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Capítulo 3 A jornada do próximo humano

2. Humano em mutação

As alterações recentes no corpo abriram as discussões entre intelectuais de diversos segmentos da ciência, preocupados com a longevidade e qualidade de vida do ser humano. Tais intervenções (já discutidas anteriormente neste trabalho) projetam o que comumente vem sendo chamado de pós-humano ou pós-orgânico, partindo do arcabouço de referências do ser ciborgue.

Esse pós-humano, que continua humano, é, segundo Rose (2013, p. 19), um ser em mutação que perpassa cinco dimensões e interconexões biopolíticas, já apresentadas neste trabalho (capítulo 2). Estas traçam caminhos muito propícios para a discussão, estando divididas em molecularização, otimização, subjetivação,

expertise somática e economias da vitalidade.

A molecularização é um caminho de esperança para um novo humano, já que os genes podem ser manipulados, alterados e recombinados para a melhoria do corpo. O laboratório tornou-se uma fábrica de criação de vida molecular, com intervenções ainda no embrião, prevenindo doenças e tornando o ser mais adaptado às agruras da vida contemporânea.

O corpo humano é formado por milhares de diferentes tipos de células e órgãos, que funcionam suprindo as necessidades umas das outras. Essas células, como os neurônios, estão morrendo e se recompondo o tempo todo, mesmo aquelas que sofrem a ação da maturidade e que se recompõem mais devagar. E fazem isso porque seguem um padrão do corpo, uma espécie de cartilha pré- estabelecida em milhões de anos de evolução, um plano que é o DNA (JOHNSON, 2003, p. 60-63). O núcleo de uma célula possui esse plano do DNA, mas utiliza apenas o que precisa para desenvolver-se e agir de acordo com as instruções pré- estabelecidas.

A intervenção genômica pode alterar esse plano, “clonar” células ou partes do DNA e recombiná-los para uma segunda dimensão na mutação do humano. Isso é uma ação de otimização, muito empregada na informática e no mundo corporativo. Otimizar significa tornar ótimo, algo excelente e mais favorável à criação de algo. Otimizar a vida é remediar os problemas do corpo e antecipar-se para solucioná-los, é tornar a vida humana um estado de excelência.

Otimizar pode tornar humanos mais longevos e com mais qualidade de vida. A biomedicina passa a oferecer oportunidades de identificar as falhas e corrigi-las antes que seja tarde. Otimizar é também uma ação biopolítica que abre caminho para a exploração do capitalismo, criando uma nova eugenia. Os corpos perfeitos serão apenas para aqueles que podem pagar, mas podem enfrentar dificuldade de adaptação ao meio, visto que o corpo passa por mutações desde a infância ao terem contato com milhares de microrganismos que testam e validam o corpo19.

Por subjetivação entende-se que o corpo é de administração pessoal, o que origina os chamados “cidadãos biológicos”, que decidem o que deve acontecer com seu corpo e assumem direitos e deveres dentro das afirmações de seu corpo. Essa capacidade de “modelar” o corpo de acordo com seus interesses tem formado uma geração de “indivíduos somáticos”, desencadeando uma nova ética denominada por Rose (2013, p. 19; 40-46) de “etopolítica”. Não uma ética baseada em valores morais, mas um novo ethos na conduta de uma vida; uma política de como devemos conduzir a nós mesmo de acordo com nossas escolhas e responsabilidades em relação ao futuro.

As redes sociais, principalmente o Instagram20, contam com inúmeras pessoas que exibem fotos e vídeos falando de suas dietas, fazendo exercícios e explicando como modelam o corpo. São consideradas celebridades, com milhões de “seguidores”, que apresentam produtos e “vendem” saúde e bem-estar. Sua existência corpórea e vitalidade tornam essas pessoas experimentos de si mesmas, abertas para que outros se espelhem ou queiram ser como elas (ROSE, 2013, p. 44). Tais “cidadãos biológicos” fazem do corpo um negócio altamente rentável, que gira em torno de um vitalismo baseado no direito de escolha, na qualidade de vida e no que se decide fazer com seu corpo.

