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Capítulo 2 A evolução da biopolítica

4. A reinvenção da vida

Os novos conhecimentos científicos mudam sempre a forma de vermos o corpo. O desenvolvimento da biotecnologia aumentou o controle dos processos da vida e almeja alterar o próprio conceito da vida. A varredura do DNA, os transplantes e a instalação de elementos maquinizados no corpo estão redefinindo a vida e rompendo com o corpo integral. O corpo é cada vez mais visto como um software ou livro que pode ser reescrito.

O corpo pode ser, então, digitalizado e reprogramado. Haraway (2013) e outros teóricos falam em um corpo com intervenções, mais próximo de um ciborgue, com a instalação e uso de objetos não humanos. Não se trata apena de melhorar uma situação falha ou existente, e sim "reprogramar" os processos metabólicos: “Como consequência, a biologia não é mais concebida como uma ciência da descoberta, que registra e documenta os processos da vida, mas sim como uma ciência da transformação, que cria a vida e ativamente muda organismos vivos”15 (LEMKE, 2011, p. 94-95, tradução nossa).

O acesso melhorado ao corpo também cria uma nova relação entre a vida e a morte. Alguém que tenha morte cerebral, com o corpo ainda em funcionamento, pode ter seus órgãos reimplantados em outros corpos. A morte pode ser parte de um circuito produtivo e utilizada para melhorar e prolongar a vida útil. A morte de uma pessoa pode garantir a vida e a sobrevivência de outro. O Estado, em sua soberania, como autoridades médicas, decide questões sobre a vida e a morte quando o direito de causar a morte ou deixar viver é substituído pelo poder de causar a vida e devolver a morte. A biopolítica passa a administrar e controlar as condições de vida, como antecipou Foucault (2014, p. 149).

Essa mudança é fruto de uma reorganização dos poderes do Estado, com muitas responsabilidades para administrar a saúde e a reprodução humana. Deve- se também à criação de entidades autônomas, como comissões de bioética, clínicas privadas de fertilidade, empresas de biotecnologia, entre outras. Isso

15 No original, “As a consequence, biology is conceived of no longer as a science of discovery that

registers and documents life processes but rather as a science of transformation that creates life and actively changes living organisms”.

implica também na crescente ênfase na responsabilidade dos indivíduos para administrar sua própria vida (ROSE, 2013, p. 16-17). A medicina também mudou: ela é muito mais baseada em evidências e dependente de sofisticados equipamentos para diagnóstico e terapia.

A prática da medicina tem sido colonizada por exigências de mercado, tanto a pública, quanto a privada. Foi alterada pela inserção dos planos de saúde, pelas políticas públicas de distribuição de recursos, pelas regras de reembolso, pelos interesses de laboratórios na fabricação de medicamentos e pelos lucros das empresas, que devem grandes quantias a seus acionistas.

Esse novo espaço da biopolítica não veio em um acontecimento único, mas foi produto de uma remodelação da percepção e da prática médica e política por intermédio de interconexões entre mudanças em certo número de dimensões. Tais dimensões, segundo Rose (2013, p. 19-20), seriam a molecularização, a otimização, a subjetivação, a expertise somática e as economias de vitalidade.

Sobre a molecularização, a medicina considera a vida no nível molecular como algo que pode ser identificado, manipulado e recombinado com novas práticas de intervenção. A biopolítica molecular abrange a intervenção na sequência do DNA no tratamento de doenças e alterações para evitar doenças no futuro. O corpo passa a ser fragmentado por tecidos, órgãos e genes espalhados em laboratórios, que podem ser mapeados e movimentados para outros organismos e outros corpos. A possibilidade de conter um gene cancerígeno ou com outra “falha” é motivo para tratá-lo ou extirpá-lo antes que cause consequências futuras16.

Sobre otimização, as tecnologias deixam de se preocupar com saúde e doença e passam a agir no presente para garantir um futuro com mais excelência nos corpos. Fatores para isso foram o Projeto Genoma Humano e as técnicas cada vez mais avançadas (desenvolvidas por biólogos, engenheiros, matemáticos e programadores de software) de intervenção no corpo, chamadas de tecnologias da

vida. Vão desde transplantes até a inserção de próteses e outros mecanismos que

16 Em março de 2015 a atriz norte-americana Angelina Jolie fez a remoção de seus ovários e das

tubas interinas como maneira de prevenir câncer após a identificação de um gene defeituoso, e de seu histórico familiar. A decisão foi baseada na estatística de risco de desenvolver a doença. Dois anos antes ela já havia retirado o tecido mamário pelo mesmo motivo.

tornam o humano um ser híbrido (homem-máquina), orientado para a otimização. Essa interferência não tem o objetivo de trazer a cura ou melhorar a saúde, mas sim de mudar o que não funciona direito com ações no presente para uma nova vida no futuro.

Sobre subjetivação, os seres humanos atendem a uma “cidadania biológica” que recodifica os deveres e direitos sobre suas próprias vidas. Encorajados por especialistas ou pelos meios de comunicação, os seres humanos passam a ter uma cidadania ativa, deixando de serem pacientes passivos nos consultórios e tornando-se consumidores que decidem seus tratamentos e autorizam intervenções medicamentosas e cirúrgicas.

Sobre expertise somática, o surgimento de novas profissões ou subprofissões, cada vez mais especializadas em aspectos particulares de nossa existência, como terapeutas de células-tronco e novos peritos do corpo em suas especificidades. A saúde sai da exclusiva autoridade médica para ser exercida por outros profissionais que administram a vida. Foucault alertava para isso (2014, p. 152) ao incluir a estatística e a política nas decisões sobre a vida. Isso desenvolveu um fértil mercado de trabalho para outros profissionais, que se especializam em doenças, tratamentos, produção de medicamentos e outras ações na biomedicina. Também contribuiu para o fortalecimento da bioética, um ramo da filosofia para grandes discussões em conselhos internacionais, esbarrando em questões econômicas, sociais e de saúde.

Sobre economias de vitalidade, as empresas e novos especialistas atendem questões econômicas na busca de cura e otimização da vida, com imposições do capital. A biopolítica é um grande negócio que envolve cifras estratosféricas de dinheiro para governos, laboratórios e associações de medicina. Novos tratamentos ou novas descobertas incidem em grandes procuras de pacientes. Manter a vida é um esforço incansável e deve valer a pena o investimento, gerando grande valor (ROSE, 2013, p. 26-67).

Destarte, entre outras situações, as acima descritas levam a uma nova dimensão que Rose denomina de etopolítica, “as tentativas de modelar a conduta dos seres humanos mediante influências de sentimentos, crenças e valores – em resumo, agindo sobre a ética” (2013, p. 46), consolidando o sentimento de que os

humanos devem julgar a si mesmos e intervir em si mesmos para se tornarem melhores do que são.

As preocupações da etopolítica estendem-se à qualidade de vida, ao direito de escolha e às decisões sobre o corpo. Isso inclui a recusa de tratamentos ou intervenções e até mesmo a eutanásia, o aborto, a terapia genética e a clonagem, entre outros. Deve-se transferir ao humano a condução de sua própria vida e sua responsabilidade, sem autoridades para decidirem seu futuro. Significa a ruptura de uma época, um novo momento em que as decisões sobre o corpo nos fazem administradores da própria vida.