e supersseres. Classificada como scientifiction, a publicação combinava fato científico com fantasia (REGIS, 2012, p. 23-25).

Na década de 30 e 40, a ficção científica alcançou grande crescimento como gênero literário popular, envolvendo escritores, editores e leitores que produziam e consumiam os títulos que surgiam. O termo science fiction surge em 1929 na revista Science Wonder Stories como subgênero para histórias fantásticas que despertavam o interesse dos leitores.

O gênero realmente toma impulso na década de 1940, com uma geração de autores da ficção científica clássica americana, como Isaac Asimov, Robert Heinlein, Theodore Sturgeon, van Vogt, Arthur C. Clarke, James Blish, Ray Bradbury e Alfred Bester, trazidos inicialmente pelas mãos de John W. Campbell Jr. e de outros editores. Essas histórias tratavam de planetas exóticos, aventuras intergalácticas, alienígenas, máquinas inteligentes e robôs, mas sempre abordando questões da atualidade. Um fato decisivo para a credibilidade da ficção científica, segundo Isaac Asimov (1984, p. 146), foi a explosão da bomba atômica em agosto de 1945, no Japão. O tema era recorrente nas revistas, mas passou a ser um tema real, provocando um choque no avanço da ciência e dando credibilidade acadêmica

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ao gênero, que discutia o futuro da humanidade e as consequências do avanço científico para o planeta.

A ficção científica passa então a figurar mudanças na sociedade, como superpopulação, crise ambiental e muitos outros, acompanhando as transformações científicas e deixando de lado as fábulas e fantasias. Arthur C. Clarke, no romance Náufragos em Selene (1961), utilizou os conhecimentos da época para uma viagem à Lua e Isaac Asimov, por sua vez, empregou inovações em seus textos, recebendo elogios de cientistas célebres até os dias de hoje, como o astrônomo Carl Sagan da série de TV americana Cosmos, popular nos anos 1980.

As possibilidades da ficção científica são ampliadas nos anos 1970, trazendo várias mudanças na forma de abordagem dos temas e adotando uma classificação denominada hard e soft (POHL, 1997, p. 7). A hard utiliza temas do campo das ciências teórico-experimentais, enquanto a soft explora temas das ciências humanas. Frederik Pohl oferece um sentido mais amplo, em que “ficção científica é uma literatura de mudança”: posiciona-se no futuro da raça humana, trazendo origens distintas, extraterrestres e mundos alterados no espaço-tempo, tendo como base a partir do que fazemos no presente. (POHL, 1997, p. 7).

Várias obras da literatura também podem ser associadas à ficção científica, como a Odisseia de Homero (séc. VII a. C.), que narra as viagens do homem grego, e Frankenstein (1817) de Mary Shelley, que utilizou os conhecimentos científicos da época para criar um ser artificial.

Com efeito, o tema do ser artificial, ou autômato, sempre despertou interesse na humanidade e povoou a literatura de ficção científica, partindo da possibilidade de criação da vida pelos humanos ‒ outrora apenas produzido pelo poder divino ‒ por meio de magia, sendo a criação feita de material orgânico ou mecânico, animada por eletricidade ou por um mecanismo de corda.

O autômato é um ser mecânico capaz de gerar seu próprio movimento (do grego, “agindo pela própria vontade”), que foi inicialmente projetado para brinquedos a partir do conceito de maquinarias de relógios, com experiências que datam desde a antiguidade. O autômato então se popularizou, havendo várias

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formas de produzi-lo, além de exemplos de sua origem estarem presentes em mitos e lendas. Segundo Santaella (2013, p. 182), Weiner

Apresentou uma história dos autômatos no Ocidente que se divide em quatro estágios: a era mítica, golêmica3; a era dos relógios (séculos XVII e XVIII); a era da máquina a vapor (fim do século XVIII e século XIX); por fim, a era da comunicação e do controle, uma era marcada pela mudança da engenharia de forças para a engenharia da comunicação, ou seja, uma economia da energia para uma economia baseada na reprodução acurada de sinais.

Cada uma delas representa um tipo de modelagem do corpo humano: como figura de barro, como um mecanismo de relojoaria, como um motor aquecido e como informação, próximo de um sistema eletrônico e algoritmo (SANTAELLA, 2013, p. 182).

