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Capítulo 2 A evolução da biopolítica

2. O governo dos vivos e a regulação da vida

Foucault, em diversas oportunidades, tratou dos variados mecanismos do poder ‒ um poder que, em si, não existe, mas sim nas relações de poder, muito imprecisas e difusas, como têm que ser. Em suas palestras no Collège de France, nos anos 1970, e em seu livro A história da sexualidade - Vol. 1, Foucault inaugura o conceito de biopoder e delimita sua noção de biopolítica de forma analítica e histórica, relacionando-a a vários mecanismos de poder, em contraste com o poder soberano.

No texto “Direito de morte e poder sobre a vida” (2014, p. 143-174), Foucault apresenta um cenário em que, por muito tempo, o direito de vida e morte era um privilégio do poder soberano ‒ um direito herdado do termo patria potestas, que concedia ao pai de família o direito de dispor da vida de seus filhos e de seus escravos porque, a princípio, está retirando o que lhes foi dado.

Esse direito também era exercido pelo soberano na defesa de sua vida ou de seu reino, expondo seus súditos às guerras ou demais ameaças para garantir sua sobrevivência: “O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida exercendo seu direito de matar ou contendo-o”. Ou, ainda, “o direito que é formulado como ‘de vida e de morte’ é, de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver” (FOUCAULT, 2014, p. 146).

Isto também era aplicado no caso de revoltas ou insurgências contra o reino, que lhe davam o direito de exercer o poder sobre a morte ‒ dando o direito à vida, como suplício ‒, ou o poder sobre a vida ‒ levando à morte, como castigo. Esse direito do soberano significa que ele pode fazer morrer e deixar viver, dando ao súdito o direito de estar vivo e, eventualmente, de ser morto. É como se o súdito não fosse nem vivo nem morto, visto que esse direito está com o soberano, embora o poder soberano nunca pudesse chegar totalmente ao seu direito de morte, pois não se poderia, simplesmente, eliminar a vida de seus súditos.

No decorrer do século XVIII, esse poder sobre a vida sofreu mudanças em seus mecanismos. O direito de morte se deslocou para um poder que gere vida, invertendo a ação do soberano de garantir a vida, mantê-la e desenvolvê-la. Nesse cenário, onde o poder tem a função de gerir a vida, Foucault apresenta o termo

biopoder, segundo o qual “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi

substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (2014, p. 149), de acordo com um cálculo que o poder faz sobre a vida.

Essa era do biopoder que Foucault anuncia é marcada pelo aparecimento de controle sobre populações, controle de natalidade, controle sobre doenças, epidemias e sobre os corpos, sendo fundamental para o desenvolvimento do capitalismo em um ajustamento da população aos processos econômicos (FOUCAULT, 2014, p. 152). A era da biopolítica, desenvolvida na segunda metade do século XVIII, passa a preocupar-se também com a proporção de nascimentos, com os óbitos, taxas de reprodução, fecundidade de uma população, natalidade e longevidade, em um mapeamento estatístico.

Os interesses do capital sobre a vida, nesse caminho, impulsionaram a medicina, os aparatos do Estado com instituições de poder (escolas, hospitais, polícia, etc.), a segregação e hierarquização social, o ajustamento do capital ao humano e a expansão das forças produtivas. O biopoder tornou-se coadjuvante no desenvolvimento do capitalismo, que dependia do controle sobre os corpos e sobre os aparelhos de produção. O capitalismo precisou investir no corpo vivo, na fórmula de que quanto melhor a saúde, mais rendimento no trabalho e na gestão produtiva de suas forças (FOUCAULT, 2010, 205-208).