Outra forma de exercer esse direito de escolha são pacientes que possuem doenças crônicas ou degenerativas e que se unem em grupos de relacionamento para compartilhar experiências e alternativas de tratamento. As redes sociais on-

19 Algo similar aconteceu com a ovelha Dolly, reproduzida como clone na década de 1990, que não

resistiu a uma série de doenças, fruto do envelhecimento precoce. Suas células não seguiam o plano do DNA e colocaram em dúvida outras tentativas de clonagem.

20 Instagram é uma rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos criada em 2011 nos

Estados Unidos. Hoje tem 700 milhões de usuários no mundo. Fonte: <https://pt.wikipedia .org/wiki/Instagram>. Acesso em 07 ago. 2017.

line também são utilizadas para isso, visto que podem dar maior voz a grupos que pouco são ouvidos pela mídia, pelos planos de saúde e pelos governos.

Nesses grupos, os pacientes e seus parentes e amigos têm a possibilidade de dialogar entre si ao invés de conversar tão somente com médicos. A possibilidade de conversar com não médicos deixa-os mais à vontade para abordar suas angústias e alegrias, valendo-se, em muitos casos, do recurso do anonimato. Assim como grupos que, historicamente, são importantes e respeitados enquanto alternativas de terapias, como os Alcoólicos Anônimos, os grupos virtuais e físicos contribuem para uma política da esperança, debatendo novos tratamentos e pesquisas de ponta, como o uso de células-tronco21.

Certamente esse ambiente pode ser “contaminado” por empresas de biotecnologia, que, aproveitando-se desta política de esperança, podem oferecer tratamentos alternativos ou acesso a pesquisas de interesse de grandes corporações farmacêuticas em busca de lucro.

No tocante à expertise somática e economias da vitalidade, a biopolítica promoveu o surgimento de novos profissionais interessados em atender esse cidadão biológico, como terapeutas, especialistas em genética e em células-tronco, entre outros, na qualidade de peritos do corpo, com grandes investimentos de grupos empresariais.

Com efeito, toda a necessidade de manter a qualidade de vida e a esperança de vida longeva tem atraído empresas que produzem toda a sorte de medicamentos, impulsionada por “modismos”, e profissionais que se tornam seus “garotos propaganda” de medicamentos.

É evidente que a automedicação ou a hipocondria estão presente há muito tempo, mas as oportunidades, variedades e possibilidades de novos medicamentos cresceram assustadoramente nas últimas décadas, movimentando bilhões de

21 Uma das maiores comunidades de saúde da Internet, a Inspire, possui cerca de 700 mil usuários

que dialogam sobre os mais diversos temas de saúde. Com o slogan “Juntos somos melhores”, o site é supervisionado pelas principais entidades médicas norte-americanas, que não interferem nos diálogos. Os usuários devem se cadastrar com apelidos (nicknames) e escolher grupos em que possam se engajar, como cânceres, diabetes, tabaco, aborto ou doenças degenerativas. Cada tema possui mais de 100 grupos e compartilham cerca de 4 milhões de mensagens por mês. Fonte: <https://www.inspire.com>. Acesso em 07 ago. 2017.

dólares no mundo, atualmente22 Esses altos investimentos e consumo foram motivados pelos resultados de pesquisas recentes, pela ampla divulgação em meios de comunicação (cientistas, jornalistas e autoridades médicas) e pelo interesse dos cidadãos biológicos em administrar seu próprio corpo, casos que discutiremos a seguir.

22 Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, em 2016, a indústria farmacêutica

movimentou 157 bilhões de dólares. No Brasil, as cifras chegam a R$ 5,18 bilhões, com a comercialização de 304,9 milhões de unidades de remédios, um aumento de 21,7% no faturamento e de 16% em medicamentos vendidos, em relação ao mesmo período do ano anterior. Cf. RAPPORT, Izabel Duva. Apesar de crise, indústria farmacêutica aumentou em 20% as contratações e continua crescendo. São Paulo, Revista Exame, São Paulo, 18 abr. 2017. Disponível em <http://exame.abril.com.br/carreira/apesar-da-crise-industria-farmaceutica-aumentou-em-20-as- contratacoes-e-continua-crescendo/>. Acesso em 23 ago. 2017.