Na Renascença, os autômatos popularizam-se para as mais diversas tarefas e formatos, sendo guardados como tesouros nas cortes reais da Europa. Alguns autômatos eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo humano e de animais. Eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder (FOUCAULT, 1999, p. 134). Muitos tinham a habilidade de mover braços, escrever cartas, girar a cabeça e se erguer, ou simplesmente marcar as horas, como em relógios cucos. Em 1774, o relojoeiro suíço Pierre Jaquet-Droz criou um menino autônomo, sentado em uma mesa, capaz de escrever 40 cartas diferentes (ROSHEIM, 1994, p. 23). No filme de Martin Scorsese, A invenção de Hugo Cabret (2011), baseado em livro de Brian Selznick, um garoto vive solitário em uma estação de trem em Paris tentando reconstruir um autômato. O garoto pegava engrenagens em uma loja de brinquedos para reconstruir seu boneco com o intuito de saber se seu avô havia deixado alguma carta programada em suas funções. Quando o autômato começa a funcionar, ao invés de uma carta, ele desenha uma cena do filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, para decepção do garoto, que a muito custo tentou reviver o autômato.

Na França do século XVII, os brinquedos mecânicos viraram protótipos para as máquinas da revolução industrial e, posteriormente, as máquinas de guerra

3 Associada a Golem, figura mítica de tradição judaica, um ser artificial trazido à vida por meio da

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(WOOD, 2001). Na Idade Contemporânea, os autômatos foram objetos de mágicos e ilusionistas, instigando as pessoas com suas inúmeras possibilidades:

A construção de autômatos foi uma fase imaginativa e imitativa do percurso técnico, estimulada por uma atitude utilitária, mas que gerou objetos incomuns e de forte apelo estético. Ainda não eram máquinas que direcionavam a eficiência das pessoas no trabalho, mas mexiam com suas concepções e sensibilidade (CASTRO, 2014, p. 99).

O autômato popularizou-se cada vez mais no imaginário e chegou à ficção científica como robôs com “vida própria”, evoluindo até os atuais ciborgues ou homens cibernéticos. De fato, a vida artificial parece fascinar o humano, tanto no anseio de poder alcançar a força do criador quanto no medo de ser superado por essa vida no futuro. Na ficção científica do século XIX, os autômatos pareciam seres abomináveis que traziam desgraça para seus criadores. Em Autômatos (1814) e O homem de areia (1816), ambos de E. T. A. Hoffmann, e The bell-tower (1855), de Herman Melville, figuravam conotações negativas para a criação da vida artificial. Em O homem de areia, Hoffmann chega a chamar de “maldito autômato” a boneca Olímpia, por quem a personagem Natanael se apaixona perdidamente (HEISE, 2006, p. 166).

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1.3 O autômato na literatura

A figura do autômato, normalmente associada ao monstro, passa a aproximar-se da ciência e da possibilidade de construção de vida artificial. Uma figura emblemática de forma de vida é a lenda judaica do Golem de Praga, que alcançou popularidade no século XIX, embora tendo sido propagada nos séculos XVI e XVII. Golem, que significa matéria amorfa, é um homem de argila que ganha vida por meio de um ritual realizado por um rabino. Sua lenda é uma criação, como em Gênesis: um ser que é trazido à vida a partir do barro e que protegia os judeus contra perseguições. Ele não falava, mas tornou-se um símbolo da desumanização provocada pelas máquinas na industrialização (GRAHAM, 2002, p.101; HARDT; NEGRI, 2014, p. 30-32).

Nas últimas décadas, a lenda do Golem, a mais citada na literatura, conta com duas versões: a primeira é a do rabino Elijah Baal Shem, que dá vida a seu monstro para lhe servir de criado, trabalhando nos afazeres domésticos, mas a cada dia o Golem torna-se maior, mais robusto e incontrolável. Para resolver isso, uma vez por semana o rabino decide torná-lo barro e recriá-lo para que não aumente de tamanho, até que, ao esquecer de transformá-lo em barro, a criatura torna-se um gigante e mata seu criador.

Na segunda versão, talvez a mais famosa, o Golem (Figura 1) é criado pelo rabino polonês Judah Loew para defender os judeus de Praga de seus perseguidores, mas ele também fica incontrolável, até começar a atacar a comunidade judaica da região. Loew então consegue controlá-lo e torná-lo barro novamente. Na versão teatral O Golem, de 19214, o rabino Loew, cansado da

perseguição aos judeus, cria o monstro como uma arma de guerra, mas sua violência indiscriminada não distingue amigos de inimigos. O rabino questiona se o Golem veio para salvar ou para nos destruir e se estaríamos sendo punidos porque queríamos nos salvar. No decorrer da peça, o Golem se apaixona pela filha de

4 A peça segue a lenda judaica e também é baseada no romance O Golem, de Gustave

Meyrink (1914). O filme alemão The Golem: how he came into the world (1920, dirigido por Carl Boese e Paul Wegener) tem as mesmas inspirações, embora existam diversas recriações desse monstro.

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Loew, causando mais pânico e horror, até que ele é controlado e volta para o barro (HARDT; NEGRI, 2014, p. 30-32).

