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Capítulo 3 A jornada do próximo humano

1. Os corpos-monstros hoje

O monstro permeia a cultura e a mitologia há séculos. Na mitologia grega, os monstros eram seres horripilantes, com proporções sobrenaturais e que amedrontavam humanos e semideuses. Alguns deles combinavam partes de animais, como a Esfinge e a Quimera, e outros eram mais humanos, como o Ciclope e Órion (BULFINCH, 2002, p. 150). O monstro também está bem presente desde a Antiguidade, com vários nomes, várias formas, tanto sagrados quanto profanos, divinos e diabólicos, humanizados ou robotizados. Permearam a Idade Média e chegaram à contemporaneidade, deixando rastros no cristianismo e em outras religiões e culturas de forma contundente. O monstro é o negativo, destemido, temido, que espanta e causa horror nas pessoas.

Os monstros, como figuras mitológicas, já foram usados para controlar a multidão e mantê-la sob controle. São inúmeras as fábulas medievais nas quais as muralhas defendem a população dos monstros. Sair dessa proteção é enveredar por caminhos tortuosos, de medo, um caminho sem volta, onde ninguém poderá defendê-lo.

Em Os Anormais (2010), Foucault apresenta dois momentos da monstruosidade. O primeiro momento vai da Idade Média ao início do século XVIII: o corpo-monstro está nas leis da natureza; violá-la é confrontar o monstro. No segundo momento, a partir do século XVIII, a monstruosidade está no desvio de comportamento, no criminoso. Nesse período, tem-se também a figura do monstro político, o tirano, um déspota no topo da sociedade. No século XIX, o monstro dá lugar ao anormal, ao diferente, que assusta de outras maneiras.

No século XVII, os reinos possuíam seus “laboratórios” de monstruosidade, com diversos objetos estranhos, fetos malformados e animais curiosos. Nos séculos XVII e XVIII, a literatura deu um grande salto para construir seus monstros, com inúmeras publicações. No final do século XIX e início do século XX, o monstro esteve associado a anomalias. Nos Estados Unidos, o circo abriu suas portas para esses “monstros”, em verdadeiros espetáculos de crueldade e desumanidade. Muitos assistiam às anomalias humanas consideradas monstruosas, como mulheres barbadas, albinos, irmãos siameses, pessoas com microcefalia, elefantíase, entre outros. Esse “entretenimento” ficou conhecido como “circo dos

horrores” (freak show), inspirado em espetáculos itinerantes da era vitoriana (1837- 1901) na Europa e nos EUA, com toda a sorte de mágicos e animais17.

Inspirações para Mary Shelley construir seu monstro no século XVIII não faltaram, tanto que a criatura de Frankenstein é um corpo que são vários corpos, é uma mistura de partes humanas e animais para construir um novo corpo. É uma figura que expressa o caráter monstruoso da sociedade na tentativa de igualar-se ao criador, na possibilidade infinita da ciência, no ódio, na carência, no medo e no abandono. Frankenstein é tanto o monstro como o cientista, um Prometeu moderno, como sugeriu Mary Shelley, tanto que hoje está integrado ao cotidiano; o medo da criatura revoltar-se contra o criador é nulo, mas continua presente nas artes, na literatura, no cinema. O monstro hoje pode ter várias representações. Ele pode assumir papéis por meio da maldade humana, mas também na forma híbrida homem-máquina, popularizada pelo cinema por meio dos ciborgues.

Quando Clynes e Kline idealizaram o ciborgue, por sugestão da NASA, tinham em mente a necessidade de evitar os esforços e desgaste do ser humano em se ajustar ao ambiente do espaço para suprir uma dificuldade, sem mudar sua natureza, mantendo-o humano (ROSE, 2013, p. 37-38, nota de rodapé). É evidente que não foi esse o caminho que o ciborguismo traçou no imaginário humano e em seus arquétipos culturais.

O ciborgue é a harmônica junção homem-máquina, com a superação da máquina, em um corpo híbrido que representa uma possibilidade de inclusão de partes artificiais para corrigir falhas ou aumentar seu desempenho, assim como em uma minuciosa e cirúrgica intervenção no DNA para alterar genes na correção de acidentes genéticos. Tanto quanto uma utopia, compondo um corpo humano e não humano, esse é um corpo esfacelado, quebrando a barreira que separa o humano, o animal e a máquina. A figura do monstro desestabiliza o corpo, produz outra coisa que não corpo.

É possível associar essa concepção aos estudos de Latour (1994) sobre a antropologia das coisas não humanas. Esse organismo biológico recebe o acréscimo da tecnologia e apresenta-se como uma continuidade, “crescem em

17 Cf. National Fairground and Circus Archive. Disponível em: <https://www.sheffield.ac.uk/nfca/

conjunto, quebrando a divisão entre o tradicional e o moderno” (LATOUR, 1994, p. 802). Mas esse monstro deixa de ser biológico? Ou permanece mais humano, como proposto pelos pesquisadores Clynes e Kline? Ou alterar corpos, segundo um programa biopolítico, levaria à eugenia?

Tanto o filme Metrópoles de Fritz Lang (1926), no qual o monstro-robô tenta substituir os humanos, quanto o monstro de Frankenstein (principalmente o consagrado na cultura pelo filme de James Whale de 1931) retratam a anomalia humana. As intervenções genéticas, as próteses, a inclusão de computadores vestíveis e de implantes neurológicos que comandam máquinas e membros artificiais configuram novos corpos-monstros hoje, mas eles não assustam mais, foram incorporados à nossa cultura18.

O monstro agora é outro. Segundo Negri (2009), é político, biopolítico e social. O monstro está nos sonhos e nos pesadelos do belo e bom, está em toda a parte, o monstro está na multidão (HARDT; NEGRI, 2014, p. 253; NEGRI, 2009, p. 95). Suas ações de intervenção em populações são gigantescas. O monstro estava fora da vida e agora está dentro, dominando e alterando, seja pela ação do capitalismo, seja pela intervenção biológica, mesmo parecendo uma mistificação contemporânea.

Os monstros sociais são mais fortes, diferem do monstro no corpo. A figura do monstro de Negri (2009) é um paradigma da ação política, da ética, que faz frente aos processos de dominação e exclusão produzidos pelos Estados, pelo mercado e por diversas formas de controle, tanto político quanto econômico, jurídico, social e cultural. A multidão é o novo monstro político, porque é uma oposição ao poder, ao corpo político e à soberania. A multidão está dentro da sociedade, pois é classe e potência, é luta pela vida.

18 A cultura do monstro está em diversas séries de TV e no cinema, tanto em desenhos animados

para o público infantil quanto em produções de sucesso, como The Walking Dead (lançada em 2010 pela rede norte-americana AMC e distribuída mundialmente pelo canal Fox), que trata de um apocalipse de zumbis. Na década de 1960, duas séries de TV trataram do universo-monstro: Os

monstros e A Família Addams, ambas exibidas de 1964 a 1966. Nessas séries, famílias de

monstros, bem dóceis, mas horripilantes, tentavam levar uma vida normal com os humanos. Outro fenômeno cultural são os aplicativos que transformam fotos de usuários de telefones celulares em monstros, colocando corpos ou modificando o rosto. Popularizaram-se em vários países, inclusive no Brasil, encontros onde as pessoas se fantasiam de monstros e saem pelas ruas ou em ambientes fechados. Uma dessas, a Zombi Walk, leva centenas de pessoas às ruas no dia 2 de novembro, Dia de Finados, em São Paulo.