O biopoder também contribuiu para a melhoria da vida em geral, com os avanços no controle de doenças, melhoria de técnicas agrícolas, desenvolvimento do conhecimento sobre a vida e a morte, novos medicamentos, vacinas e próteses (para ampliar a vida e evitar a morte, em uma intervenção sem limites), administração de saúde individual e coletiva. Trata-se da introdução de uma medicina que passa a ter a função de higienização pública, combater epidemias, normatização e centralização de informações. Na ótica capitalista, o aumento da longevidade e da vida saudável amplia a força de trabalho e contribui para a geração do capital, ao mesmo tempo. O fato de o poder encarregar-se disso entra no domínio dos cálculos explícitos e da estatística, buscando-se o domínio sobre a vida ‒ um poder cada vez menos preocupado com o direito de fazer morrer, e interferindo no fazer viver, na maneira de viver e como viver. (FOUCAULT, 2010, p. 205-208).

Esse novo poder apresenta-se em dois campos distintos: a centralização de informação e medicalização da população, e todo conjunto de fenômenos universais ou acidentais, como incapacidade e velhice, importantes na introdução de instituições de assistência economicamente racionais, como seguros, poupança, dentre outros. A biopolítica vai ocupar os acontecimentos aleatórios que ocorrem em uma população e implementar mecanismos de controle.

Esses mecanismos são previsões e estimativas estatísticas com controle sobre mortalidade, qualidade de vida e natalidade, configurando um poder não de disciplina, mas de regulamentação. Segundo Foucault, esse poder

Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sóbrio que era o poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a “população” enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de “fazer viver”. A soberania fazia morrer e deixar viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer (FOUCAULT, 2010, p. 207).

Essa regulamentação seria o motivo para a desqualificação progressiva da morte, que deixa de ser uma cerimônia de que todos participavam para ser algo que se esconde, algo privado e vergonhoso, em uma transformação das tecnologias de poder.

Já nas palestras de 1978 e 1979, no Collège, Foucault leva o tema da biopolítica a uma forma mais complexa. Dentro de suas análises sobre poder e governo, a biopolítica está intimamente ligada ao surgimento do liberalismo, o qual se opõe à razão do Estado e a modifica em seus fundamentos (FOUCAULT, 2008, p. 29-30). Em suas análises do liberalismo, Foucault o trata como uma teoria econômica ou uma ideologia política bem específica para governar os seres humanos:

Esta nova arte de governar se caracteriza essencialmente, creio eu, pela instauração de mecanismo a um só tempo internos, numerosos e complexos, mas que tem por função – é com isso, digamos assim, que se assinala a diferença em relação à razão de Estado – não tanto assegurar o crescimento do Estado em força, riqueza e poder, o crescimento indefinido do Estado, mas sim limitar do interior o exercício do poder de governar (FOUCAULT, 2008, p. 39).

Presume-se, pelas aulas seguintes, que essa nova natureza do Estado utiliza uma natureza biopolítica para racionalizar os problemas postos à prática

governamental pela população, como saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças. Embora não tenha sido mencionada nesse período de palestras (1978-1979, no livro O nascimento da biopolítica), Foucault demonstra sua intenção de associação entre o neoliberalismo e a biopolítica com o disciplinamento de corpos e regulação da população. A tese histórica de Foucault é a de que os conflitos biopolíticos tornaram-se cada vez mais importantes desde a Segunda Guerra Mundial, com novas formas de tirar a vida e deixar viver, relembrando o poder soberano.

As lacunas no conceito de biopolítica de Foucault, interrompido por sua morte em 1984, desenvolveu-se de maneiras diferentes em escritos de Giorgio Agamben e nas obras de Antonio Negri e Michael Hardt. De um lado estariam as ideias de separação básica de “vida nua” e existência biológica, que teriam moldado a história política no Ocidente desde a antiguidade; de que a constituição do poder soberano necessita de um corpo biopolítico e de que a institucionalização da lei seria ligada à exposição de “vida nua”. Negri e Hardt, do outro lado, discorrem sobre uma nova etapa do capitalismo com a dissolução das fronteiras entre economia e política, produção e reprodução, como iremos expor a seguir.