Figura 1 – Golem e o rabino Loew. Desenho de Mikolas Ales (1852-1913)

Fonte: <http://zivabdavid.blogspot.com.br/2012/11/o-golem-de-praga.html>. Acesso em: 08 ago. 2017.

Não obstante, o Golem de Praga não é o único monstro incompreendido, que quer ser amado e dar amor, e que se volta contra seu criador. No século XIX é publicado o romance Frankenstein ou o Prometeu moderno (1818), de Mary Shelley, considerado a mais importante metáfora da vida artificial. Um clássico da ficção científica e do gênero de terror.

Mary Shelley nasceu em 1797 em Londres. Seu pai e sua mãe foram célebres intelectuais de vanguarda, Mary e Willian Godwin. Foi casada com Percy Shelley, poeta romântico inglês, e vivia cercada de intelectuais, poetas e escritores, como Lord Byron. Em um desses encontros com intelectuais, em uma noite fria em Genebra, Byron desafiou Mary, Percy e outros amigos a escreverem histórias aterrorizantes depois de um sarau de contos alemães de terror. Mary foi dormir e ficou pensando sobre o assunto, quando teve pesadelos sobre uma criatura assustadora que parecia deitada ao lado de sua cama. No dia seguinte, cada um contou sua história, mas nenhuma assustou mais do que a de Mary. O entusiasmo

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foi tão grande que Byron sugeriu que ela escrevesse a história, que acabou se tornando um dos mais importantes romances de terror do ocidente. O livro ficou pronto em 1817, mas foi publicado no ano seguinte. Virou um best-seller de imediato, assustando os leitores e também os editores da época, não acostumados com um livro escrito com tanto vigor por uma jovem mulher de 19 anos.

Mary teve muitas influências de seus pais e do marido, mas foi nas experiências de Luigi de Galvani que se inspirou para dar vida à criatura. Galvani, com testes de correntes elétricas, conseguiu, em 1771, contrair involuntariamente as pernas de uma rã, propondo o uso da eletricidade para reanimar o inanimado.

Aproveitando-se dessa descoberta científica, Mary escreveu sobre um jovem chamado Victor Frankenstein, intensamente interessado em filosofia natural5 e fascinado pela capacidade de animação da vida por meio do galvanismo e da eletricidade. Ao entrar na faculdade, Victor passa a viver em função de seu projeto: dar vida a partir da morte. O necrotério e o matadouro eram suas fontes de experiência. Nas madrugadas, ele recolhia restos de cadáveres humanos e de animais esquartejados e, aos poucos, ele foi formando um ser híbrido.

Utilizando o experimento de Galvani, ele levou o monstro à vida. Numa primeira impressão, o achava muito feio, mas a criatura demonstrou-se dócil e culta, e até pede para Victor dar-lhe uma noiva. Contrariado e desprezado, o monstro fica incontrolável e passa a buscar a destruição de seu criador e da humanidade. Mary conta essa história de várias maneiras, confrontando as visões de Victor sobre o monstro, do monstro sobre as pessoas e de várias pessoas que viram o monstro em sua busca pela aceitação na sociedade.

Mas foi o filme de 1931, dirigido por James Whale, que popularizou a criatura sem nome como Frankenstein e sua aparência como horrenda e desajeitada, pois Mary Shelley apenas o descreve de forma exuberante e ágil. O monstro tinha olhos grandes e esbugalhados, pele amarela, cabelos negros e dentes brancos. Apesar disso, Victor Frankenstein chamava constantemente a criatura de monstro miserável e demoníaco: “Nenhum mortal poderia suportar o horror daquele rosto.

5 Também conhecida como Filosofia da Natureza, é a parte da filosofia que trata do conhecimento

das primeiras causas e dos princípios do mundo material. Fazem parte da filosofia natural a filosofia primeira, a geometria, a física e também a ética (FRATESCHI, 2005, p. 8).

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Uma múmia a que se desenvolvesse a vida não seria tão horrenda quanto aquele ser miserável. Eu o contemplara antes de concluí-lo; já era feio” (SHELLEY, 2015, p. 133). O filme de Whale tem muita importância na construção do imaginário do monstro, principalmente por dar-lhe as feições e o comportamento de um ser incontrolável e inconsequente. A adaptação é nitidamente influenciada pelo expressionismo alemão6, com cenários distorcidos, raios contrastando com as sombras e a presença assustadora da criatura interpretada por Boris Karloff.

