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Capítulo 2 A evolução da biopolítica

1. A vida como referência política

O cientista político sueco Rudolf Kjellén pode ter sido um dos primeiros a introduzir o termo biopolítica no início do século XX, quando caracteriza o Estado- nação como um “organismo”, “uma forma de vida”. Kjellén via as tensões do Estado de forma típica da própria vida, e conceitua uma ciência especial da biologia como

biopolítica quando discute a necessidade de sobrevivência dos grupos sociais em

uma guerra civil (LEMKE, 2011, p. 9).

É certo que muitos pensavam o Estado como “ser vivente” por séculos, mas Kjellén vai além ao discutir que apenas uma política que se oriente em direção às leis biológicas é mais compatível com a realidade em um período histórico marcado pelo surgimento de Estados antidemocráticos, com viés racista e xenofóbico. Segundo Lemke, esta

Biopolítica é marcada pela tensão constitutiva entre, por um lado, a ideia da vida como um poder decisivo e o local de origem mítica e, por outro lado, a convicção de que a modificação ativa e o controle de eventos biológicos é possível (2011, p. 11, tradução nossa).9

Os nacionalistas fizeram uso de diversas ideias para manter seus discursos racistas, inclusive da biopolítica. Muito marcante nos discursos nazistas, em que fatos hereditários de raça tornam-se muito importantes para melhorar a “eficiência da vida” do povo alemão, a eugenia10 tinha como intuito uma melhora qualitativa no “material genético”, em um processo caracterizado por conceitos que incluem a biopolítica.

O elo entre o delírio racial e o genocídio, ou biologização da política, não se limita ao nazismo, mas a outros governos, como o stalinista, na União Soviética, no intuito de criar o “novo homem soviético”. Também em práticas eugênicas de geneticistas por todo o mundo, inclusive em estudos financiados pela Fundação

9 No original, “The concept of biopolitics is marked by the constitutive tension between, on the one

hand, the idea of life as a fateful power and the site of mythical origin and, on the other hand, the conviction that active modification and control of biological events is possible”.

10 O termo eugenia é empregado desde a metade do século XIX e significa “bem nascido”. Será

constantemente citado neste trabalho por representar uma ferramenta nefasta de Estados totalitários para “purificar” a população. Foi utilizado pelos Estados nazifascistas e até hoje está implícito e velado nos discursos racistas e na biotecnologia genética.

Rockefeller nos Estados Unidos, na década de 1930, com a ascensão da biologia molecular (LEMKE, 2011).

Na metade da década de 1960, uma nova abordagem dentro da ciência política toma corpo, com estudos biológicos aliados à política em métodos de pesquisa bem heterogêneos nos Estados Unidos, que vão desde estudos neodarwinistas, até estudos sociobiológicos a fim de se analisar o comportamento político. Em comum, essas investigações tinham como componente fundamental o estudo do observável no comportamento humano a fim de tirar conclusões para uma política racional, ou seja, uma política consistente com exigências biológicas.

Metodologicamente, a abordagem baseia-se na perspectiva de um

observador externo, que descreve objetivamente certas formas de comportamento

e processos institucionais. Em contraste, os conceitos que abordam a realidade a

partir da perspectiva dos atores ou participantes são considerados cientificamente

deficientes (Saretzki 1990, 86-87 apud Lemke).

Biopolítica, nesse contexto, refere-se mais a “origens” biológicas, ou “fatores” que servem, supostamente, para dar forma decisiva aos motivos e espaços de atores políticos. Na história evolutiva humana, diversos fatores de comportamento surgiram, embora nenhum deles determine completamente o que é ser humano, mas muitos moldaram de forma considerável várias áreas da vida. Os estudos biopolíticos dessa época estavam mais interessados em entender os comportamentos como a ansiedade e agressividade do que em elencar estruturas simbólicas e padrões culturais.

Nos anos 1960, a biopolítica assume um novo significado. Em meio aos movimentos ecológicos, a biopolítica passou a significar políticas e esforços de regulação destinadas a encontrar soluções para a crise do meio ambiente. O novo conceito teve o auxílio do Relatório para o Clube de Roma (1972), que apresentou simulações e estudos científicos sobre os impactos demográficos e ecológicos do crescimento econômico, e exigiu a intervenção política dos países para deter a destruição do planeta. Tudo isso estando aliado à crescente conscientização da população sobre a preservação da vida (LEMKE, 2011). A biopolítica estava ligada à consciência ecológica e tornou-se ponto de referência para questões ideológicas, políticas e religiosas.

Apenas no início dos anos 1970 que a biopolítica dá uma grande virada em seu conceito. A vida tornou-se um ponto de referência para o pensamento político, tanto pelo aspecto de estar ameaçada pelas estruturas sociais e econômicas quanto pelas descobertas tecnológicas. Estas abrangiam intervenções científicas na manipulação da vida, como o avanço da genética, estudos do DNA, os transplantes de órgãos e a inseminação artificial.

Essas novas problematizações enfraquecem a versão ecológica da biopolítica e fortalecem a tecnociência e o controle sobre a vida. A biopolítica não pode mais ser rotulada como uma atividade política específica ou um subcampo da política, e sim como um regulador da vida, da cultura e da natureza, tornando a vida um objeto da política (LEMKE, 2011). Essa mudança na natureza política do termo foi vista muito claramente por Michel Foucault, que inaugurou uma nova fronteira para a biopolítica, como veremos a seguir.