O subtítulo do romance de Shelley, O Prometeu moderno, remete a duas versões para a história de Prometeu e a autora utilizou as duas. A primeira vem da mitologia grega, de um Titã rebelde que roubou o fogo do Olimpo para socorrer e salvar a humanidade. Isso provocou a ira de Júpiter, rei dos deuses e dos homens, “que mandou acorrentá-lo num rochedo onde um abutre lhe arrancava o fígado, que se renovava à medida que era devorado” (BULFINCH, 2002, p. 26). A segunda versão é do escritor romano Ovídio, em Metamorfoses (ano 8 d. C.), que apresenta Prometeu como criador e manipulador da vida por intermédio de uma porção de iodo. Mary usou um pouco de cada versão ao dar vida ao monstro por meio do fogo celestial oriundo do uso da eletricidade galvânica. Como as atenções geralmente tendem a concentrar-se no monstro, Victor coloca-se como um personagem em segundo plano, mas não para a autora. Victor seria esse novo Prometeu, e não a criatura:

No entanto, reconhecemos que é verdade que, no decorrer da narrativa e quanto mais nos aproximamos do final do romance, os dois, Victor e criatura, tenderão a confundirem-se e a fundirem-se e cada um deles terá como objetivo último e última razão de vida (e de morte) a destruição do outro. Finalmente, o fato de a criatura, originalmente sem nome, acabar por ter recebido o nome do seu criador deveria também lembrar-nos que recentrar as nossas reflexões no criador e não na criatura, não só faz sentido como respeita o título do próprio romance. (ARAÚJO; GUIMARÃES, 2015, cap. 3, p. 4-5)

Victor seria, então, aquele criador que deu vida a uma criatura e que, ao abandoná-la, transforma-a em monstro. Posteriormente, ele é castigado por suas ações, que levam à sua própria morte, à morte de sua noiva e de outras pessoas

6 O expressionismo alemão foi um movimento cultural que se iniciou nas artes e estendeu-se para o

cinema no início da década de 1920. Caracterizou-se pela distorção de cenário e personagens e o uso de luzes em fundos escuros com o objetivo de expressar a maneira como os realizadores viam o mundo (SILVA, 2006, p. 8-9).

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inocentes pela criatura. Sempre é bom lembrar que o mito de Prometeu trata da criação e da transgressão e, ao mesmo tempo, de um benfeitor que entrega o fogo para a humanidade. Essa dualidade é sempre colocada em dúvida ao longo do texto de Shelley, tanto um transgressor como um benfeitor fazendo parte da personalidade de Victor (ARAÚJO; GUIMARÃES, 2015, cap. 3, p. 74).

A magnitude da história de Mary Shelley influenciou toda uma geração de histórias de ficção científica devido ao fascínio da tentativa de criar a vida e de comparar-se ao Criador. Segundo Asimov,

Este se revelou um tema central nas histórias de ficção científica que apareceram depois de Frankenstein. A criação de robôs foi considerada como um exemplo típico da arrogância da humanidade, de sua tentativa de usurpar, através da ciência mal aplicada, as prerrogativas divinas. A criação da vida humana, com uma alma, estava reservada apenas para Deus. A tentativa de imitá-lo só poderia produzir uma cópia grosseira, que inevitavelmente se tornaria tão perigosa quanto o Golem e o Monstro. A construção de um robô conduzia, portanto, ao desastre, e a máxima “existem coisas que a humanidade não deve conhecer” foi apregoada vezes sem conta. (ASIMOV, 1994, p. 15).

Isaac Asimov, que publicou mais de quinhentas obras sobre ficção científica, questiona essa tradição de robôs que se revoltam contra seus criadores e propõe que se estabeleçam dispositivos de segurança que, mesmo que venham a falhar, possam ser aperfeiçoados nos modelos seguintes (ASIMOV, 1994, p. 17). Esses dispositivos aparecem na Astounding Science Fiction (1942) como as “Três Regras Fundamentais da Robótica”, que mais tarde ficaram conhecidas como “As Três Leis da Robótica de Asimov”. Elas são as seguintes (ASIMOV, 1994, p. 18):

1. Um robô não pode fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum tipo de mal.

2. Um robô deve obedecer às ordens dos seres humanos, a não ser que entrem em conflito com a Primeira Lei.

3. Um robô deve proteger a própria existência, a não ser que essa proteção entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.

“As três leis” vão nortear o trabalho de Asimov e influenciar os autores contemporâneos que o sucederam. Asimov apoia-se em suas “leis” em sua primeira história sobre robôs, “Robbie”, de 1939, que seria publicada no livro de contos Eu, robô, de 1950 (2014). Nessa obra, Asimov reúne nove contos publicados anteriormente (num período de 10 anos), em revistas de ficção

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científica, relacionados às “três leis da robótica”. Nos primeiros contos, “Robbie”, “Brincadeira de pegar”, “Razão” e “Pegar o coelho”, os robôs executam tarefas domésticas, até mesmo em uma estação espacial, sempre colocando à prova as “três leis”. Nos contos seguintes (“Mentiroso!”, “Pobre robô perdido”, “Fuga”, “Prova”), novos robôs produzidos pela empresa U.S. Robôs e Homens Mecânicos causam problemas na sociedade por infligirem uma das leis, já que são capazes de ler pensamentos, e começam a mudar a vida social, econômica e política da Terra, misturando-se com os humanos e confundindo-os. No último conto, “Conflito evitável”, as máquinas passam a governar a Terra e têm que enfrentar os grupos antimáquinas.

Nesse universo ficcional de Asimov, a desconfiança da máquina inteligente, que pode revoltar-se contra a humanidade, persiste, mesmo havendo como sensor as “Três leis da robótica”. Tal desconfiança será retomada em outras obras e levada ao cinema.

Em outro livro de Asimov, O homem bicentenário (1976), um robô sofre na busca da humanização. Um androide doméstico, Andrew, desenvolve várias habilidades, como inteligência, criatividade e emoções, aparentemente provocadas por alguma falha em sua produção ou uma evolução de seus mecanismos cibernéticos. Andrew quer ser humano e mortal, depois de se apaixonar por uma mulher da família e vê-la envelhecer e morrer.

A busca por tornar-se humano e encontrar sua natureza como sujeito faz Andrew vestir roupas e procurar uma clínica (oficina) onde realiza seu sonho de ser mortal, provocando enorme questionamento sobre o futuro dos robôs e a ameaça das “Três leis da robótica”. Asimov descreve O Homem bicentenário como o “desejo de um robô de transformar-se em um ser humano e da forma como realiza aos poucos esse desejo” (ASIMOV, 1994, p. 25).

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1.4 Androides e robôs no cinema

Os primeiros filmes sobre androides, robôs e seres artificiais são do início do século XX: Metrópolis (1926), de Fritz Lang, e Frankenstein (1931), de James Whale, baseado no romance de Mary Shelley. Metrópolis (Figura 2) projeta a humanidade cem anos no futuro (2026), quando as pessoas mais poderosas ficam na superfície e os operários, em regime de escravidão, trabalham bem abaixo da superfície. Nesse cenário de luta de classes, Rotwang (interpretado por Rudouf Klein-Rogge) inventa um robô à imagem humana (Maria, interpretada por Brigitte Helm), que faria todo o trabalho, substituindo os operários. O filme, considerado um marco no cinema expressionista alemão, aborda a rebelião do homem contra as máquinas e influenciou dezenas de filmes, como Blade Runner (1982), Matrix (1999) e Robocop (1987), que serão abordados neste trabalho.

Figura 2 – Cenas do filme Metropolis (1926).

Fonte: <http://blackcine.com.br/projeto-365-dia-127-metropolis/>. Acesso em: 04 ago. 2017.

Já Frankenstein (Figura 3), de James Whale (1931), inspirado no romance de Mary Shelley, traz à tona o monstro como um clássico do terror. Diferente do texto de Shelley, o filme traz um novo cientista, que vive recluso em um castelo, realizando sua experiência macabra com corpos costurados recolhidos em cemitérios. Ao tornar-se ser vivente, o monstro, interpretado por Boris Karloff, é desengonçado e aterroriza a cidade, que passa a caçá-lo após sua fuga da masmorra do castelo. O romance de Mary Shelley serviu de inspiração para quase

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300 filmes, tendo o monstro de Frankenstein como protagonista ou não. Um dos mais recentes, Victor Frankenstein (2015, de Paul McGuigan), foca mais no criador do que na criatura.

Figura 3 – Boris Karloff no filme Frankenstein (1931)

Fonte: <http://dalenogare.com/2014/07/frankenstein-1931/>. Acesso em 04 ago. 2017.

O cinema produziu centenas de filmes sobre ciborgues, os quais demandariam um profundo e longo estudo, algo que, a princípio, pode destoar do objetivo deste trabalho, embora alguns filmes sejam considerados essenciais para esta abordagem. Para caracterizar esse corpo híbrido, Martins, Aguiar e Paiva (2010) dividem-no em três modalidades: o homem maquinizado, a máquina humanizada e o corpo plugado. Essa concepção pode possuir diversas categorias, variáveis em forma e intensidade.

O entendimento do ciborgue como um homem maquinizado com partes inorgânicas ganha força em Robocop – O Policial do Futuro (Paul Verhoeven, 1987) e Cyborg – A Arma Definitiva (John Stead, 2008). O primeiro, um superpolicial de rua, e o segundo, um supersoldado de guerra. Ambos são inicialmente humanos e têm suas memórias apagadas para ressurgirem como seres maquínicos.

Em Robocop (Figura 4), a personagem Murphy utiliza o cérebro humano e outras partes, como o sistema digestivo, mas tem grandes segmentos formados por próteses mecânicas. Em Cyborg, o corpo de Isac é sintético, com sangue híbrido.

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Segundo Claudio Cardoso de Paiva, Allysson Viana Martins, e Tássio José Ponce de Leon Aguiar (MARTINS, AGUIAR, PAIVA, 2010, n.p.),

Nos dois exemplos citados, os ciborgues são híbridos maquínicos e humanos, mais resistentes do que qualquer um dessa espécie. E as duas narrativas se dividem em dois momentos: quando ambos os ciborgues são dominados por sua parte maquínica e quando começam a criar consciência e a se tornar autônomos.

Tanto Murphy quanto Isac começam a ter lembranças do passado e questionam a falta de autonomia e suas funções programadas. No desfecho de

Robocop, Murphy tira o capacete e mostra um rosto caracterizado pela fusão de

matéria orgânica e inorgânica, e tenta reassumir sua identidade humana. Já em

Cyborg (Figura 5), Isac se rebela contra seu criador e consegue se desvencilhar do

lado cibernético. Robocop teve duas sequências (1990 e 1993) e uma refilmagem em 2014.

Figura 4 – Cena do filme Robocop (1987)

Fonte: <http://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/como-robocop-previu-o-futuro.phtml#.WYoKeq3Oocg>. Acesso em: 08 ago. 2017.

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Figura 5 – Cena do filme Cyborg – A arma definitiva (2007)

Fonte: <http://movieweb.com/exclusive-rich-franklin-is-a-killing-machine-in-cyborg-soldier/>. Acesso em: 08 ago. 2017.

A segunda modalidade é a máquina humanizada, presente nos filmes O

Homem Bicentenário (1999 – Chris Columbus), A.I. – Inteligência Artificial (2001 –

Steve Spielberg), O Exterminador do Futuro (1984 – James Cameron), Eu, Robô (2004 – Alex Proyas) e Blade Runner – O Caçador de Androides (1982 – Ridley Scott), nos quais os ciborgues foram criados como máquinas, mas são humanizados e despertam sentimentos e paixões, distanciando-se da programação original.

O Homem Bicentenário (1999), baseado em conto de Isaac Asimov já descrito neste trabalho, apresenta um futuro onde as máquinas são utilizadas para diversas funções, entre elas, cuidar dos serviços domésticos e da família. Andrew (Figura 6) é uma dessas máquinas, e chega a uma casa ainda com a desconfiança de seus ocupantes sobre a necessidade e a serventia do robô. Com o passar dos anos, Andrew demonstra capacidades que vão além de sua criação, como sentimentos, curiosidade e facilidade de aprendizado. O auge do filme é quando Andrew decide lutar pela sua liberdade e deixar de ser robô para alcançar sua

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condição humana, momento que coincide com a constatação da morte de seus “donos”, principalmente de Amanda, filha do casal, por quem ele se apaixona.

Figura 6 – Cena do filme O homem bicentenário (1999)

Fonte: <https://brunoavaliafilmes.wordpress.com/2014/08/17/o-homem-bicentenario/>. Acesso em: 10/08/2017

Também baseado em contos de Isaac Asimov, em Eu, Robô, as máquinas existem para servir os humanos, respeitando as “três leis da robótica” igualmente citadas em O Homem Bicentenário. O enredo é desenvolvido a partir da perseguição do robô Sonny, que teria infringido as três leis ao matar um humano. O policial Sponner (Figura 7) é recrutado para investigar o caso, e acaba sendo revelado que ele é um ciborgue com um braço e parte do pulmão substituídos por membros cibernéticos.

Já a criação de uma máquina com sentimentos fica mais evidente em A.I. –

Inteligência Artificial (2001), que apresenta o menino David (Figura 8), criado para

amar seus pais eternamente. Os sentimentos presentes no pequeno ciborgue permanecem mesmo com o fim da raça humana, contado no filme. Com a morte de seus pais, David consegue fazer ressurgir sua mãe (Monica) e aproveita um último dia de sua vida.

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Figura 7 – Cena do filme Eu, robô (2004)

Fonte: <http://www.insidesources.com/i-robot-whats-next/>. Acesso em: 10 ago. 2017.

Figura 8 – Cena do filme A.I. – Inteligência artificial (2001)

Fonte: <http://www.rogerebert.com/reviews/great-movie-ai-artificial-intelligence-2001>. Acesso em: 10 ago. 2017.

Replicar a vida humana também aparece em Blade Runner – O caçador de

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humanos são recriados para fazer trabalhos perigosos e degradantes. Mas a instabilidade emocional dos chamados replicantes (humanos criados) provoca um motim e vários “caçadores” são recrutados para matar ou desligar esses ciborgues. Nesse cenário, um ex-blade runner7 aposentado, Deckard, interpretado por

Harrison Ford (Figura 9), é recrutado para matar um grupo de replicantes que volta à Terra atrás de seu criador para conseguir uma vida mais longeva, já que eles foram programados para viver por um curto período de tempo.

Deckard então vai matando um a um dos androides e o filme, aproximando-se de aproximando-seu fim, expõe uma simbioaproximando-se entre os hábitos humanos e não humanos. Em diversas cenas os androides guardam fotografias de humanos para tentar criar um passado que eles não tiveram e, assim, parecer mais humanos. Já os humanos tentam ser cada vez mais replicantes diante das limitações que o corpo apresenta. Quase 25 anos depois da produção do filme, o diretor Ridley Scott lançou uma versão estendida, chamada The Final Cut, na qual fica sugerido que Deckard seria um replicante, ou que teria partes não humanas.

Figura 9 – Cena do filme Blade Runner – O caçador de androides (1984)

Fonte: <http://nerdist.com/blade-runner-35th-anniversary-which-cut-should-you-watch/>. Acesso em 10 ago. 2017.

7 Blade Runner é um caçador de recompensas que persegue seres artificiais chamados de

androides numa São Francisco pós-nuclear baseado no livro de Philip K. Dick (Do Androids Dream

of Electric Sheep?) de 1968. Essa foi adaptada para o cinema por Ridley Scott em 1982 com uma

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Um filme recente, Blade Runner 2049 (2017), resgata, 35 anos depois, o ambiente apocalíptico do filme original. Nessa continuação, a companhia Tyrell Corporation, que construiu os primeiros androides, cede espaço para uma nova empresa, que produz replicantes mais confiáveis e mais fáceis de serem controlados. Durante uma das principais funções dos novos androides, caçar e exterminar os antigos (produzidos pela Tyrell), um replicante encontra uma caixa com restos mortais de uma mulher que, descobre-se ao longo do filme, teria dado à luz um híbrido. Esse novo ser, meio humano (filho do policial Deckard, do primeiro filme), meio replicante, pode tornar-se uma ameaça para os interesses da nova empresa e para a humanidade (Figura 10).

Tanto o filme Blade Runner de 1982 quanto sua continuação (2017) apresentam problemas referentes à narrativa, mas não se esforçam para resolvê-los. Os replicantes continuam a ser uma ameaça necessária e controlada, e o futuro, em aberto, traria uma revolução de híbridos mais humanos que os humanos. Curiosamente, os replicantes são, de fato, mais humanos que os humanos, pois possuem sentimentos, afetividade pelo outro, lembranças e vontade de viver, enquanto os humanos são depressivos e agressivos, sem esboçar sentimentos.

Figura 10 – Cena do filme Blade Runner 2049 (2017)

Fonte: <https://www.sideshowtoy.com/blog/first-look-at-blade-runner-2049/>. Acesso em: 15 out. 2017.

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O controle da humanidade por supercomputadores é apresentado em O

Exterminador do Futuro (1984), uma franquia bem-sucedida que gerou outros

quatro filmes (1991, 2003, 2009 e 2015). No futuro, o supercomputador Skynet envia ao passado o androide T-800 (Figura 11) para matar Sarah Connor, mãe de John Connor, que liderará a rebelião contra as máquinas. Nas sequências do filme, T-800 é reprogramado e retorna para proteger John, numa inversão do original, que ocorre depois do grande sucesso de bilheterias do primeiro filme, estrelado por Arnold Schwarzenegger como a personagem T-800.

Figura 11 – Cena do filme O exterminador do futuro (1984)

Fonte: <https://theexportedfilm.com/2015/07/01/the-terminator-1984-classic-movie-review-among-the-top-tier-of-all-action-and-sci-fi-movies/>. Acesso em 10 ago. 2017.

O Exterminador do Futuro retoma o pavor da humanidade de ser controlada

pelas máquinas, e a possibilidade de extermínio da população. Essas possibilidades serão trabalhadas em vários filmes, principalmente na trilogia

Matrix._O primeiro filme, Matrix (1999), foi inspirado na obra Neuromancer, de

William Gibson (1984), na qual um mundo ficcional, o ciberespaço, é chamado de “a matriz”, e, neste, operadores acessam a rede por meio de ligações telefônicas, além de movimentarem-se em um vasto sistema tridimensional de dados codificados.

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Segundo Santaella (2003, p. 190) “a importância da obra reside no fato de que ela marca a passagem do modelo do ciborgue híbrido, ainda dividido entre o orgânico e o maquínico, para o ciborgue como simulação digital”. Dessa forma, o ciborgue passa a ser desde um simples usuário plugado no ciberespaço até o limite dos avatares (uma espécie de personificação computacional).

A matriz do filme é um mundo de realidade virtual onde as máquinas, que possuem inteligência artificial, controlam e “cultivam” os humanos em enormes campos (como plantações), dentro de cápsulas que fornecem bioeletricidade para a sobrevivência do sistema. Os poucos humanos fora da matriz formam a resistência em uma cidade chamada Zion.

Após uma profecia de possibilidade de libertação das máquinas, Neo (Figura 12) é recrutado como uma espécie de messias para manipular o mundo artificial e enfrentar o supercomputador que controla a matriz. O filme teve duas sequências,

Matrix Reloaded (2002) (Figura 13) e Matrix Revolutions (2003) (Figura 14), que

dão continuidade à luta de Neo dentro do sistema, o que culmina em seu encontro com o Deus Ex-machina, que controla todo o sistema, e em um acordo de paz com os homens.

Figura 12 – Cena do filme Matrix (1999)

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Figura 13 – Cena do filme Matrix - Reloaded (2002)

Fonte: <http://www.matrixfans.net/interview-with-charmaine-connelly-prosthetics-from-the-matrix-reloaded-2003/>. Acesso em 10 ago. 2017.

Figura 14 – Cena do filme Matrix Revolutions (2003)

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Apesar de todo o contexto apocalíptico que esses filmes denotam, duas séries de TV, O homem de seis milhões de dólares (1974-1978) e A mulher biônica (1976-1978), traziam um cenário mais positivo para a hibridização do humano. Em

O homem de seis milhões de dólares, o coronel Steve Austin (Figura 15) sofre um

acidente e é reconstruído (braços, olhos, pernas) por implantes biônicos que lhe dão habilidades extraordinárias e que custam o valor em dólares que dá título ao filme. Já A mulher biônica (Figura 16) surge de um episódio de O homem de seis

milhões de dólares, mas ganha sua própria série nos mesmos moldes, com a

reconstrução biônica.

Figura 15 – Cena da série de TV O homem de seis milhões de dólares (1976-1978)

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Figura 16 – Cena da série de TV A mulher biônica (1976-1978)

Fonte: <http://obaudoedu.blogspot.com.br/2012/01/lindsay-wagner-mulher-bionica.html>. Acesso em: 10 ago.2017.

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1.5 A construção do próximo humano

A gênese do próximo humano certamente passa pelas discussões que se dão na metade do século XX, lideradas por Gregory Bateson, Heinz von Foester, Kurt Lewin, Claude Shannon, Norbert Wiener, entre outros, lançando bases sobre o funcionamento da mente humana, da cibernética, da teoria dos sistemas e da ciência cognitiva (SANTAELLA; FELINTO, 2012, p. 26-27). Desde que os livros sobre cibernética de Wiener e as teorias da informação de Shannon unificaram o maquínico ao ser vivente, foram jogadas luzes sobre o pensar humano como algo que pode ser reparado com a substituição de uma peça, sendo este ser, ao mesmo tempo, composto por informação.

Popularizou-se, em diversos estudos (muitos deles citados neste trabalho), os termos “pós-humano”, “pós-orgânico” e “pós-humanismo”, que podem ser associados à superação do sujeito liberal humanista e também à superação de um corpo para algo maquínico: o ciborgue. Utilizar o prefixo “pós” é de certa forma admitir a decadência ou superação de algo. É admitir que algo ficou obsoleto.

Hayles, em seu How we became posthuman (1999), defende esse argumento, colocando o humano em novas frentes do pensamento: a informação teria perdido sua corporeidade ao ser conceitualizada como uma entidade separada das formas materiais nas quais está enraizada; o ciborgue teria sido criado à maneira de um artefato tecnológico e ícone cultural; certa construção específica, chamada humano, estaria cedendo passagem para uma construção distinta, que querem chamar de pós-humano (HAYLES, 1999, p. 2):

Se foram ou não feitas intervenções no corpo, novos modelos de subjetividade emergentes de campos como a ciência cognitiva e a vida artificial implicam que mesmo um Homo sapiens biologicamente inalterado conta como pós-humano. As características definidoras envolvem a construção da subjetividade, não a presença de componentes não biológicos8 (HAYLES, 1999, p. 4, tradução nossa).

O pós-humano surge como a possibilidade de criar um novo ser, menos orgânico, potencializado pela ficção e com o avanço tecnológico de dispositivos

8 No original, “Whether or not interventions have been made on the body, new models of

subjectivity emerging from such fields as cognitive science and artificial life imply that even a biologically unaltered Homo sapiens counts as posthuman. The defining characteristics involve the construction of subjectivity, not the presence of non-biological components”.

Referências

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